sábado, 27 de março de 2021

A CONJUNTURA E A AVALIAÇÃO DE KAKAY


"Diz Clarice: Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar?"  E segue a poeta:

Estou por assim dizer vendo claramente o vazio.

E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço.

Além do que:

que faço desta lucidez?”

Clarice Lispector em A Lucidez Perigosa

A vida está sempre a nos surpreender e conviver, bem ou mal, com as surpresas define um pouco quem somos nós. Durante anos, dediquei-me a enfrentar a grande fraude ao sistema de justiça que foi perpetrada pelo bando coordenado pelo ex-juiz Sergio Moro e seus asseclas, os procuradores da República membros da Força-Tarefa de Curitiba. Relatei isso no meu artigo “PODE ISTO, DR JUDICIÁRIO?”, publicado no último dia 12 de março. O julgamento sobre a suspeição do ex-juiz, discussão que se deu na 2ª Turma do STF, terminou poucos dias depois, 23 de março, e o resultado foi humilhante para o bando. Confesso que me vi e me reconheci em várias passagens dos votos que desnudavam as farsas.

Ficou comprovado o que venho pregando há anos: a criminosa prostituição e corrupção do sistema de justiça bem como uma intencional manipulação, com objetivos políticos, dos processos criminais que tramitavam na 13ª Vara de Curitiba. A parcialidade do ex-juiz e, por consequência, do grupo com ele conluiado deu margem à anulação do processo do ex-presidente Lula.

A gravidade dos fatos que vieram à tona não deu outra alternativa à Corte Suprema a não ser declarar a parcialidade de Moro. Na verdade, a nulidade se impôs. O Supremo Tribunal Federal entendeu que o então juiz Moro usou a força da toga, desonrando-a, para agir politicamente contra o ex-presidente. Em uma ousadia que só a certeza do apoio da grande mídia e a perspectiva de assumir o poder poderiam explicar.

Juridicamente, não há dúvida de que todo e qualquer processo em que seja parte o ex-presidente Lula, no qual tenha havido condução pelo o ex-juiz, há de ser declarado nulo. Nulidade absoluta, sem sequer aproveitamento de qualquer ato onde tenha o dedo parcial e criminoso do juiz. É preciso ler Boaventura Sousa Santos, no poema O Touro Confessa-se:

O sangue derramado não regressa

nem se aproveita

para as sobremesas da morte

pedaços do medo

sempre difíceis de juntar.

A decisão do Supremo é de tal maneira significativa que impõe reflexão sobre uma série de consequências. Uma delas diz respeito à necessidade de se apurar a responsabilidade, civil e criminal, de todos os atores envolvidos na farsa. Não é crível que um juiz instrumentalize o Judiciário, que membros do Ministério Público desonrem tão significativa instituição, todos visando assumir um poder ainda maior, e sejam simplesmente considerados parciais.

Ora, se aceitaram mercadejar a toga e os altos cargos, parece evidente a necessidade de se dar uma resposta à sociedade, à instituição do Ministério Público e ao Poder Judiciário. Despiciendo dizer que a maioria esmagadora dos agentes públicos é proba, séria e compromissada com a ordem constitucional. Os fatos estarrecedores que vieram à tona mostram, à saciedade, o intuito político do grupo e a falta absoluta de escrúpulos.    Ocorre que tal comprovação e julgamento se dão no momento mais crítico e crucial da história do país. O grupo do juiz parcial teve como estratégia de poder eleger o atual governo. Ou seja, esse presidente irresponsável, culpado pela morte de boa parte das vítimas da Covid 19, é filho legítimo do bando que foi considerado parcial. A tal motivação política que embasou a fundamentação dos votos dos Ministros para declarar a nulidade revela-se exatamente no apoio e no congraçamento dos grupos do ex-juiz e do capitão.

Vejam as trapaças da sorte e as artimanhas da vida! A atual crise sanitária é de tal monta, que o mais rumoroso caso, talvez do mundo, de obstrução do sistema de justiça tem que ficar em segundo, terceiro ou vigésimo plano. Nada pode ser mais importante do que fazer o impeachment, interditar, processar criminalmente, fazer novena para a renúncia, ou seja, retirar democraticamente o presidente da República do cargo.

