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"O que eu quero deixar claro neste artigo é que o fato de, em pleno século XXI, 2 bilhões de pessoas (uma em cada quatro) viverem em insegurança alimentar e nutricional, segundo dados da FAO de 2019, não é uma tragédia natural; não é o saldo de uma luta de vida e morte contra a natureza. Na verdade, a Fome é uma condição artificial, criada. É uma decisão Política: não usar os recursos disponíveis no mundo para alimentar as pessoas famintas."
Imagine uma vala aberta com lixo radioativo.[2] Por décadas. Por séculos. Agora, imagine que existam tecnologia e recursos para isolar completamente este lixo radioativo, tornando-o inofensivo. Mas, imagine que isso não seja feito. Imagine que as empresas invistam seus recursos na produção de medicamentos e tratamentos para venda. Imagine que os governos comprem esses medicamentos, tratamentos e outras terapias, e que os distribuam… há décadas, mas não para todas as pessoas. Imagine que as pessoas, aquelas que possuam dinheiro, comprem estes tratamentos e medicamentos. Agora imagine as que não possuem dinheiro e que não tenham acesso aos benefícios do governo. Estas estão abandonadas por uma crueldade intencional, posto que existem recursos não utilizados para cuidar delas.
Não é preciso ser físico para saber que a radiação provoca efeitos terríveis. Desde a morte rápida, doenças que se arrastam pela vida, até a desorganização dos genes que serão transferidos para as próximas gerações. Não é preciso ser um gênio para saber que o solo e a água estarão contaminados, por muito tempo. Quanto mais tempo a vala continuar aberta, mais seus efeitos perniciosos – e as oportunidades de lucro e de controle político delas decorrentes – permanecerão disseminados. Com a Fome é a mesma coisa. Para dar apenas um exemplo: a deficiência de ferro torna as grávidas mais vulneráveis à morte e os fetos a diversos tipos de doença e malformações. Uma em cada três mulheres em idade reprodutiva no mundo ainda sofre com anemia (FAO, 2018, p.16). Estes são males sofridos por indivíduos, famílias e pelas sociedades famintas, transmitidos inclusive por vias hereditárias (Batista Filho, Souza, Bresani, 2008).
Agora, pare para pensar em todos os recursos que foram investidos para o desenvolvimento da tecnologia radioativa. Todas as possibilidades. Claro, há coisas boas e importantes ali. Não se trata de rechaçar os materiais radioativos por princípio – bem, como leigo, talvez seja, mas isso não importa – O que importa é que muitos recursos foram aplicados para desenvolver uma tecnologia radioativa e tratamentos a ela, sem resolver os problemas em definitivo. Este cenário assustador que conseguimos traçar com a radioatividade se torna menos terrível quando falamos da Fome. Mas, por quê?
Talvez seja porque as pessoas pensem na Fome como uma coisa que não existe concretamente. De fato, o lixo radioativo existe; os químicos tóxicos existem; mas a Fome não existe como algo concreto. Por outro lado, mesmo se seguirmos o conselho do argentino Martin Caparrós (2016) e pensarmos que a Fome não existe: que o que existe são pessoas famintas; mesmo assim, de algum modo, as pessoas famintas não são uma preocupação imediata e urgente.
Isso não é à toa. Foram séculos de trabalho intenso e incansável para isolar as pessoas famintas e para anestesiar permanentemente a sociedade da dor que pode ser ter empatia com quem tem fome. Foram necessárias revoluções industriais e a disseminação global de um sistema social – o capitalismo. Foi necessária a instauração de um sistema político internacional sob a mão pesada do colonialismo. Foi necessária a instalação estrutural do racismo como princípio hierarquizante da distribuição de recursos, sobretudo dos alimentos (Patnaik, Patnaik. 2017; Almeida, 2019). Foram necessárias diversas medidas paliativas e diversos sistemas de crenças para que as pessoas e os governos, em geral, aceitassem os famintos como parte natural da paisagem. Principalmente as mulheres famintas, com suas filhas e filhos condenados, antes mesmo de concebidos, a terem seu potencial humano limitado como herança de gerações de mães subnutridas. Foram necessárias instituições maleáveis e adaptáveis às elites e populações, em diversos tempos e espaços, para que as pessoas famintas, enquanto tragédia – repito –, se tornassem parte natural da paisagem. Lamento, mas é a vida, dizem.
