Para a crítica especializada norte-americana, o diretor, roteirista e produtor Adam MacKey é o “profeta da raiva” – em seus filmes ele sempre parece estar furioso com o estado da nação. Por quê? Porque todos sempre parecem estar anestesiados ou indiferentes a alguma ameaça catastrófica que se aproxima. Todos parecem tão perdidos na exuberância da riqueza, poder, prazer ou nas suas teias de conflitos pessoais que simplesmente ignoram qualquer evento externo às suas bolhas.
Foi assim no filme A Grande Aposta (2015) no qual quatro clarividentes do mercado financeiro resolvem apostar contra a exuberância do mercado imobiliário, a bolha que iria explodir em 2008, sob a descrença generalizada de todos – como investir contra a instituição mais sólida do país?
Também é assim na série Sucession (2018- ): uma família está tão imersa nos conflitos familiares da sucessão do controle de um dos maiores e mais tradicionais conglomerados de comunicação, que simplesmente subestima ou não consegue compreender a ameaça das rápidas transformações tecnológicas que poderão destruir os negócios da família.
Da mesma forma é a corrosiva sátira Não Olhe para Cima (2021): um enorme cometa destruidor de planetas se aproxima em rota de colisão da Terra, mas todos estão tão imersos na cultura de clickbaits, memes, celebridades e polarizações políticas nas mídias sociais que a própria percepção do que seja realidade foi relativizada – e se o cometa for também mais uma dessas iscas para gerar clicks e receitas on-line?
É claro que a resposta coletiva para uma catástrofe astronômica que velozmente se aproxima será a pior possível.
Porém, o mais irônico é que o próprio filme de Adam MacKay pode ser considerado um cometa que veio diretamente de um estúdio cinematográfico em rota de colisão com o planeta mídia, enredado na malha semiótica das redes sociais e mídias de massa.
A crítica norte-americana recebeu Não Olhe para Cima ou com indiferença (um filme insosso ou monótono cujo único ponto alto é ver Leonardo Di Caprio histérico gritando “vamos todos morrer!”), crítica estética (um elenco estelar desperdiçado) ou simplesmente um conjunto de piadas mal-feitas nas quais o diretor não deixaria nenhum bom momento ser desenvolvido até o fim.
Quem sabe, porque as cabeças pensantes liberais dos EUA estejam aliviadas depois de Trump ter sido derrotado pelo democrata Biden e, talvez, achem que o tema de Não Olhe para Cima já não é mais urgente. Está ultrapassado.
Para o público dos EUA, o filme seria uma óbvia crítica ao negacionismo das mudanças climáticas e o cometa uma poderosa metáfora para o apocalipse ambiental que nos espera se não fizermos nada.
E aqui no Brasil, as redes sociais ficaram em polvorosa ao ver no filme o perfeito retrato da realidade política brasileira. Seria possível ver em todos os atores os personagens do drama político brasileiro do negacionismo da pandemia: a presidenta Merryl Streep emulando Bolsonaro; seu filho assessor na Casa Branca como Carluxo; Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence representando a dupla de cientistas Atila Iamarino e Natália Pasternak desesperados tentando alertar a todos através das mídias, e assim por diante.
Ok! Mas parece que Adam Mackay está sendo vítima daquilo que sua raiva pretende denunciar: o fenômeno tautista do “media life”, conceito criado pelo pesquisador Mark Deuze. Para ele, não vivemos mais com as mídias (como era na cultura das celebridades do século XX), mas vivemos nas mídias – nossas relações com as mídias se tornaram onipresentes, universais, quase codificando os nossos genes – Leia DEUZE, Mark, Media Life, Polity Press, 2012.
“Gostemos ou não, todos os aspectos de nossas vidas têm lugar nos meios de comunicação”, afirma Deuze.
O media life seria o cúmulo de um fenômeno que atinge todos os sistemas tecnológicos: o tautismo (tautologia + autismo midiático) – tendência autopoiética dos sistemas fecharem-se em si mesmos, tornando-se autônomos e autossuficientes. O mundo exterior até existiria, mas ele seria filtrado através da descrição que o sistema faz de si mesmo.
