(Sergei Krikalev / Helen Sharman / Anatoly Artsebarsky)
Último Soviético: A História do Cosmonauta Deixado no Espaço Com o Fim da URSS
Por Leonardo Igor
Em 1991, quando Sergei Krikalev deixou sua terra natal, morava em uma cidade chamada Leningrado e era cidadão de um megaestado composto por quinze países. Foi enviado para passar cinco meses fora. No meio da viagem, porém, a organização que o enviou deixou de existir. Leningrado voltou a ser São Petersburgo; seu país, a União Soviética (URSS), se desfez em várias repúblicas independentes e Krikalev foi avisado de que não tinham como financiar sua viagem de volta.
Não seria lá grande problema algum atraso, se Sergei Krikalev estivesse em alguma acomodação adequada pelo globo terrestre. Não estava. O cosmonauta soviético estava a 350 quilômetros do planeta, na órbita da Terra, a bordo da estação espacial Mir. Atraso, por sinal, não é sequer a palavra certa: a viagem de cinco meses dobrou de duração, estendendo-se por dez.
O programa espacial soviético
Após a Segunda Guerra Mundial, com a ascensão dos Estados Unidos e da União Soviética como as duas maiores forças no cenário mundial, teve início o período de disputa entre as duas nações conhecido como Guerra Fria. Ambos os países e seus aliados disputavam a primazia técnica, cultural e econômica.
“Durante a Guerra Fria, você teve a utilização da ciência na sua forma extrema. Um grupo de cientistas americanos, e isso aconteceu muito parecido na Rússia, conseguiu convencer o governo que o espaço era um ponto político importante. Aí se dá o início [da corrida espacial], com a Rússia muito à frente”, explica José Dias do Nascimento, pesquisador do Departamento de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Em 1955, os soviéticos inauguraram o Cosmódromo de Baikonur, o primeiro complexo de lançamentos de foguetes do mundo, localizado no Cazaquistão, país então integrante da URSS. Dali, entre o final da década de 1950 e o início da de 60, os soviéticos lançaram o primeiro satélite ao espaço, o Sputnik; enviaram o primeiro animal, a cadela Laika; e mandaram o primeiro homem para a órbita da Terra, o cosmonauta Iuri Gagarin.
Toda esta trajetória esteve ligada à Guerra Fria. O lançamento do satélite Sputnik,por exemplo, não foi apenas uma vitória para a ciência e os militares soviéticos, mas um marco na história da superpotência e um ponto de inflexão na corrida espacial. “A Rússia distribuiu rádios sintonizadores para todas as escolas para eles sintonizarem na Sputnik para dar uma aula didática, sobre o poder da ciência. Ali você formou uma geração de cientistas. Os americanos não tinham satélite, e sabiam que com a Sputnik os russos poderiam já estar monitorando o território. Isso acelerou o programa americano, os militares tinham a sensação de estar uma década atrás dos russos”, conta o docente.
Ao fim da primeira fase da corrida espacial, os russos haviam dominado técnicas de acoplagem espacial, de encaixe para o embarque e desembarque dos cosmonautas, manobras, enfim, até hoje utilizadas, por exemplo, pelos astronautas. A partir da década de 1960, o programa espacial dos Estados Unidos é catapultado pelo cientista alemão Wernher von Braun, especializado na técnica de foguetes. Von Braun veio para o país após a Segunda Guerra Mundial e liderou o programa espacial, no que culminou com a chegada do homem à Lua em 1969.
Na União Soviética, todo o trabalho atingiu o zênite com o lançamento da estação espacial Mir, em 1986, para a qual Sergei Krikalev seria enviado logo mais.
