domingo, 5 de dezembro de 2021

QUE FALTA NOS FAZ UM PAÍS

(A Gravação, Dia A Dia, De Um Álbum De Doze Músicas Inéditas De Aldir Blanc)
(Acima, João Bosco e Aldir Blanc, circa 1980)  -  Por Leonardo Lichote
Na hora do panelaço contra Jair Bolsonaro em 31 de março do ano passado, data do golpe militar de 1964, Aldir Blanc correu à janela de seu apartamento no Rio de Janeiro e soltou a voz: “Assassino! Assassino!” Com 1,87 metro de altura, calvo e com a barba longa e branca, o letrista tinha algo da imagem de um profeta bíblico, não fosse ele ateu e com frequência portasse a camisa desabotoada até o meio da barriga, o que lhe dava um ar descontraído e mundano.   

Um mês depois do panelaço, ele e sua mulher, Mari Lucia Sá Freire, foram internados com Covid-19. Blanc não resistiu. Morreu em 4 de maio, aos 73 anos. Sá Freire, que recebeu a notícia no leito do hospital, teve alta no dia seguinte. Foi para a casa de uma de suas filhas e ficou lá durante um mês, até junho, quando finalmente encontrou forças para voltar ao apartamento do casal.

Blanc e Sá Freire estavam casados havia mais de trinta anos. Cada um tinha duas filhas de relações anteriores e, juntos, cinco netos. Viviam no quarto andar de um prédio de quatro pavimentos na Tijuca, um bairro de classe média do Rio que é parte indissociável do imaginário do letrista. Ainda tomada pelo luto, Sá Freire viajou em dezembro à cidade gaúcha de Rio Grande, para passar o fim de ano na casa de seu neto Pedro. Levou com ela a ideia de, na volta, ler com calma e com método os muitos papéis e arquivos deixados pelo marido.

Foi o que fez quando retornou ao Rio. Vasculhou as pastas do computador e folheou as pilhas de cadernos espiralados nos quais Blanc burilava versos, escrevia comentários soltos e listava títulos de livros que iria comprar. Na busca, ela encontrou quarenta letras de músicas inéditas.

Em março deste ano, ligou para a cantora Ana de Hollanda, sua amiga, e contou sobre o desejo “despretensioso” de “gravar duas ou três” letras inéditas. A cantora, que foi ministra da Cultura no governo Dilma Rousseff, sugeriu uma conversa com a cavaquinista Luciana Rabello, fundadora do selo Acari Records, que por sua vez recomendou Sonia Lobo, administradora da editora Nossa Música. A ciranda feminina continuou. Sá Freire procurou Lobo, que se dispôs a falar com Kati Almeida Braga, uma das sócias da gravadora Biscoito Fino. Almeida Braga ficou entusiasmada com a ideia de um disco e contatou Ana Basbaum, diretora de produção de Maria Bethânia. Com produção executiva de Basbaum, começou a se concretizar a gravação não de duas ou três músicas, mas de um álbum inteiro, com doze canções, cujo nome seria: Aldir Blanc Inédito.

Conforme a conversa sobre o disco ia se ampliando, Sá Freire procurou intérpretes e parceiros de Blanc, como João Bosco, seu cúmplice em alguns sucessos da MPB, como O Bêbado e a Equilibrista e Dois pra Lá, Dois pra Cá. Ela encontrara apenas a letra da canção E Aí?, mas sabia que os dois haviam terminado a música, que nunca foi gravada. Bosco não se lembrava da melodia, mas falou que tinha os esboços de outra parceria, feita para uma campanha publicitária de uma cervejaria e que acabou não se concretizando. O artista deu o trato final à canção e a batizou como Agora Eu Sou Diretoria. Sá Freire a incluiu na sua lista de inéditas para o álbum.

Bosco também havia começado a musicar a letra Acalento, de Blanc, mas deixara sem terminar. O arremate ficou por conta do sambista Moacyr Luz, especialmente para o álbum. O título faz referência a Acalanto, que Dorival Caymmi compôs para ninar a recém-nascida Nana, sua filha. Para não deixar dúvida, Blanc tinha cravado um subtítulo: Acalento: Canção Caynana.

Numa troca de e-mails entre Blanc e Moacyr Luz, de 2017, Sá Freire encontrou os versos de Palácio de Lágrimas, que o letrista escreveu pensando na voz de Maria Bethânia, que já havia gravado três canções da dupla. “Moa, vai encarar?”, perguntava Blanc na mensagem ao parceiro naquele ano. Ele encarou de pronto, mas a música se manteve inédita – e foi listada para o álbum que se formava. Luz também assinou a canção Mulher Lunar, a partir da letra que Sá Freire achou nos arquivos, assinada por Blanc e Luiz Carlos da Vila, sambista que morreu em 2008 e é um dos autores do sucesso O Show Tem Que Continuar (com Arlindo Cruz e Sombrinha) e do samba-enredo Kizomba, a Festa da Raça, com o qual a escola de samba Vila Isabel ganhou o Carnaval de 1988.

 A busca de Sá Freire continuou. A cantora Leila Pinheiro achou, numa fita cassete de 1996, Navio Negreiro. A música havia sido feita para seu álbum Catavento e Girassol, inteiramente dedicado às parcerias de Guinga e Blanc, mas acabou ficando fora do repertório. Com o cantor e compositor Moyseis Marques, um dos nomes da renovação do samba carioca no início dos anos 2000, Sá Freire encontrou Baião da Muda, que não tinha sido gravada. Muda é a região da Tijuca onde fica a casa do letrista. O nome vem do século XIX, quando os bondes puxados por cavalos paravam ali para a troca (muda) dos animais por outros, descansados.