Longe de ser uma questão política, partidária, ideológica, é uma definição de sobrevivência. Por isso, o discurso, forte e oportuno, do presidente da Câmara Arthur Lira alerta para que tudo tem limite e que a Casa do povo acendeu o sinal amarelo. Lembra ainda que, mesmo fatais e amargos, a constituição federal tem os remédios para o enfrentamento da tragédia. Cumprir os ritos e a ordem constitucional é verdadeiramente colocar o povo brasileiro acima de tudo.

Trata-se de uma definição de sobrevivência. Chegamos a 3 mil mortos por dia, mais de 300 mil mortos oficiais. O Brasil hoje é responsável por 1/4 das mortes pelo vírus no mundo! Uma tragédia. Um escândalo. Uma dor sem fim ao ver corpos empilhados em corredores de hospitais, covas abertas como se fosse uma praça de guerra, pessoas sem ar buscando por aparelhos e tubos de oxigênio que a incompetência e a má-fé deixaram de providenciar. Todo esse show de horror está amparado na necropolítica e no culto à morte, que são a base teórica do governo que nos mantém à deriva.

Vivemos uma tempestade perfeita, um sistema político falido que se alimenta de uma sociedade assassina e hipócrita. Um amontoado de egoístas querendo manter seus privilégios, mesmo em tempos de guerra. Falta honradez para entender a dimensão da tragédia. Falta humanidade para chorar a perplexidade, o medo, a angústia. E dimensionar o tamanho da dor de pessoas muito próximas, que são nossas dores íntimas e que nos aniquila.

Tudo mais tem que ser para depois da tragédia. Apurar as responsabilidades para que o caos não se eternize. Mas, agora, cuidar da crise sanitária. Nada compensa a perda de uma pessoa amada. O relato dramático e diário dos mortos abandonados à própria sorte, que não tiveram uma despedida digna. O crescente medo que já supera a angústia de passar a fazer parte da estatística em um hospital, ou o pavor de entrar em um tubo sem luz, sem ar, sem afeto, que é o que simboliza o desconhecimento da doença, tem que nos fazer ser maiores do que somos.

Em nome da vida e, também fortemente, numa aposta contra o sofrimento dos milhares abandonados à própria sorte, vamos exercer a solidariedade antes e acima das paixões e das definições políticas, vamos engolir o verme para vencer o vírus. Inspiro-me no nosso Caeiro brasileiro, Manoel de Barros:

Tenho uma confissão: noventa por cento do que escrevo é invenção; só dez por cento é que é mentira.”

Vamos tentar enxergar através das espessas e turvas nuvens que nos cegam. Vamos respirar o ar tênue, escasso, que nos deixa ofegante, e dividir uma lufada de ar fresco. Vamos estender as mãos para um abraço imaginário, mas que, ainda assim, conforta.

Enfim, vamos acreditar que tentar humanizar os bárbaros e conviver com as forças do obscurantismo pode ser a única maneira de fazer a travessia. Numa guerra tradicional eu não toparia tal concessão. Na angústia dilacerante do isolamento eu, mesmo sem me reconhecer, vejo o melhor de mim na entrega pela sobrevivência do outro. Muito antes da minha vontade de viver, pulsa a necessidade de ver a vida que habita no outro tomando corpo, forma e cores.

E uma espécie de sonho, torpor ou ilusão vem me aconchegar e dizer que não é justo eu comemorar a vitória fantástica do resgate do sistema de justiça, se o cidadão para o qual esse sistema foi pensado está morrendo sem ar e sem esperança, por causa de um sistema político fascista, negacionista e sádico.  Em nome da vida, do respeito e do direito a uma morte digna, eu me rendo e busco a saída possível, mesmo sem ter interlocutores que entendam o que significa dignidade, solidariedade, empatia e justiça.

Confesso que vou tentar. E amparar-me em João Cabral de Melo Neto, na Psicologia da composição:

Saio de meu poema

como quem lava as mãos.

 Algumas conchas tornaram-se,

que o sol da

atenção cristalizou;

alguma palavra que desabrochei, como a um pássaro.

Talvez alguma concha

dessas (ou pássaro) lembre,

côncava, o corpo do gesto

extinto que o ar já preencheu;

 talvez, como a camisa

vazia, que despi.”"

 

(De Antonio Carlos de Almeida Castro [Kakay], texto intitulado "A novena e o capitão", publicado no site Poder 360 - Aqui.

Kakay, 61 anos, nasceu em Patos de Minas, MG, e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal. Escreve para o Poder360 sempre às sextas-feiras).

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