A última missão dos comunistas
Trinta anos após Gagarin, quando os soviéticos lançaram Sergei Krikalev e Anatoly Artsebarsky para sua missão de cinco meses, as viagens à órbita já eram rotineiras para muitos países. A Lua estava ao alcance da humanidade após o pouso da Apollo 11 em 1969. Àquela altura, o engenheiro aeroespacial Krikalev era um dos quadros bem conhecidos e confiáveis do programa espacial soviético. Ele foi enviado para a estação espacial Mir pela primeira vez em 1988, e em maio de 1991 foi novamente.
A Mir foi a primeira estação espacial modulada a ser montada no espaço. Foi posta em órbita em 1986 e desativada em 2001. É, em sua proposta, basicamente a “antecessora” da atual Estação Espacial Internacional (a ISS, na sigla em inglês), compartilhada entre vários países. Quando Krikalev e Artsebarsky chegaram à Mir no início da última década do século XX, estavam acompanhados de mais três astronautas.
Os três deles concluíram suas tarefas e voltaram para a Terra após oito dias. Krikalev e o ucraniano Artsebarsky ficaram. Sua missão, de cinco meses, envolvia algumas caminhadas espaciais para reparos externos e upgrades na estação espacial. Enquanto realizavam consertos no espaço, a política de Gorbachev de relaxar o controle central sobre os Estados da União levou muitos a buscar a independência. No fim daquele ano, o Cazaquistão, lar do complexo espacial que lançou Krikaliev, também iria declarar independência.
Em uma das últimas cartadas para apaziguar o governo cazaque e adiar a independência, entrou em cena a diplomacia espacial. Logo mais, seria necessário substituir Krikaliev, mas a Rússia, em um gesto diplomático, ofereceu a vaga do cosmonauta que iria substituí-lo ao governo cazaque. O movimento se repetiu outras vezes. Com as reformas econômicas e a separação dos estados, a Rússia entrou em uma espiral de crise e hiperinflação, e o dinheiro do programa espacial logo esgotou.
“A partir de 89, a Rússia entrou praticamente em um estado de dormência. Ou seja, pouca coisa aconteceu. Mas eles continuaram com várias ideias bem revolucionárias, eles não pararam totalmente. A Rússia andou muito com a militarização do espaço, os escudos protetores, o conceito da estratégia de defesa espacial, satélites armados, então nesse período Gorbachev tinha essa intenção de não parar. O programa russo não morreu. Ele diminuiu, claro, mas não desapareceu”, avalia José Dias do Nascimento, professor de Física da UFRN especialista em técnicas espaciais.
Para continuar a manter viável o programa, símbolo do orgulho nacional, e a estação espacial de Mir, os russos passaram a vender assentos a outros países que queriam enviar astronautas. Áustria e Japão, por exemplo, compraram. E com os assentos ocupados, Krikaliev ficava sem vaga na nave do seu próprio país. Além disso, havia um agravante: entre os novos enviados para a órbita, nenhum era engenheiro espacial. Isto é, apenas Krikaliev podia manter os reparos.
A estação Mir tinha reputação de barulhento e fedorento. O equipamento, de fato, era pequeno. Segundo cosmonautas e astronautas que passaram por ali, o odor lembrava o “cheiro de homens suados trancados em uma casa pequena bebendo conhaque”. O barulho de ventiladores, bombas e outros equipamentos era ininterrupto. Foi neste ambiente que Krikalev ficou dez meses.
Não obstante as dificuldades internas, havia os problemas de saúde. Até hoje, os efeitos da estadia no espaço sobre o corpo humano são estudados. O que sabia, à época, é que havia um risco maior de atrofia muscular, perda óssea, catarata, congestão nasal, infecções e problemas no sistema imunológico.
“O argumento mais forte foi econômico porque minha permanência permitia que eles economizassem recursos aqui”, afirmou Krikalev à época, segundo a Discover Magazine. “Eles falaram que seria difícil para mim – nada bom para minha saúde. Mas meu país estava em dificuldades e a oportunidade de economizar dinheiro deveria ser prioridade”. O retorno de Krikalev em cinco meses foi adiado indefinidamente. Nesse período, até Artsebarsky foi substituído por outro, o também ucraniano Aleksandr Volkov. Krikalev ficou. E acabou ficando 312 dias no espaço.