Nos arquivos, Sá Freire se deparou até com um soneto, Voo Cego. Na mesma página, constava a indicação de que o pianista Leandro Braga teria musicado os versos. Ela telefonou para Braga. “Ih, Mary, não lembro. Mas me dá uma semana”, disse o pianista, chamando-a pelo nome mais usado entre os amigos. Uma semana depois, a música estava pronta e seria gravada por Chico Buarque, devido à admiração mútua que sempre existiu entre ele e Blanc. Como não é próxima do compositor, Sá Freire pediu a Ana de Hollanda, irmã dele, que transmitisse o convite – que foi aceito na hora.

“Todas as vezes que eu falava com um compositor sobre musicar uma letra, eu dizia: ‘Não tem prazo, faz no teu tempo, sei que inspiração não é como pão de queijo’”, conta Sá Freire. “Porque, quando você quer comer um pão de queijo, é só pegar no freezer, pôr no forno e, alguns minutos depois, está pronto. Fazer música não é assim.” Não foi como pão de queijo, mas o pianista Cristovão Bastos não demorou muito para musicar Provavelmente em Búzios, letra que Blanc escreveu em 1993, “provavelmente” em uma das temporadas que passou com sua mulher na cidade litorânea. Parceiro do letrista em Resposta ao Tempo (tema da minissérie Hilda Furacão, na voz de Nana Caymmi), Bastos foi convidado a assinar os arranjos das músicas de Aldir Blanc Inédito.

Os versos mais recentes são de 2020 e estavam entre as mensagens enviadas por Blanc ao ator Alexandre Nero, que dois anos antes havia procurado o letrista porque queria fazer um espetáculo baseado na obra dele. Além de estrelar novelas da Rede Globo, Nero tem um trabalho consistente no teatro e na música, e os dois se tornaram amigos. Virulência costura frases e versos encontrados na troca de e-mails dos dois. A melodia foi feita por Nero com a ajuda do pianista e compositor carioca Antonio Saraiva. A letra é densa, com o peso do Brasil que Blanc testemunhou entre 2018 e 2020. “Aldir estava raivoso, abalado de ver a possibilidade da volta da ditadura”, diz Nero. “E o noticiário trazia sempre essa atmosfera: toda semana, crianças mortas em operações policiais nas favelas, violência contra indígenas.”

Uma vez reunidas as músicas inéditas, em 1º de julho começou a gravação do álbum, no casarão da Biscoito Fino no Humaitá, bairro da Zona Sul do Rio, com uma vista espantosa para o Cristo Redentor. As gravações, que a piauí acompanhou até o último dia, 10 de agosto, aconteceram no subsolo do imóvel, onde fica o estúdio, uma espécie de bunker, protegido de interferências sonoras do exterior. A sensação que se tinha ao descer as escadas até o estúdio era de que, degrau após degrau, a gente deixava a realidade apequenada do país e reencontrava um Brasil maior, trágico e lírico, solene e brejeiro – o Brasil de Aldir Blanc.

 

RIMA COM MAIA LACERDA

Em 1º de julho, quinta-feira, Moacyr Luz e Moyseis Marques são os convidados especiais. É o primeiro dia de gravação, e cada um dos sambistas vai interpretar uma canção diferente de Aldir Blanc Inédito. Mas antes eles vão gravar juntos uma música a ser lançada em separado do álbum, Quatro de Maio, escrita por Luz e Marques, em homenagem a Aldir Blanc – o título faz referência ao dia de sua morte.

A letra evoca locais que fizeram parte da vida do letrista: o Maracanã, o Salgueiro (morro da Tijuca que dá nome à sua escola de samba do coração), o Estádio de São Januário (de seu Vasco da Gama), a Rua Garibaldi (onde ele morava, na Tijuca), a Vila Isabel e o Estácio (bairros onde viveu), a Mangueira e o Bip-Bip, bar de Copacabana de históricas rodas de samba e choro:

Um minuto de silêncio no Maracanã
Rajadas no Salgueiro logo de manhã
Carreata nas ladeiras sobre rolimãs
Um aceno da Mangueira para as [coirmãs.

Chuva nas caramboleiras do Andaraí
Nuvens na Maia Lacerda nem devo [rimar
Na Tijuca um vento forte ensurdecedor
Como se a Zona Norte gritasse de dor.

Luz compôs a música e pensou em Blanc para criar a letra. “Mas não deu tempo de ele fazer”, diz o sambista. Marques, então, escreveu os versos. Um deles, porém, é de autoria de Luz, o drible na rima que não acontece (de “Maia Lacerda” com “merda”): Nuvens na Maia Lacerda nem devo rimar. O próprio Blanc já havia arriscado a rima em Canário da Terra (de 1996, em parceria com João de Aquino): Eu vim da Maia Lacerda/e essa merda faz parte de mim. Maia Lacerda é uma rua do Estácio, bairro da zona central do Rio onde Aldir passou a adolescência, um período difícil para ele.

O produtor do disco, Jorge Helder, e o percussionista Thiago da Serrinha ouvem a gravação. Baixista renomado, Helder, 59 anos, é músico e parceiro de Chico Buarque, mas trabalhou com vários outros nomes da MPB, entre eles Maria Bethânia e Caetano Veloso. Um dos novos instrumentistas e compositores de destaque na cena musical, Thiago, 35 anos, adotou o nome da comunidade na Zona Norte do Rio onde cresceu. Enquanto escutam o resultado, os dois brincam de imaginar violinos, trombones e viradas de bateria que poderiam entrar em diferentes trechos da canção – típica piada de estúdio.

