sábado, 4 de setembro de 2021

SORTILÉGIOS DE UM CINEMA ANTICOLONIALISTA

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Em "Um Animal Amarelo", Felipe Bragança coaduna sua conhecida verve de prestidigitador audiovisual com a acidez anticolonialista de um diretor português como Miguel Gomes


Por Carlos Alberto Mattos

Um ser fantástico africano que engole moças, um osso mágico que promete riquezas a quem o carrega, uma mulher que leva rubis incrustados no corpo, moçambicanos que expelem pedras preciosas pelo ânus, um barão salazarista amante das artes e da moral... Não são poucas as extravagâncias reunidas por Felipe Bragança em seu quinto longa-metragem, Um Animal Amarelo. Uma ambiciosa cadeia de fabulações conduz o personagem principal, um cineasta em crise (Higor Campagnaro), do Rio de Janeiro a Moçambique, dali a Lisboa e de volta ao Rio entre 1984 e 2019.

Narrado por uma moçambicana onisciente que se revelará uma dominatrix e contrabandista de pedras preciosas (Isabel Zuaá), o filme desafia tentativas de resumi-lo num fio coerente. Bragança coaduna sua conhecida verve de prestidigitador audiovisual com a acidez anticolonialista de um diretor português como Miguel Gomes. No roteiro escrito com o lisboeta João Nicolau, Fernando, o tal cineasta, tenta seguir os passos de seu avô (Herson Capri) em busca de fortuna no garimpo ("Quero ser rico e boçal"). Vai parar nas minas de Moçambique, onde é escravizado por locais para atuar na venda de pedras produzidas por seus intestinos.

Vingança do colonizado – eis uma leitura possível do enredo mirabolante, dividido em cinco capítulos, com títulos como "Fábula do pirata pálido" e "As merdas eternas de Portugal". Em Lisboa, Fernando se autonomeia Sebastião e se envolve com a lusitaníssima Susaninha, papel valorizado pela sensualidade de Catarina Wallenstein, a quem seu marido Bragança não se cansa de fetichizar até com banhos de leite. Mas é Moçambique que ocupa o centro da narrativa e tem seus melhores momentos em torno do famoso Grande Hotel da Beira, mítica ruína colonial ocupada por moradores pobres.

Por trás das aventuras de Fernando/Sebastião, patético simulacro de Indiana Jones, corre um comentário ora irônico, ora derrisório sobre o ofício do cineasta. Ele submete seu roteiro à avaliação de um gerente de banco, que se ri de suas invenções. Do ator com quem pretende trabalhar ouve conselhos para desenvolver melhor a psicologia do personagem e eliminar o espírito moçambicano que aparece regularmente. O inferno da cultura que vivemos atualmente no Brasil é referido de maneira apenas tangencial.

A parceria com a poderosa produtora portuguesa O Som e a Fúria carreou recursos de produção inéditos na carreira do diretor. A direção de arte de Dina Salem Levy é fartamente inventiva e bem aproveitada na construção de imagens sedutoras, muitas vezes surpreendentes. A tela 4x3 (quase quadrada) serve a uma estética mais compacta e anacrônica, que o filme usa a seu favor.

Um Animal Amarelo pode não alcançar a síntese pretendida dos fantasmas circulantes entre Portugal e suas antigas colônias. Pode também não integrar tantas ideias num sentido claro e coeso, entre a narrativa objetiva e o metacinema. Ainda assim, é capaz de nos enfeitiçar com sua audaciosa fantasia sobre os sortilégios que um filme logra engendrar.  -  (Fonte: Boletim Carta Maior - Aqui).

>> Um Animal Amarelo está na plataforma Sala Maniva. 

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