A ironia na recepção do público a Não Olhe para Cima está justamente na ilusão de exterioridade: o filme supostamente seria uma “crítica” à nossa realidade política. Não! O que a raiva de Adam MacKay mira é nessa rede semiótica midiática (mídias de massa + sociais) através da qual pensamos que fazemos uma “crítica à realidade”.
O Filme
Essa produção Netflix gira em torno de um cometa que ruma rapidamente em direção da Terra. É um pouco maior do que o meteoro que exterminou os dinossauros e, de acordo com as pessoas que o descobriram pela primeira vez - a estudante de PhD do estado de Michigan, Kate Diabiasky (Jennifer Lawrence) e seu professor, Dr. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) - atingirá o nosso planeta em cerca de seis meses e causará um evento de nível de extinção.
Junto com o Dr. Oglethoper (da agência de Defesa Espacial), a dupla de cientistas tenta alertar o presidente Orlean (Meryl Streep) sobre o iminente “evento de extinção”, apenas para tomarem um longo chá de cadeira. Para depois encontrá-la mais preocupada com as eleições de meio de mandato ao lado do indiferente filho Chefe do Gabinete Jason (Jonah Hill). Para Orlean, a imagem do cometa é muito “feia” para a opinião pública.
Vendo que da presidenta Orlean (uma pitada de Hillary Clinton com colheres cheias de Trump) nada conseguirão, fazem a pior escolha possível: anunciar a verdade para o mundo num telejornal matinal de notícias e entretenimento (infotenimento) dos âncoras Jack e Brie (Tyler Perry e Cate Blanchett) que sempre procuram o viés positivo nas más notícias.
Kate e Dr. Mindy ficam perplexos quando o telejornal transforma iminente extinção da humanidade numa “curiosidade científica”, num quadro do programa que sucede a fofocas da vida de celebridades.
Kate explode de raiva no programa, para ser rotulada como louca e se transformar em meme na Internet. Enquanto Dr. Mindy se torna a parte aceitável da Ciência: se perde no caminho, para ter um caso com Brie, perder sua esposa e filhos e se corromper no mundo dos influenciadores digitais.
Tudo muda para ainda pior quando Orlean vê interesse estratégico político em reconhecer a existência do cometa – um escândalo envolvendo seu partido na disputa eleitoral exige algum acontecimento para desviar a atenção do público. Transforma o lançamento de ônibus espacial para destruir o cometa num evento patriótico – levando um general idiota de extrema-direita que acha que destruirá o cometa apenas com rajadas de metralhadora no espaço.
Até tudo ser cancelado com a entrada de um novo personagem híbrido: o bilionário de uma Big Tech do Vale do Silício chamado Mark Rylance (Peter Isherwell, numa mistura de Steve Jobs com Elon Musk) que vê no cometa a oportunidade fantástica de lucros (US$140 trilhões de ativos na forma de minério de matéria-prima para a indústria eletrônica). Decide minerar o objeto celeste com robôs, antes de destruí-lo.
O problema é que o tempo é exíguo, enquanto acompanhamos nas redes sociais um fenômeno ainda pior que das fake news: a pós-verdade. A transformação da dupla de cientistas Dr. Mindy e Kate em memes-celebridades e a polarização política nas redes transformando qualquer fato científico em opinião ou viés.
No pouco tempo que falta para a humanidade fazer alguma coisa a respeito, as pessoas ficam grudadas em seus celulares não levando nada a sério. Pesquisas sobre a porcentagem das pessoas que acreditam ou não na existência do cometa viram discussões intermináveis nas mídias, minando a verdade científica e, o que é pior, a própria metodologia científica através da qual se constrói a verdade.
Pateticamente Dr. Mindy reivindica “revisão entre os pares” de instituições científicas como única forma de tornar mais precisos os dados sobre o cometa. Mas todos ao redor estão mais preocupados no rendimento midiático de pesquisas de opinião, alcance dos memes e as curtidas em “lacrações” nas mídias sociais.