Minutos depois, Luz e Marques já haviam instaurado um clima de botequim no local, a despeito das máscaras e de haver ali apenas um tipo de álcool – aquele em gel. Todos gargalham quando Luz conta um caso ocorrido com Jaguar. O cartunista saiu de um bar de Copacabana, bêbado, entrou em um táxi e, antes de apagar, balbuciou “Belfort Roxo” para o motorista, referindo-se a uma rua a poucos quarteirões de onde estava. Quando Jaguar acordou, estava chegando ao município de Belfort Roxo, na Baixada Fluminense, a cerca de 50 km de Copacabana.

 

A FISCAL DAS LETRAS

“Esse disco que vamos começar a gravar hoje é um gol antes mesmo do chute”, crava o produtor Jorge Helder no mesmo dia 1º de julho. Minutos depois, Moacyr Luz inicia as gravações do álbum de inéditas com Mulher Lunar, parceria sua com Blanc e Luiz Carlos da Vila. Quando chega ao verso Eu nem cantava e você já sorria, Helder diz: “Olha aí o gol antes do chute, o sorriso já vindo antes do canto.”

Sá Freire acompanha tudo, mirando fixamente um papel com a letra da canção. A cena vai entrar para a rotina do estúdio durante todo o processo. Ela zela pela fidelidade às palavras de Blanc, atenta a qualquer deslize do intérprete – um plural que não existe no original, a troca de um adjetivo, um artigo omitido. Luz brinca: “Se eu cantar diferente é porque resolvi mudar a melodia, a letra.” Ela responde, assumindo seu papel: “A melodia é sua, mas a letra não pode mudar não, tem fiscal aqui.”

Parceiro do letrista em canções como Coração do Agreste e Pra que Pedir Perdão?, comandante da tradicional roda do Samba do Trabalhador, portando guias no pescoço e vestindo uma camisa de cores vivas, Moacyr Luz, 63 anos, é a afirmação no estúdio do país que Blanc descreveu. Ele faz voz e violão em Mulher Lunar, acompanhado por Cristovão Bastos ao piano, Helder ao baixo e Thiago da Serrinha na percussão. Arranjador de todas as canções do álbum, Bastos, 74 anos, já trabalhou com Gal Costa, Paulinho da Viola e Edu Lobo, e é músico da banda de Chico Buarque, de quem foi parceiro em duas canções, Todo o Sentimento e Tua Cantiga.

O primeiro take é gravado. Quando para de soar a última nota, Helder reage: “Já temos.” Luz responde: “Gostei pacaralho.” Depois de uma pausa de segundos, ele diz: “Mas vou fazer de novo a voz e o violão.” Helder rebate: “Mas só porque você quer.” O novo take é feito em poucos minutos – e Mulher Lunar está registrada. Dias depois, Rildo Hora, 82 anos, arranjador de bambas como Zeca Pagodinho, completaria a sonoridade da faixa com sua gaita.

Ao fim da sessão, Luz convoca todos para celebrarem numa casa de vinhos vizinha ao estúdio no Humaitá. “Quinta-feira é meu dia preferido de beber, vê que coincidência”, comenta. Blanc não recusaria o convite. Na versão que escreveu para Moonlight Serenade (canção dos norte-americanos Glenn Miller e Mitchell Parish), ele diz, categórico: Bar é o lugar/de contar como somos felizes.

 

A MUDA MUDA

A terceira canção do primeiro dia de estúdio é Baião da Muda, que assim como Quatro de Maio é marcada pelo mapa afetivo do Rio traçado por Blanc. Moyseis Marques fez a melodia do baião longo, em três partes, e a batizou assim pensando na região da Tijuca onde vivia o letrista, a Muda. Entregou a música a Blanc e, uns três anos depois, como a letra não vinha, transferiu-a para o sambista Nei Lopes, que escreveu a primeira e a segunda partes, mas empacou na terceira.

Marques voltou então a Blanc para completar os versos. “Mas ele acabou fazendo outra letra para a primeira e a segunda partes, tornando o baião ainda mais longo”, recorda o sambista, que resolveu escrever ele mesmo a terceira parte. “No fim, a Muda deixou de ser o bairro e virou a mulher que foi embora sem falar nada, muda”, diz, pouco antes de gravar a música, que ficou com letra de Blanc, Marques e Lopes:

Quem que se deixou amordaçar
E aí se foi sem reclamar
Sem dizer sim nem que não
Quem que avoou sem nenhum pio
Foi lá pras bandas de outro rio
Ave de arribação.

Na gravação, Marques canta e toca violão, acompanhado pelo baixo de Helder, o piano de Bastos, a percussão de Thiago da Serrinha e o acordeom de Alessandro “Bebê” Kramer. Gaúcho de 44 anos, Kramer é tido como um dos maiores acordeonistas do Brasil, por seu estilo vigoroso, enraizado nas tradições do Sul do país, mas que atravessa vários gêneros, com igual brio: jazz, choro, tango e erudito. O apelido “Bebê” foi cunhado quando ele se mudou para Florianópolis, aos 17 anos, pelos músicos da cena local, surpreendidos por ver o garotão tocar como gente grande.

Marques havia trocado as cordas de seu violão no dia anterior, o que o obriga a afinar constantemente o instrumento no estúdio, já que cordas novas não sustentam a afinação. O cantor explica: “É a sina do violonista, porque é chato afinar toda hora, mas você não pode chegar no estúdio com corda velha.” Ele começa com uma levada de violão exuberante, mas enxuga para uma mais discreta. Mas o pianista e arranjador do disco pede para que ele faça a levada original, mais encorpada – e é a que se ouve em Aldir Blanc Inédito.

Em 2005, quando Blanc lançou o álbum Vida Noturna, com sambas-canções e boleros de cortar os pulsos, Sá Freire brincou que o disco deveria ser ouvido no térreo, para que a pessoa não se jogasse da janela. Agora, vendo o novo álbum ser gerado, com um baião sacudido já no primeiro dia de gravação, e conhecendo o repertório inteiro, ela define de outra maneira o novo disco: “Esse é pra poder chegar no terraço.”