Discursos deste tipo, que têm a intenção de tornar tragédias partes naturais da paisagem, como quando um vulcão explode ou uma tempestade inesperada varre o seu caminho são, na verdade, Política. Com P maiúsculo. Não política de politicagem, de alianças idôneas, de negociações etc. Política no sentido de Visão de Mundo, capazes de produzir grandes transformações, como discutiu Polanyi (2000). A Política, como dizia Raymond Aron (1966) entre outros, é a disputa pelo controle de instituições, como o Estado, para que se imponha uma Visão de Mundo à sociedade. Isso significa que muitas políticas públicas (no sentido de ações e programas do governo) poderiam ser diferentes, mas não são, porque estão amarradas a uma Visão de Mundo. A depender da Visão de Mundo dominante, certas soluções para problemas públicos sequer fazem sentido lógico, racional.
Um exemplo: Por causa da pandemia, o Programa Mundial de Alimentos estimou que mais pessoas poderiam morrer de consequências da fome do que por Covid-19. Ao mesmo tempo, produtores agrícolas estão jogando comida fora. Por que não doar a comida para os famintos imediatamente? Porque isso vai desorganizar os mercados, dizem. Eu entendo que doar comida pode ter impacto negativo nas vendas e realmente desestruturar mercados. Mas as pessoas estão literalmente morrendo de fome! Não há outra alternativa? Lamento, diz a Visão de Mundo dominante. E aí haja trabalho voluntário para conectar o mercado aos estômagos famintos. A revista Le Monde Diplomatique deste mês trouxe uma matéria sobre biossegurança. No argumento da autora Lucile Leclair, biossegurança é um novo nome para intensificação da industrialização do sistema agroalimentar. Quer dizer, conforme cresce o alerta global de que a produção industrial de animais e de que o desmatamento tornam o planeta uma bomba-relógio de pandemias como a que vivemos, como sustenta Rob Wallace (2020), a Visão de Mundo dominante consegue legitimar, como solução, a intensificação dos métodos industriais. Dobra-se a aposta. Por outro lado, desindustrializar o sistema agroindustrial é inconcebível como política geral. Desglobalizar os fluxos agroalimentares é um pecado.
O que eu quero deixar claro neste artigo é que o fato de, em pleno século XXI, 2 bilhões de pessoas (uma em cada quatro) viverem em insegurança alimentar e nutricional, segundo dados da FAO de 2019, não é uma tragédia natural; não é o saldo de uma luta de vida e morte contra a natureza. Na verdade, a Fome é uma condição artificial, criada. É uma decisão Política: não usar os recursos disponíveis no mundo para alimentar as pessoas famintas.
As raízes desta decisão se encontram na formação do sistema capitalista e do sistema político internacional, cujo epicentro foram os homens brancos europeus. Não quero dizer que antes destes processos de formação os famintos inexistiam. O que quero dizer é que os sistemas capitalista e político internacional nos quais vivemos hoje, com todas as transformações e adaptações que sofreram, legitimaram desde o princípio a Fome como um impulso e como um princípio organizador para a sociedade (Polanyi, 2000). Para isso, os institutos da propriedade privada e da soberania foram fundamentais. O primeiro legitima o afastamento das pessoas da sua relação com a natureza, de onde provêm os alimentos. É preciso, cada vez mais, ter dinheiro para comer. O segundo cria barreiras arbitrárias sobre quem, eventualmente, merece solidariedade para enfrentar a Fome.
Não podemos ignorar que desde a Segunda Guerra Mundial diversos tratados vêm consolidando o entendimento jurídico e político de que a alimentação adequada é um Direito Humano fundamental. Os mais importantes talvez sejam a Declaração de Direitos Humanos de 1948, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, a Declaração Universal sobre a Erradicação da Fome e Desnutrição de 1974, a Declaração de Roma de 1996, os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio de 2000 e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável de 2015. Mas, neste mesmo período, os governos e os maiores agentes econômicos nutriram políticas que incentivam a monocultura e a industrialização da alimentação. Diversas organizações e tratados internacionais incentivaram o transporte de comida e commodities a distâncias enormes, como a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Como explicou a mexicana Andrea Santos Baca (2019), O Tratado de Livre-comércio da América do Norte, que era conhecido como NAFTA e se tornou USMCA, foi responsável direto pelo declínio do cultivo do milho pelos mexicanos. Justo o México, que era uma Civilização do Milho.
