Outer Ranger cria uma versão amalgamada do ser supremo Cronos/Chronos, emprestado de várias derivações do mito. O Titã Cronos era o descendente mais jovem dos pais primordiais Gaia (representante da Terra) e Urano (representando o Céu e o governante do Universo). Até o nascimento de seu caçula, os dois criadores estavam unidos, mas logo Cronos começou a ficar com ciúmes do poder de seu pai. Levando a sério a sugestão de Gaia, Cronos, que muitas vezes empunha uma foice, castrou seu pai separando assim os céus e a terra.
Cronos era o deus da colheita, num reinado conhecido pelos gregos como “Idade do Outro” da humanidade (que havia acabado de surgir) num tempo de muita prosperidade e paz – certamente, pela regularidade temporal para o plantio e colheita na mitologia pré-helênica.
Pois esse equilíbrio se rompeu na separação do céu e da terra, perdendo a humanidade sua conexão com o desconhecido, instaurando-se o caos após a “titanomaquia” – a guerra que durou dez anos entre Zeus e seus irmãos contra o pai, Cronos.
Essa cisão entre o Céu e a Terra deu lugar a uma fragmentação temporal na cultura grega: Chronos (o tempo dos homens, cronológico, linear e que pode ser medido, regido pela entropia – tudo terá um princípio e um fim), Kairós (um momento indeterminado no tempo, o “momento oportuno único” quando algo de especial acontece, o momento especial para a realização de alguma coisa específica) e Aeon (tempo de vida, força vital ou a conexão com o eterno, aquilo que foi perdido na ruptura entre Céu e Terra).
Eternidade e finitude, Deus e o homem, Ordem e Caos, são as dualidades que envolvem a fenomenologia do Tempo que a série Outer Range explora como inspiração para Brian Watkins criar essa primeira temporada, até o momento com seis episódios.
A série transforma essa ruptura em um vazio espiritual entre fazendeiros no Wyoming e que se materializa em um buraco enevoado e sem fundo que misteriosamente surge em um ponto remoto no pasto de uma das fazendas.
Fazendeiros, colheita e a mitologia de Cronos é a conexão mais superficial que a série faz. Centrada num severo e taciturno patriarca chamado Royal Abott (Josh Brolin), ele é um homem que sempre esteve apegado aos valores da família, da terra e da regularidade das colheitas. Mas agora, tudo começa a trai-lo e o dia do julgamento final parece se aproximar.
A série Outer Range se alinha a tentativas em conectar o clássico gênero Western com ficção científica (desde o steam punk A Loucas Aventuras de James West – 1999 – até Cowboys & Aliens – 2011), fazendo um mix improvável entre a velha série televisiva Dinastia, a série Paramount+ Yellowstone e até Contatos Imediatos do Terceiro Grau – a narrativa passa-se no Wyoming com alusões icônicas como uma elevação rochosa simbólica e uma visão do futuro que Royal tem ao cair no misterioso buraco que lembram o filme clássico de Spielberg.
O amalgama simbólico que a série faz torna-se ainda mais complexa quando esse vazio espiritual ou mitológico passa a ser representado através de um buraco – o buraco possui uma recorrente simbologia mágica e sagrada em todas as culturas, da China à Índia antigos, até chegar à cultura pop como no “Mar de Buracos” na animação Yellow Submarine dos Beatles.
A Série
A história se passa em uma grande extensão de terra em Wyoming, EUA, dividida por uma cerca divisória entre duas fazendas rivais. A família Abbott está nesta fazenda há gerações, mas quando Royal descobre um mistério bizarro na extensão ocidental de sua terra (um imenso buraco enevoado e sem fundo à vista), ele é involuntariamente sugado para uma trama de ficção científica que muda sua vida para sempre.
Esta história está entrelaçada com uma rivalidade entre as famílias Abbott e Tillerson. Sem qualquer motivo aparente, o patriarca Wayne Tillerson (Will Patton) reivindica os hectares do pasto (no qual, sem saber, está o misterioso buraco) da fazenda de Abbot. A família Tillerson é rica por ter transformado sua propriedade em agroindústria, enquanto Abbott mantém-se fiel à tradição de gerações de gado e agricultura. Rico, Tillerson já subornou o fiscal e juiz do condado. Por isso, é certa a vitória na Justiça contra os Abbott.
Tudo aquilo no qual os Abbott acreditavam parecem o trair: a terra, a fazenda e os negócios estão em declínio. Está prestes a perder um grande pedaço de terra que pertenceu à família por três gerações. E para piorar, Rebecca (esposa do seu filho Perry) desapareceu há meses e a polícia já dá o caso como perdido.