 

FALTA O “FORA BOLSONARO”

A rotina do estúdio é retomada apenas na semana seguinte, no dia 5 de julho, segunda-feira, com Sueli Costa. Parceira de Aldir Blanc havia mais de quarenta anos, a cantora e compositora chega ao estúdio cheia de histórias.

Ela conta que certa vez, nos anos 1970, foi visitar o letrista, que estava com problemas de saúde. Amigos a acompanharam e todos estavam avisados de que a reunião seria a seco e a palavra “bebida” estava proscrita no encontro. A cantora estava mal, por causa do fim de uma relação amorosa, mas não disse nada a Blanc. Nem foi preciso. De repente, ele colocou uma garrafa de uísque na frente dela e entregou a letra de uma canção. Era Altos e Baixos, que ela musicou e gravou em 1979:

Meu táxi, whisky, Dietil, Dienpax
Ah, mas há que se louvar entre altos [e baixos
O amor quando traz tanta vida
Que até pra morrer leva tempo demais…

A canção Ator de Pantomima, que Sueli Costa gravou para o álbum de inéditas, é da mesma época. Blanc fez a letra em 1974, durante a ditadura militar. Ela se lembrava de quase toda a melodia que compôs, mas não dos versos. Sá Freire encontrou a letra. Com uma cópia impressa nas mãos, pouco antes de gravar, a cantora comenta: “Isso parece que foi escrito agora, só falta o ‘Fora Bolsonaro’.” A letra diz:

A farsa perante a corte
Não disfarça o meu calvário
Muito ao contrário o realça
Ridiculariza a morte em cada ato
Que o rei real realiza.

Sobra um orgulho que reza
Como o vento em casuarinas
E que vem de onde eu não sei.
Eu, ator de pantomima,
Me nego a beber na mesa
Dos mosqueteiros do rei.

Sueli Costa começa a gravação, acompanhada pelo piano de Bastos, o baixo de Helder e a bateria de Jurim Moreira, músico de 65 anos que já tocou com Gal Costa e Gilberto Gil. “A voz dela está parecendo o trompete com surdina de Miles Davis”, diz Helder, impressionado. A observação serve de dica para Bastos, arranjador do disco, convocar o trompetista Jessé Sadoc, de 74 anos, que integra a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e já acompanhou artistas como Djavan e João Donato. Com seu flugelhorn (instrumento da família dos trompetes), Sadoc dá a liga final à denúncia de Ator de Pantomima.

 

A LÍNGUA AFIADA DE DORI

No dia seguinte, 6 de julho, terça-feira, a primeira sessão está marcada para o meio-dia, mas Dori Caymmi chega mais cedo, como é seu costume. Pouco antes de entrar na cabine para gravar Provavelmente em Búzios, ele saca um cantil de uísque e toma um gole. Na cabine, com seu canto grave e seu violão, o filho de Dorival empresta densidade e doçura à poesia de Aldir Blanc. Ao ouvir a gravação, o cantor de 78 anos acha que sua voz mudou com a idade e faz graça: “Tô com um vibrato igual ao da Ivete Sangalo.”

A interpretação foi precisa, mas, como ele tossiu no primeiro take, precisa retornar ao microfone para gravar mais um. O produtor Helder, que acompanha Dori no baixo, diz ao piloto da mesa de gravação, o engenheiro de som Lucas Ariel: “Grava, mas mantém o primeiro take.” Bastos, no piano, acrescenta: “Até porque ele não vai conseguir tossir igual.” Todos riem. Jurim Moreira se apruma na bateria, Dori faz o segundo take, não tosse, e mais uma faixa do álbum está pronta.

Dori é conhecido por sua língua afiada, que sempre dispara contra músicas que ele acha não estarem à altura do que o Brasil é capaz de produzir – ou seja, quase tudo que vai do pop ao funk. “Tem gente que fala que persigo artistas populares, que sou elitista. Eu sou do país de Aldir Blanc, de Chico Buarque, de Paulo César Pinheiro. Sou da floresta, sou do índio. Não persigo ninguém. Mas quando nasci me prometeram um Brasil que não existe mais”, diz ele.

Dori e Blanc estiveram juntos em um álbum lançado no ano passado, Samba Doce, o primeiro disco solo gravado por Helder. Dori cantou Dorivá, parceria do baixista com Blanc, um tributo ao patriarca dos Caymmi, Dorival. Nos versos, Blanc transforma o homenageado em verbo: E a Santa me ensinou a orá:/Que Oxalá me ajude a dorivá! Na letra que enviou a Helder, Blanc deixou no pé do texto uma rubrica, indicando a repetição: “Bis, tris, quadris.”

 

ACALENTO MAIS LENTO

Ana de Hollanda entra no estúdio na tarde do mesmo dia 6 para gravar Acalento, parceria tripla de Blanc, João Bosco e Moacyr Luz. Uma semana antes, ela recebera Cristovão Bastos em casa para conversar sobre o arranjo. Combinaram de fazer o andamento “mais arrastado” do que o da gravação caseira feita por Bosco para apresentar a canção, que diz:

Ando cansada do amor,
que só me trouxe desgosto.
Me cansa a luz da manhã,
me cansa o ardor do sol posto.

A cantora de 73 anos explica por que escolheu essa música para gravar. “A personagem da canção é uma mulher da minha idade, que trata a ansiedade pela vida com pouco caso, e até com certo tédio”, ela afirma. Hollanda quer que a gravação reflita esse desânimo da personagem, seu desencanto. Ela evita alongar notas de maneira dramática, cantando de forma seca, acompanhada pelo piano de Bastos, o violão de João Lyra, o baixo de Helder e a bateria de Moreira. “Não queria soar triste nem decepcionada, e sim indiferente”, explica depois.