Nas últimas décadas, governos e agentes econômicos poderosos têm nutrido políticas que buscam expor as pessoas às forças do mercado, por meio da diminuição de direitos trabalhistas e políticas sociais. Argumentam que isso aumentará a competividade e que, com mais competitividade, mais e melhores empregos surgirão. Ora, sabemos que na quase totalidade da Periferia do mundo a fome é um problema crônico, enquanto chegamos a pensar que a Fome havia sido superada no Centro do capitalismo. A diminuição drástica dos famintos no Centro do capitalismo foi uma bandeira em defesa desse sistema, inclusive no que toca ao aumento da exposição das pessoas às forças do mercado. Contudo, como a pandemia mostrou, a Fome não foi banida como impulso legítimo para a sociedade e, por isso, na ausência de condições econômicas, pessoas que vivem nos países centrais do capitalismo passaram fome. Simbolicamente, no Reino Unido, um dos epicentros do capitalismo: 1 em cada quatro pessoas experimentou insegurança alimentar na pandemia. Nos Estados Unidos, são um em cada seis: cerca de 54 milhões de pessoas. Os famintos retornaram porque a Fome, como princípio fundamental da sociedade, não foi banida.
O caso é semelhante no Brasil. Saímos do mapa da fome porque diminuíram as pessoas famintas. Mesmo assim o país tolerou que houvesse famílias famintas. O Direito Humano à Alimentação foi inscrito na Constituição? Foi. Houve programas de distribuição de renda e de incentivo a empregos e à produção? Houve. Mas estes não baniram a Fome, enquanto princípio, e foram facilmente desmontados, principalmente do golpe de 2016 para cá. A última pesquisa oficial apontou, com dados anteriores à pandemia, que aproximadamente 85 milhões de pessoas, ou um em cada três, vivem algum grau de insegurança alimentar e nutricional.
O caso brasileiro mostra que, embora importante, não é suficiente constitucionalizar o Direito à Alimentação (Lopes, Feitosa, 2019). É preciso tomar a decisão Política de banir a Fome como uma tragédia que faz parte natural da paisagem, e de culpabilizar os governantes que falhem nesta missão. O indiano Amartya Sem (2008) entendeu que democracias seriam menos tolerantes com fomes agudas. Isso não é suficiente, não diante dos recursos técnicos e financeiros do planeta. Na Índia, segundo o prof. indiano Prahbat Patnaik (2018), cerca de 300.000 camponeses se suicidaram nas últimas duas décadas em decorrência das dificuldades econômicas e do endividamento que resultaram do fim do apoio estatal à agricultura camponesa e à abertura à globalização.
O processo de acumulação primitiva do capital continua em marcha, como sustenta a profa. brasileira Virgínia Fontes (2010), entre outras. E continua aceito como ‘ossos do ofício’. Isso significa que agentes econômicos capitalistas continuam a expulsar populações camponesas e extrair renda de seu trabalho por métodos violentos e agora financeiros. É um processo global e tolerado, em geral, por todo o planeta. Esta é uma das razões para os povos dos campos e das águas serem comumente os mais famintos no mundo, e para que as mulheres camponesas sejam as mais famintas de todas. Os governos que se rebelam contra esses processos podem sofrer duras retaliações.
Ainda no que toca à acumulação primitiva, os povos dos campos e das águas que estão sendo expulsos de suas terras há séculos enfrentam amplas dificuldades para encontrar empregos ou outros modos de vida em suas regiões e isso foi crucial para o êxodo rural e o crescimento urbano desordenado de vários países da periferia do sistema internacional. Espanta descobrir que, em geral, os países periféricos são mais urbanizados do que os países do centro. Eles conformam o que Mike Davis (2006) chamou de Planeta Favela.