O fim da URSS e o retorno do cosmonauta
Em 25 de dezembro de 1991, quando a missão de Sergei Krikalev no espaço já havia ultrapassado mais de dois meses o prazo inicial, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas foi dissolvida com a renúncia de Gorbachev e as declarações de independência dos estados integrantes. A Rússia assumiu a personalidade jurídica do estado encerrado e seu programa espacial, conduzido pela agência espacial Roscosmos.
Secretamente, os Estados Unidos e a Rússia começaram a negociar colaborações no uso da estação espacial Mir e dos lançamentos na base de Baikonur, no Cazaquistão. Assim, dinheiro norte-americano entrou no programa para ajudar a manter a estação em órbita. Na pauta de colaboração, também estava o retorno de Krikalev.
Em março de 1992, ele finalmente foi avisado de que retornaria para casa. Àquela altura, já tinha dado mais de 5 mil voltas em torno da Terra. A terra onde pousaria, no Cazaquistão, agora era um país independente. Quando aportou aqui, Krikalev sequer conseguia manter-se de pé. Foram necessários quatro homens para tirá-lo da cápsula Soyuz, o modelo de nave espacial soviética.
Por causa da sua situação, de enviado da URSS ao espaço, ele foi apelidado de “o último cidadão soviético”. Foi envolto na bandeira vermelha da União Soviética, incrustada da foice, do martelo e da estrela, que Krikalev voltou a pisar em solo terrestre. E só então, o cosmonauta soviético virou cidadão russo.
Anos seguintes
Embora Sergei Krikalev não goze da mesma fama ou status de herói de Iuri Gagárin, o primeiro homem no espaço, sua atuação no programa espacial soviético é reconhecida como imprescindível. Ele ganhou a estrela dourada dos Heróis da Rússia, a mais condecoração do país. Dois anos depois, foi enviado de volta ao espaço em uma nova missão na mesma estação Mir.
Ao longo de sua carreira, Krikalev passou 803 dias no espaço. Foi um recorde absoluto até 2015, quando foi superado pelo conterrâneo Gennady Padalka. Tão logo retornou da sua missão estendida em Mir, entre 1991 e 1992, Krikalev voltou a treinar para voltar à órbita terrestre.
Em 1992, a Rússia e os Estados Unidos firmaram um acordo de colaboração espacial que daria origem à atual Estação Espacial Internacional (ISS). Em 1994, Krikalev foi enviado aos EUA para, junto da Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (a Nasa, na sigla em inglês), planejar e treinar os primeiros voos para a estação espacial Mir.
Em 1998, começou a montagem da ISS em órbita, que se estendeu oficialmente até 2011. O equipamento é considerado o mais importante ponto de exploração humana do espaço e é utilizado para pesquisas por vários países. Foi para lá que o atual ministro da Ciência e Tecnologia do Brasil, Marcos Pontes, foi enviado em 2006 a bordo da nave russa Soyuz, sendo o primeiro astronauta brasileiro a chegar ao espaço.
Foi também para lá, entre 2000 e 2001, na gênese da estação, que Krikalev voltou para uma missão de mais de 100 dias. Em 2005, o “último soviético” fez sua última missão. Passou seis meses na ISS e retornou à Terra para aposentadoria. Foi como russo, retornou como russo.
Uma nova corrida espacial?
Em 2019, o então presidente Donald Trump oficializou o sexto braço das Forças Armadas dos EUA, a chamada Força Espacial. Segundo o mandatário, o espaço ‘é o mais novo campo de guerra do mundo’. Na prática, a medida separou da Força Aérea uma área que já existia voltada para tecnologias de defesa e militarização espacial, o que não é novidade nem para os EUA nem para a Rússia, que possuem, inclusive, planos de defesa espacial.