Quando sai da cabine de gravação, ela sugere: “Vamos fazer outra vez?” Helder diz: “Pode até fazer, mas a boa é essa.” Hollanda volta ao microfone e registra mais duas versões. Quando sai novamente, não encontra Bastos e estranha a ausência do arranjador. “Ele foi tomar um café, mas antes disse para não mexer que a primeira vez é a que está valendo”, explica Helder, sorrindo. E foi mesmo a primeira versão que ficou no álbum.

A cantora diz que a personagem de Acalento é completamente diferente da que ela encarnou na música Yes, Zé Manés, a primeira de Aldir Blanc que gravou, incluída em seu álbum Um Filme, de 2001. Na época, Blanc explicou a ela o ambiente que imaginou ao fazer a canção (em parceria com Guinga): “Pensa em uma boate meio New Orleans, meio Gamboa, bem decadente.” Ana de Hollanda diz: “Cantei me sentindo uma putona.”

 

GINGA CONVOCA A CPI

“Seus filhos da puta, vocês têm todos que ir pra CPI!” A voz de Guinga, que irrompe do celular em viva voz, sobre a mesa do estúdio, prossegue, com o tom de denúncia se desmanchando como espuma de chope: “Não pode tocar bem assim no Brasil de Bolsonaro!”

Guinga estava se referindo à cantora Leila Pinheiro, ao pianista Cristovão Bastos, ao baixista Jorge Helder e ao baterista Jurim Moreira. Todos gargalham com o elogio de Guinga, que traz a assinatura do humor que costuma reservar aos amigos. O entusiasmo dele brotou logo depois de ouvir pela primeira vez a gravação de Navio Negreiro, parceria sua com Blanc. O registro da canção havia sido feito na tarde de 7 de julho, quarta-feira.

No estúdio, Leila Pinheiro ouve tudo com a cabeça de cantora e também de instrumentista, atenta a detalhes que vão muito além da voz. Comenta acordes (“Nesse aí vem toda a tristeza”) e sugere que a canção comece só com a bateria de Moreira, ideia que foi incorporada ao arranjo. Também se atenta aos sentidos da letra na qual um escravizado narra em primeira pessoa a experiência do navio negreiro, como ao ouvir o verso “eu durmo desperto”. Ela observa: “É o pavor todo aí.”

Alguns dias depois, o próprio Guinga – Carlos Althier de Sousa Lemos Escobar, 71 anos na certidão – acrescentaria sua participação na música, com voz e violão. Inicialmente, estava previsto que ele gravasse só como instrumentista. Mas, no estúdio, ouvindo novamente o registro de Leila Pinheiro, a certa altura ele comenta com Helder: “Essa parte eu canto de outro jeito” – e mostra como faz. Na mesma hora, o produtor diz que ele tem que cantar na faixa com Leila Pinheiro. Eles ligam para a cantora, que aprova a ideia efusivamente. Na mixagem, as vozes dos dois são dispostas lado a lado. Nasce assim, por acaso, o único dueto do álbum.

A amizade de Guinga com Blanc remonta ao fim dos anos 1980. Era uma época em que Guinga ainda se dividia entre o ofício de dentista e o de compositor e violonista. A parceria musical rendeu tanto ao longo dos anos que Leila Pinheiro decidiu gravar o álbum Catavento e Girassol só com canções dos dois. Mas Navio Negreiro acabou não entrando. Helder, que participou do disco da cantora, é quem tem as lembranças mais vivas do passado. “Ficávamos na casa da Leila gravando, esperando as letras do Aldir. Enquanto não tinha letra, improvisávamos besteiras pra poder cantar, como em Chá de Panela: ‘Caiapó foi na cozinha/Comer bunda de iaiá’”, ele conta. “Um dia, Aldir ouviu, aproveitou a ideia e escreveu: Hermeto foi na cozinha/Pra buscar o instrumental.”

 

A MUSA DESCALÇA

No quinto dia de gravação, 8 de julho, quinta-feira, a cantora e compositora Joyce Moreno e seu marido, o baterista Tutty Moreno, chegam ao estúdio para registrar Aqui, Daqui. Os dois têm 73 anos e parecem um jovem casal de namorados, tanto assim que ouvem abraçados a canção que acabaram de gravar.

Sá Freire pinçou o poema Aqui, Daqui em meio aos escritos de Blanc e propôs que Joyce o musicasse. A compositora levou menos de um dia para responder com uma melodia que resolvia com naturalidade os versos praticamente sem rimas:

Andando aqui, descalça
Dona da casa
Armando aqui mexidos nos diversos [sentidos
Chorando aqui, pagando sua parte
No que estamos pagando pra ver.

Dormindo aqui, a mais selvagem
A mais pura,
A que não sabe nada, e tem mais jogo [de cintura
E saindo, no dia seguinte, uma mulher
Maravilhosa, inteira e íntegra.
[…]
Andou aqui descalça, dona da casa,
Saiu daqui, nos saltos, dona de mim.

Quando leu o poema, Joyce perguntou a Sá Freire: “Isso é começo de namoro, né?” Era. Sá Freire e Blanc se conheceram nos anos 1970, mas só iniciaram um relacionamento em meados da década seguinte. Antes disso, em 1983, ela chegou a cuidar de um bar em Niterói que batizou de Vida Noturna, em referência à canção homônima de Bosco e Blanc. Os itens do cardápio tinham como nomes os versos de O Bêbado e a Equilibrista. “Era um bar de esquerda”, brinca Sá Freire. Eles se casaram em 1988.