No Planeta Favela, cujos contornos estão em formação há séculos e no Brasil remontam especialmente ao fim da escravidão, o emprego formal é uma raridade. As pessoas retiram seu sustento da informalidade, informalidade que as deixa completamente expostas a intempéries de todo tipo, quanto mais a uma pandemia. Nosso acompanhamento dos impactos da pandemia sobre a fome em diversos países permite concluir que a informalidade do trabalho é, ao mesmo tempo, causa da fome e aceleradora da pandemia. No Peru, no México, na Bolívia e no Brasil, milhões de homens, mulheres e crianças conquistam o pão diariamente nos mercados populares, normalmente regiões de aglomeração, e retornam para suas casas em favelas, também locais de aglomeração. Neste sentido, a Fome impulsiona a sociedade a se contrapor à medida mais efetiva para conter a pandemia até agora: o isolamento social. Na Visão de Mundo sob a qual vivemos, fechar a economia não faz sentido, porque as pessoas vão morrer de fome. Porém, se vivêssemos sob a Visão de Mundo de que todas as pessoas devem ser alimentadas, o cenário poderia ser bem diferente. É ridículo e ultrajante que os países sulamericanos, em geral superavitários na produção de alimentos, possuam tantas pessoas famintas (Auléstia-Guerrero, Capa-Mora, 2020).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quais caminhos a seguir? É preciso pensar soluções que partam de uma Visão de Mundo na qual a Fome seja completamente deslegitimada como parte natural da paisagem e que governantes sejam culpabilizados caso ela se manifeste por meio da emergência de pessoas famintas. As fórmulas operacionais para isso precisão ser encontradas de acordo com as realidades possíveis nas diversas localidades. Por exemplo:
Imposto automático sobre as exportações do agronegócio que varie de acordo com a prevalência da insegurança alimentar e nutricional. O imposto sobre as exportações deverá ser revertido para o combate à fome, em ações que iriam desde a distribuição de alimentos até a ampliação do crédito para pequenos produtores, entre outros.
A falha no recolhimento do imposto e na aplicação dos recursos no combate à fome seria passível de culpa conforte artigo 135 do código penal: Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único – A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.
Por fim, é preciso pensar na desglobalização do sistema agroalimentar. A catástrofe climática e da fome estão demonstrando com maior intensidade, neste cenário pandêmico, que é preciso desglobalizar as relações alimentares e que é preciso investir em circuitos curtos de produção e consumo, amparados por mercados institucionais capazes de garantir preço justo a quem produza alimentos com base na agroecologia (Clapp, Moseley, 2020). Contudo, uma perspectiva de solidariedade não pode tolerar que o protecionismo num país crie famintos em outros países. Por isso, não há que se falar em protecionismo e sim em soberania alimentar com cooperação internacional. É preciso que a transição para a desglobalização ocorra com a maior cooperação internacional possível.
Quero concluir com um episódio pessoal. Certo dia fui com minha filha, de 3 anos, levar umas frutas para uma família de venezuelanos que pedem qualquer auxílio numa esquina perto de casa. Entregamos as frutas e vimos de perto que duas crianças, aparentemente de 3 e 5 anos, estavam com os dentes da frente totalmente podres, e algumas das frutas que levamos eram goiabas… Tentamos conversar com elas, mas o olhar do pai e das crianças era vidrado, como os de peixe. No caminho de volta para casa, minha filha perguntou:
– Pai, por que eles estão com fome?
– Porque eles não têm comida, filha – disse eu
– E por que eles não pegam no armário?
– Porque eles não têm comida no armário. Eles não têm nem uma casa para ter armário.
– E por que eles não têm casa?
– Porque o papai e a mamãe deles não têm trabalho.
– E por que não têm trabalho?
Eu respirei fundo e disse a ela que o mundo era injusto, mas que podemos tentar ajudar. Agora, esta foi a resposta possível para uma criança de 3 anos. Os governos do mundo não podem dar essa mesma resposta. Os governos do mundo devem ser confrontados com os fundamentos filosóficos que legitimam a Fome como impulso de submissão a um sistema econômico, a um sistema político, enfim, como um princípio organizador da sociedade. Para que todas as pessoas possam se alimentar dignamente é preciso erradicar a Fome como princípio e culpabilizar os governantes que permitam o surgimento de pessoas famintas quando houver condições mínimas que possam impedir tal tragédia. Do contrário, devemos considerar a omissão de socorro como crime contra a humanidade. A Fome não deve ser parte natural da paisagem. A Fome deve ser o ato doloso de produzir famintos.
Notas:
Thiago Lima é Professor do Departamento de Relações Internacionais da UFPB. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (FomeRI).
[2] Esta comunicação foi realizada na atividade do Fórum Social Mundial denominada “A fome e a crise de genocídio: resgate e transcendência na sua caracterização”, realizada em 24/01/2020. A mesa contou com a participação de Eduardo Bernabé Toledo, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro e Flávio de Leão Bastos Pereira, sob coordenação de Fabiana Sanches. O debate ficou registrado aqui https://www.youtube.com/watch?v=Y53DiTVEhZY
(...). - (Fonte: Boletim Carta Maior - Aqui).
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