Acertadamente, Não Olhe para Cima descreve como o relativismo radical da pós-verdade está na base da onda negacionista: afinal, quem o cientista pensa que é para querer impor sua “opinião”?
O destino irônico de Não Olhe para Cima – alerta de spoilers à frente
Mesmo quando o cometa se torna visível a olho nu, a presença ameaçadora no céu não é o suficiente para romper a rede semiótica na qual todos estão imersos. Nas mídias sociais, Kate exorta as pessoas a “olharem para cima”. Frase que apenas provoca reação polarizada negacionista para as pessoas fazerem o contrário. Como o faz a presidenta Orlean, conclamando aos eleitores “olharem para baixo e seguir em frente”, isto é, desde que votem em seu partido...
O panorama descrito pelo filme é tão tragicômico que mesmo no underground de jovens insatisfeitos, a indignação sincera de Kate transforma-se em memes ou ícones impressos em adesivos de skates. Até mesmo a “resistência” é prisioneira da matrix semiótica.
Aliás, o personagem de Jennifer Lawrence é a única coisa real no filme, aquela que entende realmente o que vai acontecer e está genuinamente assustada, enquanto Dr. Mindy está momentaneamente anestesiado pela máquina midiática de fazer celebridades instantâneas.
Portanto é irônico ver que o destino do filme no mundo não-ficcional é o mesmo do cometa dentro da narrativa ficcional: nas suas respectivas bolhas virtuais, cada um dá o seu “pitaco”: críticos veem um elenco estelar desperdiçado em “piadas incompletas”; no Hemisfério Norte, uma tragicômica metáfora do negacionismo climático e antivacina; e aqui abaixo do equador, a incrível coincidência de todos os personagens ficcionais representarem os protagonistas da tragédia do negacionismo político de Bolsonaro e de seus haters de extrema-direita.
E a ironia é também ver os mesmos personagens que viraram memes no filme, também virarem memes de Bolsonaro, Carluxo, Italo Iamarino etc. no mundo não-ficcional. A realidade imita a ficção na hiper-realidade.
Não foram Trump, Steve Bannon, Bolsonaro e Olavo de Carvalho que criaram a pós-verdade. Foi o caldo cultural relativista das tecnologias de convergência, o objeto do filme de Adam MacKey. Esses personagens da extrema-direita alt-right apenas se aproveitaram desse contexto tecnológico para criarem a bomba semiótica das fake news.
O que Não Olhe para Cima está raivosamente satirizando é justamente essa “media life” que envolve todas essas bolhas interpretativas. Embora Mark Deuze acredite que seja impossível encontrar um lado externo dessa matrix semiótica na qual estamos imersos, Adam MacKay o procura desesperadamente.
Para ele, somente será possível na proximidade da destruição do próprio planeta. Só então “a ficha cairá”. É exatamente isso que acompanhamos nas sequências finais. Dr. Mindy reconcilia-se com sua esposa e revê seus filhos e todos, juntos com Kate e Dr. Oglethoper, fazem a última ceia antes do fim do mundo.
“O problema é que nós realmente” - ele faz uma pausa - “nós realmente tínhamos tudo, não é? Quero dizer, se você pensar sobre isso”, reflete Dr. Mindy a certa altura. Na sequência anterior, enquanto pegava produtos no mercado para a ceia, ele descobre o quão diferente é o salmão industrializado do natural.
Em Não Olhe para Cima o vislumbre de que existe algo real fora da nossa matrix semiótica somente seria possível nos momentos que antecedem o fim de tudo. Talvez, esteja aí a raiz imaginária do atual zeitgeist sobrevivencialista: somente na ameaça da perda do objeto amado é que o descobrimos e passamos a verdadeiramente desejá-lo. - (Fonte: Cinegnose - Aqui).
Ficha Técnica |
Título: Não Olhe para Cima |
Diretor: Adam MacKey |
Roteiro: Adam MacKey, David Sirota |
Elenco: Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Meryl Streep, Cate Blanchett, Tyler Perry, Rob Morgan |
Produção: Bluegrass Films, Hyperobject Industries |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2021 |
País: EUA |
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Faça o seu comentário.