A gravação começa: Joyce Moreno na voz e no violão, Tutty Moreno na bateria, Bastos ao piano e Helder no baixo. Terminado o take, o baixista comenta: “Letra linda.” Joyce responde: “A musa está aqui” – e olha na direção de Sá Freire, que chora.

Sá Freire mostra, na tela de seu celular, o recorte de jornal que documenta aquele período de “começo de namoro”, uma coluna de Blanc no jornal Tribuna da Imprensa de 9 de maio de 1986, com o seguinte subtítulo: “O colunista revela a identidade de uma de suas personagens e dedica a ela esta poesia.” A dedicatória é “Pra Mari Lúcia”, impressa em itálico. “Ele ainda escrevia meu nome com acento, depois passou a escrever certo”, diz, num detalhe que parece tirado de um verso do seu marido. Para não restar dúvidas, a coluna é ilustrada com o título eleitoral da namorada.

 

TESÃO ENTREDENTES

Cinco dias depois, no dia 13, a gravação é retomada. A convidada daquela terça-feira é Clarisse Grova, que em 1997 dedicou um disco (Novos Traços) a parcerias inéditas de Aldir Blanc e Cristovão Bastos. Ela está ali para gravar Outro Último Desejo, com música que escreveu para os versos de Blanc. A compositora e cantora carioca de 63 anos aproveitou a sugestão da letra, que faz referência a Último Desejo, de Noel Rosa, e criou uma melodia que também dialoga com a canção do poeta da Vila.

Blanc tinha em Noel Rosa seu ídolo maior, e as similitudes entre eles são lembradas no estúdio. Os dois tiveram formação na área médica – Noel Rosa abandonou a faculdade de medicina, Blanc se formou e especializou-se em psiquiatria – e Vila Isabel é importante para a poesia de ambos. Além disso, foi nesse bairro da Zona Norte do Rio, onde viveu Noel Rosa, que Blanc passou a infância. Foi ali que eles também morreram, no mesmo dia 4 de maio – Noel Rosa, em casa, em 1937; Blanc, no Hospital Pedro Ernesto, em 2020.

Quando Grova solta o primeiro verso (Quero esquecer totalmente o que nós dois construímos), Sá Freire expressa sua emoção à la Blanc: “Só nesse ‘quero’ já me fodeu.” Quando todos vão conferir o resultado, Helder comenta: “O ‘tesão’ da letra é cantado com a boca fechada, travada.” Grova lança um olhar de concordância. João Lyra, violonista de 72 anos com formação sólida de choro e bossa nova, observa, com a autoridade de quem já tocou com artistas como Elizeth Cardoso e Angela Maria: “Agora chegou o samba-canção.”

De visita ao estúdio, Moacyr Luz ironiza aquele tipo de letrista que se esconde por trás de metáforas herméticas. “O sujeito parece que quer falar de algo que está acontecendo com ele, mas não quer que ninguém saiba”, diz. A canção Outro Último Desejo vai na direção oposta:

Aos canalhas que eu odeio
Diga que fui seu esteio
Que pensa em voltar pra mim
Que meu nome ainda lhe causa
No coração uma pausa
E o remédio é um botequim.

 

MARY MUFFINS

De boné vermelho, João Bosco se aproxima das caixas de som do estúdio da Biscoito Fino, acompanhado do pianista Cristovão Bastos, do baixista Jorge Helder e do percussionista e cavaquinista Pretinho da Serrinha. Os quatro ouvem atentos, na tarde do dia 14 de julho, quarta-feira, a primeira passada da gravação completa que fizeram de Agora Eu Sou Diretoria.

O primeiro take saiu com jeito de definitivo, para a satisfação dos músicos. Isso se deve, claro, ao talento dos instrumentistas. Pretinho, que se juntou ali a Bastos e Helder, é um percussionista de 43 anos que começou a batucar ainda criança na comunidade da Serrinha e nos últimos tempos já foi requisitado por artistas como Marisa Monte e Seu Jorge. Recentemente, participou do novo disco de Caetano Veloso, Meu Coco, na faixa Sem Samba Não Dá. O time inclui ainda o trombonista Vittor Santos, que gravou sua participação mais tarde, no mesmo dia. Com 56 anos, Santos esteve à frente da prestigiada Vittor Santos Orquestra e tocou em discos de Tom Jobim e Tim Maia. Como resumiu Julia Bosco – filha e produtora de João Bosco que o acompanhava no estúdio –, referindo-se aos músicos: “O mais bobo aqui amarra o sapato com luva de boxe.”

“Agora o Aldir é diretoria mesmo, tá lá em cima olhando pra gente”, diz João Bosco, em uma pausa da gravação. Ele continua: “Todos os heróis, personagens, lutas inglórias das letras do Aldir representam o Brasil na sua amplitude. Aldir não é temporário, não é como esse nanogoverno insignificante. O Brasil não começa agora. Cristovão reverencia Waldir Calmon, Pretinho tem toda uma memória no seu batuque, meu violão carrega uma ancestralidade fantástica, a gafieira está ali no trombone de Vittor Santos. Isso me emociona, porque é uma coisa de você pegar na mão do mais velho pra atravessar a rua e não ser atropelado. Aldir agora estende a mão para os mais novos e todos que estamos aqui. E agora ele é diretoria, porque se amplia exatamente a necessidade que sentimos dele.”

Bosco arremata o discurso com uma nota de esperança: “A alegria do Brasil vai voltar.”