No entanto, para muitos, a criação de mais uma força militar por parte da maior potência militar do mundo soou como um ligeiro reavivamento da Guerra Fria. De fato, o mandato de Trump foi marcado pelo afrouxamento das amarras que Rússia e EUA haviam assinado de modo a conter a sanha bélica. Durante os quatro tortuosos anos de Trump, os Estados Unidos deixaram vários acordos militares com os russos, inclusive no setor nuclear.
O mundo estaria vivendo, então, um renascimento da corrida espacial entre países? Conforme o professor José Dias, não. Por outro lado, é possível perceber uma nova disputa espacial. Desta vez, uma disputa empresarial. E liderada pela SpaceX, do bilionário Elon Musk. “A China e a Índia possuem hoje praticamente o mesmo controle espacial que a Rússia e os Estados Unidos. Então essa militarização do espaço existe na medida da espionagem, mas você tem muitos outros atores que diminuem essa polarização. Ainda mais agora com a entrada da parte comercial. Ninguém esperava que uma empresa privada [SpaceX] fizesse um desenvolvimento tão grande na parte espacial”, analisa.
Cosmonauta ou astronauta? Taikonauta!
Ir para o espaço não é fácil. Os enviados recebem não só um treino físico militar, mas também uma formação científica invejável. O destino também é exclusivíssimo, afinal, poucos de nós já deixaram a órbita terrestre. Por tudo isso, a profissão de quem trabalha indo ao espaço tem um nome único. E ele pode variar conforme os países.
Astronauta: termo pelo qual os estadunidenses chamam os profissionais da NASA treinados para missões espaciais. Deriva das palavras gregas ‘ástron’ (estrela) e ‘nautes’ (navegante, marinheiro), isto é, navegante das estrelas. É o mais conhecido e é aplicado em vários países da Europa e mesmo no Brasil. Vale lembrar – uma pessoa que vai ao espaço a convite (como jornalistas) ou a turismo, não é um astronauta. É, conforme a NASA, apenas um “viajante espacial”.
Cosmonauta: termo pelo qual os russos – e, anteriormente, os soviéticos, chamam seus profissionais do espaço. Deriva do grego ‘kosmos’ (cosmo) e ‘nautes’ (navegante, marinheiro), logo, marinheiro do cosmo. Foi aplicado aos profissionais da área na URSS e ainda hoje é usado tanto na Rússia quanto nos países vizinhos, ex-integrantes da superpotência.
Taikonauta: menos conhecido dos três termos, é aplicado aos profissionais do programa espacial chinês que vão ao espaço. Deriva da palavra ‘tàikong’, que significa ‘espaço’. Começou a ser usado no fim da década de 1980, mas os primeiros taikonautas só chegaram ao espaço mesmo em 2003. Desde então, a China, assim como Rússia e EUA, além da Índia, é uma das principais potências espaciais do mundo.
Gaganauta: versão indiana, é uma mistura entre o grego ‘nautes’ (navegante, marinheiro) e o termo ‘gagan’, do idioma hindi, que significa ‘céu’. O programa espacial indiano é, atualmente, um dos mais importantes e mais antigos do mundo, com origens na Guerra Fria.
Espaçonauta: pouco usado, vem do francês ‘spationaute’. É um híbrido entre a palavra ‘spatium’ (espaço), do latim, e ‘naute’ (navegante, marinheiro), do grego.
Na prática, todos os termos acima têm o mesmo significado. A justificativa para seus diferentes usos, de acordo com o país, é simplesmente política. Com a corrida espacial da Guerra Fria e a disputa entre URSS e EUA, foi uma forma de diferenciar as conquistas de cada país.
Hoje, embora não exista mais URSS e nem Guerra Fria, o uso dos termos próprios para os programas espaciais de cada país continua a ter um pano de fundo nacionalista, sobretudo com a ascensão da China e da Índia como potências na área. - (Fonte: Jornal O Povo; DCM Diário do Centro do Mundo - Aqui).
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