quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

KITANO E FUKAMI: O ENCONTRO DE DOIS MESTRES

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'O Menino de Asakusa', cinebiografia do lendário diretor japonês Takeshi Kitano, é comovente homenagem ao seu inspirador
 

Por Léa Maria Aarão Reis

Um dos bairros com a arquitetura do imediato pós guerra mais preservada de Tóquio, Asakusa é o cenário de mais um filme memorialista, desta vez a história do início, no começo dos anos 60, da trajetória de uma das mais populares e super estrelas nipônicas. O filme é baseado no livro  autobiográfico e em alguns momentos na música (excelente) de autoria de Takeshi Kitano, o afamado diretor cultuado entre os cinéfilos que admiram o cinema japonês. Ele também é conhecido como Beat Takeshi, célebre comediante da televisão japonesa, compositor, humorista e ícone da cultura popular do seu país. É um multi - artista.

Agora, O menino de Asakusa (Asakusa kid) por sua vez, vem assinado pelo diretor Gekidan Hitori, de 44 anos, assim como Takeshi uma estrela em seu país. Hitori, como seu mestre,  é comediante, compositor, ator, escritor e apresentador de televisão. Seu nome original é Kawashima Shougo.

O filme é mais uma realização da mega plataforma de streaming Netflix que vem revolucionando, para o bem e para o mal, as formas de produzir e assistir cinema, séries e audiovisual de modo geral. É também o início da vertiginosa investida da Netflix para conquistar mercados de áudio visual do Oriente. China, Japão e Coreia, os três em especial.

O curioso filme apresenta o momento em que o jovem Kitano decide abandonar os estudos universitários para trabalhar como faxineiro no mitológico teatro Asakusa France Za, clube de comédia, teatro e strip, no começo dos anos 60, uma lenda da cultura pop nipônica. Ele quer conhecer e aprender como funciona o mundo dos artistas perfomáticos locais.

No France Za o jovem Kitano se torna rapidamente um aprendiz das artes de outro mito artístico da época. Senzaburo Fukami está começando a fase final da sua carreira, procurando resistir ao advento da televisão ao vivo e à queda do número de frequentadores do teatro, quando os canais de televisão se tornaram cada vez mais populares, e o humor ao vivo, na beira do palco, começou a perder seu gosto.

O filme é uma delicada reverência de Kitano ao seu mestre e de Hitori a Kitano. E assim como vivemos hoje uma fase de transição na produção e exibição do cinema, ele fala igualmente de mudanças, de hábitos passados e do futuro impiedoso.

Grande atração de Asakusa kid é o pano de fundo da trajetória do garoto. A cidade de Tóquio, e em particular o bairro boêmio de Asakusa estão vivendo naquele momento de imediato pós guerra mundial uma fase de transição cultural decisiva. Os jovens, adotando e copiando a cultura exportada pelos Estados Unidos, encontram-se radicalmente americanizados pelo recém vencedor da guerra que devastara o país vinte anos antes, com a tragédia nuclear de Hiroxima e Nagazaki. Tóquio é como se fora uma cidade americana.

Os passos mágicos de Fred Astaire, com Kitano aprendendo com Fukami o virtuosismo do sapateado do dançarino e a trilha musical do jazz dance de raiz emolduram o curioso filme documental.

Nele, Gekidan Hitori coloca o jovem recém chegado (ator Yuya Yagira) sustentando diálogos com o conhecido Yo Oizumi, ator que encarna Senzaburo Fukami. Um deles, em um dos primeiros encontros entre o mestre e o aprendiz é este: ''Qual é o seu talento?'' ''Eu gosto de jazz''! ''Você toca jazz''? ''Não, eu apenas escuto''. ''Ouça e faça o que precisa ser feito, seu idiota!”

Para quem se interessa em ver ou rever o cinema de Kitano, lembramos sua bela obra-prima, o clássico Hana-Bi ( Fogos de Artifício), disponível no Prime Vídeo e considerado pela crítica internacional, na ocasião do seu lançamento em 1997, ''o filme violento mais triste já feito." Naquele ano Hana-Bi recebeu o Leão de Ouro no Festival de Veneza e sacudiu Cannes. Em 2010, novamente foi aplaudido na Croisette com Outrage.

Também um poeta e bom cartunista, Kitano surgiu no mercado do cinema ocidental com o excepcional e sombrio Sonatine. Mas também dirigiu Verão feliz, e mais Dolls, Zaitochi e a famosa produção americana Brother, a máfia japonesa yakusa em Los Angeles.

Hoje, Kitano está com 75 anos. No seu rosto, envelheceu com ele a profunda cicatriz, lembrança do grave acidente de moto sofrido no passado. Em ''Asakusa'' ele se apresenta com os cabelos pintados de um tom quase-cor-de-laranja. Misto de Beat com Takeshi, a lenda viva continua em atividade. Beat sempre se alternando com Kitano, e a poesia, o riso e a doçura se mesclando com o horror da violência. Está mais do que na hora de uma retrospectiva do mestre.  -  (Fonte: Carta Maior - Aqui).

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