Quando termina a gravação de Agora Eu Sou Diretoria já é noite. É hora da festinha surpresa que Sá Freire preparou para Bosco, que no dia anterior havia feito 75 anos. Presença constante, mas discreta, no estúdio, a mulher de Blanc faz do local uma extensão simbólica do apartamento da Tijuca. Dias antes, havia levado para o café dos músicos seus bolinhos de frutas – ou “mini Mary muffins”, como ela os batizou –, receita sem açúcar criada por ela, pois Blanc era diabético. Como o bolinho fez sucesso, para a festa de Bosco ela fez uma versão tamanho família do “mini Mary muffin”. “Acho que vou batizar essa receita de bolo Bidu”, diz Sá Freire. Bidu era o apelido de Blanc, que adorava a guloseima.

 

SÍLABAS DE BETHÂNIA

Dias antes de Maria Bethânia registrar Palácio de Lágrimas, o produtor do álbum, Jorge Helder, fez uma gravação da música, cantando e se acompanhando ao violão. A gravação era para que a cantora se familiarizasse com a letra e escolhesse o tom mais confortável para sua voz. “Ela disse que eu não estava interpretando bem”, contou Helder, rindo.

A gravação com Bethânia acontece em 24 de julho, sábado. Em Palácio de Lágrimas, parceria de Blanc com Luz, a cantora ilumina outra faceta do Brasil do letrista. Em vez do botequim e da gafieira, a canção aponta para o interior do país, no arranjo que traz somente o violão de sete cordas de João Camarero e a viola caipira de Paulo Dafilin. Aos 31 anos, o paulista Camarero é um dos violonistas mais celebrados de sua geração e tem acompanhado Bethânia em seus últimos trabalhos. Dafilin, 57 anos, também paulista, é outro músico próximo da cantora, como instrumentista e compositor. Duas canções de Noturno, álbum que Bethânia lançou neste ano, levam sua assinatura.

Helder e Camarero chegam antes da cantora para preparar o violão do arranjo. “Esse acorde aí a Bethânia não vai gostar, mas vamos mostrar a ela”, diz o produtor ao violonista, apoiado em sua longa experiência com a cantora. “A Bethânia sempre sabe o que quer, é um aprendizado tocar com ela”, descreve Camarero. “O que temos que fazer é tentar entender, o que nem sempre é de primeira. Mas quando chegamos ao resultado final, percebemos que aquela solução linda estava na cabeça dela desde o começo.”

Bethânia faz sugestões na introdução e pede que Camarero mude um acorde (mas não o que Helder apontou), pois não a deixava confortável para cantar determinada parte da melodia. Resolvidos os caminhos da música, ela precisa de poucos minutos – e um único take. “É como eu gosto de fazer. Quando abro a boca, é pra sair gravando”, diz a cantora. “Não penso muito, deixo a canção entrar em mim, fico atenta ao modo como eu a absorvo. Palácio de Lágrimas veio suave e ao mesmo tempo com uma luz, umas quebradas.” Ao ouvir a interpretação de Bethânia, dias depois, Moacyr Luz comentou que ela dividiu as sílabas de uma forma que ele nunca imaginaria: “Soletrou e respirou à la João Gilberto.”

 

CHICO E O SONETO

Na véspera de sua gravação, Chico Buarque pediu para adiantar o horário. O motivo? Precisava sair a tempo de ver a disputa entre Fluminense e Cerro Porteño, no segundo jogo das oitavas de final da Copa Libertadores da América. No dia 3 de agosto, o compositor chega (pontualmente) à gravadora Biscoito Fino, vestido com uma camiseta azul por baixo de uma camisa de flanela xadrez da mesma cor, figurino adequado ao inverno carioca. O engenheiro de som Lucas Ariel e o assistente de estúdio Pedro Mesquita estão cientes da prioridade, bem como os músicos: não pode haver atraso.

Tudo corre bem naquela terça-feira, inclusive para o Fluminense, o time de Chico Buarque, que ganha de 1 a 0 – a eliminação do tricolor da Libertadores viria apenas duas semanas depois.

Voo Cego foi escolhida por Chico Buarque em meio a outras inéditas de Aldir que chegaram às suas mãos. “A letra é um soneto, que é uma forma muito complicada de musicar. São dois quartetos e dois tercetos, então quando chega nos tercetos parece sempre que está faltando algo. Sei disso porque já fiz”, avalia o compositor. Ele enfrentou dificuldade equivalente ao fazer Soneto, que é parte da trilha do filme Quando o Carnaval Chegar, de Cacá Diegues. “Mas Leandro Braga brilhou, musicou com muita sabedoria. Tanto a melodia quanto o poema surrealista de Aldir bateram no momento em que ouvi”, completa.

A definição de “surrealista” se deve a estes versos:

Quando o fogo do meu corpo foi virando
A bruma consentida entre os casais,
Pombas neuróticas se ergueram em [bando,
Partindo feito velas do meu cais.
Então eu fui silêncio falso e brando,
Nenhuma ave em mim e em meu [marido,
As pombas foram aos pares procurando
Onde o desejo havia se perdido.

Mas súbito crispou-se um dos meus [seios.
Um homem novo abriu meus devaneios,
Gerando um grito longo e surpreendido.

Um pássaro galante e proibido
Tentou o voo em busca de seu par,
Mas tonto de prazer caiu no mar.

Todos param para ouvir o resultado da gravação, com a voz de Chico acompanhada pelo piano de Bastos e o baixo de Helder. “Trabalho com Chico há mais de vinte anos e ainda fico nervoso perto dele”, confidencia o baixista. Ao fim da audição, Sá Freire agradece a Chico Buarque. “Amo essa música, mas achei que ninguém fosse querer cantar ‘pombas neuróticas’”, diz ela. “É comigo mesmo, mato no peito”, brinca o cantor. Dias depois, o maestro Jaques Morelenbaum acrescentou seu violoncelo à gravação.