Os filhos de Royal, Perry (Tom Pelphrey) e Rhett (Lewis Pullman), acabam brigando com os filhos de Wayne Tillerson em um bar em uma noite. Trevor e Perry trocando socos numa briga que acaba matando o filho de Tillerson. Quando a tragédia acontece, uma investigação é iniciada contra a família Abbott. À frente disso está a xerife interina Joy (Tamara Podemski - que está concorrendo à eleição de xerife do condado), que se torna uma parte mais central dessa história à medida que os episódios passam.
Fatalmente esse episódio se entrelaça com o misterioso buraco: Royal joga o corpo do filho de Tillerson no interior daquele túnel sem fundo, tentando salvar seu filho da inevitável prisão – piorando ainda mais o litígio judicial com o vizinho.
Essas duas histórias entrelaçadas são ainda mais complicadas pela chegada de uma misteriosa e alegre hippie chamada Autumn (Imogen Poots). Ela convence Royal a deixá-la acampar nas suas terras, longe de sua casa.
No entanto, à medida que os episódios progridem, logo se torna aparente que ela sabe mais sobre aquele buraco do que está deixando transparecer. No episódio 4, mais dos mistérios do buraco é descoberto (em uma cena que é uma evidente alusão a Contatos Imediatos do Terceiro Grau), ficando cada vez mais claro que ela é uma parte importante desse mistério.
Cecília Abbott (Lili Taylor) é a matriarca e esposa de Royal. Ela vê a crescente desventura da família e seu marido cada vez mais descrente de Deus e esquivo, escondendo de todos os segredos daquele sinistro buraco. Cecília tenta manter desesperadamente em pé sua fé em Deus se jogando em um grupo de estudos bíblicos.
Cronos, Tempo e o simbolismo dos buracos
Cronos criou o tempo a partir dessa ruptura entre o Céu e a Terra, representado na série pelo buraco que parece ser um tipo de passagem para passado e futuro.
Pela mitologia, antes do Tempo (criado por Cronos a partir de uma catástrofe cósmica, o assassinato do pai Urano) havia tão somente a Eternidade. É difícil compreender esse conceito, já que nos acostumamos a pensar dentro do tempo cronológico: tudo teve um começo. Até os cosmólogos deram ao Universo uma idade: 15 bilhões de anos, a partir do Big Bang.
Porém, a maior evidência de que o Universo é eterno e sempre existiu é a angústia existencial humana explicada pela mitologia grega das lutas entre deuses e titãs: depois que Cronos rompeu a ligação entre Terra e Céu, a “Idade do Ouro” acabou e a angústia dominou o homem – o homem criou a religião para enfrentar esse vazio existencial entre a nossa finitude e a eternidade. Como encarar a nossa finitude sabendo que o Universo é eterno? Essa é a nossa percepção do caos e da entropia que constitui o próprio Tempo: tudo morre diante da indiferença de um Universo eterno.
É essa sensação que corrói por dentro o protagonista Royal. O argumento da série parece caracterizar o buraco como o próprio Kairós: o “momento oportuno”, o acontecimento único que promete preencher o vazio espiritual tanto de Royal quanto de Wayne Tillerson. Por isso disputam aqueles hectares de pasto, que promete ao longo dessa temporada ser o evento que reconstitui a realidade para Aeon, a Eternidade que antecedeu o Tempo.
Por isso que a simbologia do buraco se reveste de significados mágicos e religiosos em todas as culturas: do buraco do coelho em Alice de Lewis Carroll ao “Mar dos Buracos” na animação dos Beatles Yellow Submarine.
Um simbolismo que antecede o mundo helenístico grego onde as cavernas se transformaram, com Sócrates e Platão, em parábolas da limitação que impede de ver a verdade, como na platônica Alegoria da Caverna. E com o Catolicismo, a simbologia só piorou: entrada para lugares infernais, pecado, castigo e punição.
Antes disso, buracos e cavernas eram o início da jornada de encontro com deuses, mentores, lugar de cura (como, por exemplo, no xamanismo indígena) e conexão com o mundo transcendente que vai além dos nossos sentidos.
Na Índia primitiva acreditava-se que os buracos era portais para outros mundos e atravessá-los livraria a alma do ciclo do Karma; o ideograma Pi entalhado no disco de jade chinês com um buraco no meio como símbolo do céu representando o brilho espiritual do céu que penetra no mundo.
Na série Outer Range, o buraco é Kairós: a oportunidade única na qual as famílias em luta para possuir aquele pedaço de terra poderão se livrar do seu Karma. - (Fonte: Cinegnose - Aqui).
Ficha Técnica
|
Título: Outer Range (série) |
Criador: Brian Watkins |
Roteiro: Zev Borow, Brian Watkins |
Elenco: Josh Brolin, Imogen Poots, Lili Taylor, Lewis Pullman, Tamara Podemski, |
Produção: Amazon Studios, Flame Ventures, Plan B Entertainment |
Distribuição: Amazon Prime Video |
Ano: 2022 |
País: EUA |
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Faça o seu comentário.