Apesar da preocupação com o jogo, Chico Buarque aproveitou para gravar no mesmo dia, na Biscoito Fino, sua participação em outro projeto, com canções do baterista e compositor Wilson das Neves (1936-2017), seu parceiro em Grande Hotel. Os músicos começam a lembrar histórias relacionadas a Neves, que tocou com meio mundo da música brasileira e era conhecido por seu carisma de malandro clássico e seu raciocínio rápido.

Helder conta um episódio ocorrido durante uma turnê de Chico Buarque, da qual ele e Neves faziam parte. Poucos minutos antes de um show no Canecão, no Rio de Janeiro, Neves recebeu o cachê, protestando porque havia muitas notas de valor pequeno e ele não teria tempo de conferir. “Fomos todos para o palco e, a certa altura, quando o Chico começou a cantar Eu Te Amo, só voz e violão, eu escutei uma voz atrás de mim: ‘Vinte, quarenta, sessenta…’” Era Neves contando zelosamente seu cachê, num dos momentos mais intimistas do espetáculo.

No fim do dia, Helder mostra em seu celular a capa pronta do disco Aldir Blanc Inédito, com ilustração de Elifas Andreato: uma caneta de cuja ponta cai uma gota de sangue sobre uma folha de papel. Comenta-se que a caneta parece uma perna de mulher, com salto alto, o que leva à lembrança da capa do álbum 50 Anos. Nesse disco lançado em 1996, Blanc está sentado numa poltrona, fumando uma cigarrilha, enquanto em primeiro plano aparece a perna de uma mulher com um sapato vermelho. Sá Freire conta, rindo, que Blanc está fumando na foto por causa do nervosismo que lhe causou a proximidade com as pernas de Monique Evans, a modelo que posou para a imagem. “Ele não fumava há anos. Mas, quando sugeriram aquela pose que acabou sendo a da capa, com a perna dela a poucos centímetros do seu rosto, ele pediu: ‘Mary, me traz a cigarrilha.’”

 

NERO, O DETALHISTA

Seis de agosto é o dia de gravação da última canção do disco, tanto na cronologia das sessões de estúdio como na ordem final das faixas de Aldir Blanc InéditoVirulência traz os versos mais recentes do letrista, escritos em 2020 e musicados pelo ator e cantor Alexandre Nero com a participação de Antonio Saraiva. Em suas conversas com o letrista, Nero perguntou a ele: “Como anda a equilibrista?” (referindo-se ao verso da canção O Bêbado e a Equilibrista). A resposta foi a seguinte: “Está por um fio.” A frase acabou incorporada à nova música, no verso Por um fio, equilibristas no nada.

É o ator de 51 anos que interpreta a canção, acompanhado pelo acordeom de Bebê Kramer, o violão e o baixo acústico de Jorge Helder, que assina o arranjo, e o piano de Marcos Nimrichter, um músico, também de 51 anos, que já acompanhou artistas como Milton Nascimento e Stanley Jordan, além de ter trabalhado com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) e a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB).

Aquela era a segunda tentativa de Nero de registrar a canção para o disco. Ele já havia passado a tarde e um trecho da noite de 17 de julho no estúdio. Como Virulência não se enquadra nos gêneros em que Blanc trafegava normalmente, como o samba, a valsa ou o samba-canção, foi mais difícil encontrar a sonoridade ideal. O cantor estava especialmente atento aos detalhes, o que revelava a importância que tinha para ele estar ali, na condição de parceiro de Blanc e entre alguns músicos importantes. Como o trabalho musical de Nero é bem menos conhecido do que o de ator, sua voz e interpretação seguras impressionaram. “A maneira como ele canta ‘por um fio’, como se fosse o fim da respiração… Ficou ótimo isso”, comenta Bastos.

Nero inicialmente gravou voz e violão juntos, se acompanhando. Depois, entraram os outros instrumentos, como o acordeom de Bebê Kramer. “A canção é invernal, não tem nada da linguagem nordestina do acordeom. A ideia é tirar Aldir do Rio e levá-lo pro Sul”, explicou em 17 de julho o curitibano Nero, dirigindo-se a Kramer. O gaúcho sorriu, entendendo perfeitamente a ideia. Na gravação que se ouve no disco, o acordeom sugere tangos. Kramer comentou: “Quando a atmosfera é como essa de Virulência, longe do forró, ligo meu botão Piazzolla, que é talvez a maior referência desse acordeom do Sul, com mais dramaticidade e melancolia.”

Com o avançar da hora e o cansaço dos músicos, decidiu-se em 17 de julho que outra sessão seria marcada. Levou vinte dias para que os músicos retornassem ao estúdio, por causa da agenda apertada do ator, que estava gravando a novela Nos Tempos do Imperador, então prestes a estrear (em 9 de agosto). A novela de época justifica o volumoso bigode com o qual Nero apareceu na Biscoito Fino.

A gravação de 6 de agosto flui bem. A base de piano e acordeom é a primeira a ser gravada. Sobre ela, Nero registra sua voz num único take, retornando à cabine apenas para ajustes pontuais em dois ou três versos. O violão dessa vez fica a cargo de Helder. Depois de dois dias de estúdio, a faixa alcança a precisão imaginada pelo detalhista Alexandre Nero.

Ponto final da gravação e do álbum, Virulência é a canção de Aldir Blanc Inédito que mais evidencia o desconforto do artista com o rumo que o Brasil tomou nos últimos anos, com o governo Bolsonaro. Um vírus nos virou do avesso é o verso que abre a canção, que diz ainda:

Madrugada ouço o choro de crianças baleadas

Que brincando tombam na sala

Quilombolas, guajajaras machucadas
Nas florestas e favelas
Por um fio, equilibristas no nada.

Que falta me faz meus pais.
Que falta nos faz a paz.
Que falta nos faz um país.   

(Fonte: Revista Piauí, edição 182, nov/21 - Aqui).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Faça o seu comentário.