Artigo produzido em março, início da quarentena, 'antevia' a atmosfera que apontava no horizonte e que alteraria definitivamente a paisagem em volta.
Nesses dias de confinamento obrigatório por conta da pandemia do coronavírus, assistir ao filme espanhol “O Poço” (“El Hoyo”, 2019), disponível na plataforma Netflix, é uma boa pedida: um filme repleto de referências, alusões e simbologias sociais, políticas e religiosas. E com um final enigmático que faz você se perguntar: “perdi alguma coisa?”. E com tempo sobrando, assistir ao filme outra vez ou correr cenas específicas. Protagonistas presos em uma espécie de experimento psicossocial sádico: uma prisão vertical com uma cela em cada nível. Duas pessoas por cela. E uma plataforma com comida que desce por um poço central. Cada nível terá dois minutos por dia para comer o que puder. Até não sobrar nada para os níveis mais inferiores. Uma gigantesca armadilha que cria um pesadelo sem fim, mas que simboliza a própria condição humana que nos aguarda quando chegamos a essa vida: medo, solidão e desespero que tira o pior de nós.
Chegamos a esse mundo carecas, sem dentes, pelados, quase cegos, descoordenados, pequenos, frágeis, solitários. Aterrorizados, choramos, gritamos a todos pulmões. Eventualmente encontraremos carinho, proteção e sobrevivência na figura materna que aos poucos, simbolicamente, construiremos em nossas mentes.
Mas continuamos atemorizados com a possibilidade de perde-la, de um dia ela ir embora e nunca mais voltar.
Mas perece que chegamos a esse mundo com mais alguma coisa: um dom, uma qualidade ou habilidade (que pode até se transformar numa profissão) com a qual atravessaremos sós a nossa jornada por esse planeta. Será que a escolhemos ou nos foi apenas dada aleatoriamente?
Nossas escolhas, decisões e ações geralmente são tomadas sob essa condição de temor e medo. Essa é a nossa condição onto e filogenética: não sabemos de onde viemos, como paramos aqui, e nem para onde iremos depois que todo esse transe cessar.
Apesar dessa condição, religiões nos condenam de sermos pecadores e os únicos culpados de toda a desgraça desse mundo, a Criação perfeita de Deus. Mas mesmo assim, nos apegamos a elas em busca de algum propósito, sentido ou explicação para essa existência.
Essa condição onto-filogenética da humanidade é o pano de fundo da angustiante (e por que não dizer sádica?) narrativa do filme, disponível pela plataforma Netflix, O Poço (El Hoyo, 2019). E é a partir desse background da condição humana que devemos interpretar o enigmático final que deixe todos os espectadores estupefatos.
Um protagonista que desperta como prisioneiro do “Centro Vertical de Autogestão”, uma misteriosa penitenciária estruturada como uma gigantesca torre com um poço no centro, gerida pela “Administração” que, em todos os aspectos, explora de maneira sadicamente eficiente todos os pontos fracos da psique decorrentes dessa condição de solidão, medo e fragilidade – a própria condição humana.
Uma verdadeira máquina capaz de arrancar o pior da espécie humana: aparentemente com 200 níveis, cada um com dois prisioneiros, tendo um poço central através do qual desce uma plataforma com comida proveniente do Nível 0 (supostamente o da “Administração”). Em cada nível, a plataforma repleta de comida para por dois minutos para a dupla de prisioneiros comer tudo o que possa dentro do tempo exíguo.
Logicamente, a quantidade de comida que chega aos níveis inferiores dependerá da quantidade do que os níveis superiores consumiram do banquete – é proibido estocar alimentos sob pena de o nível ser penalizado pelo calor fatal ou congelamento até a morte.
Quanto mais se desce, menos comida. Condenando os níveis mais inferiores ao desespero e canibalismo. Porém, o toque sádico: cada prisioneiro ficará no seu nível por um mês. Até todos serem colocados para dormir por um gás injetado na torre. Para depois despertarem, cada qual em um andar aleatório: sorte para aqueles que acordarem nos andares mais altos; e desespero e possível morte para os debaixo.
Alguns se matam atirando-se no poço ou se enforcando na cela.
Dirigido pelo basco Galder Gaztelu-Urrutia, O Poço foi indicado em várias categorias de prêmios como Goya Awards, Gaozi Awards, Festival de Toronto e o Stiges Film Festival onde recebeu o prêmio do público.
Num primeiro olhar, a torre é o próprio simbolismo do capitalismo: a desigualdade, a divisão da sociedade em classes como um funil que vai retendo a riqueza nas classes superioras, restando apenas migalhas para a base social. Dessa forma, O Poço se uniria a uma tendência atual de produções cinematográficas que exploram o tema da desigualdade e luta de classes: Parasita, Coringa, Bacurau etc.
Mas O Poço é um filme essencialmente religioso. Ou melhor, da absoluta inutilidade da religião como saída para a humanidade encontrar respostas para aquela condição humana descrita acima.
E como a “Administração” (Deus? Governo?) cria um assombroso dispositivo (a torre, o poço e a plataforma) para jogar uns contra os outros – explorando o terror, o medo e o isolamento, a nossa própria condição primeira quando chegamos a esse mundo. Assim como cada um que desperta após o sono induzido pelo gás.
O Filme
O protagonista é um jovem chamado Goreng (Iván Massagé). Ele desperta em uma cela de concreto com um buraco retangular no centro. Seu parceiro, Trimagasi (Zorion Eguileor) explica que ele está numa prisão vertical e que diariamente desce uma plataforma com restos de comida que sobraram dos andares acima.
Uma refeição extravagante: nas primeiras cenas vemos os cozinheiros e chefes que produzem um verdadeiro banquete com pratos com requinte de gourmet, acompanhado de garrafas de vinhos e espumantes. Além da comida ser acondicionada em pratos, travessas e bandejas aparentemente luxuosas.
O que contrasta com os andares sucessivos através dos quais a plataforma desce – são devorados com as mãos nos poucos minutos que a plataforma para, até continuar a descida para o próximo nível.
Descobrimos que Goreng e Trimagasi estão no nível 48, um bom número segundo o experiente Trimagasi – nos níveis abaixo há andares em que a plataforma praticamente chega sem comida.
Pelo relato de Goreng sobre como ele parou lá, desconfiamos que aquela torre é algum tipo de experimento em psicologia social: ele chegou ali por vontade própria. Condenado, ele trocou a liberdade por uma estada de 6 meses naquele “Centro Vertical” e receber um “certificado de credenciamento”. Mas rapidamente esclarece que não fazia ideia do quão terrível era aquele lugar.
Detalhe: cada prisioneiro pode levar um objeto para a sua cela. Enquanto Goreng trouxe uma edição da obra “Dom Quixote”. Enquanto Trimagasi levou uma faca, ironicamente o motivo que o trouxe para aquela prisão.
Primeira pista: Dom Quixote
Aqui começam as alusões e simbolismos do diretor – afinal, Dom Quixote é o herói das causas perdidas. Assim como a causa que Goreng acredita. A pista está no fragmento que ele lê pela última vez em “Dom Quixote” quando encontra a menina no último nível da torre: “O grande que homem foi cruel será cruelmente grande, e o liberal rico será um mendigo avarento. O possuidor de riqueza não é feliz em tê-la, mas em saber gastá-la”.
Mas a conclusão dessa pista está na continuação do texto, que Goreng não lê: “O pobre cavaleiro não tem outra opção senão a da virtude: ser afável, educado, cortês e contido, e não oficioso, não arrogante, fofoqueiro, e ser acima de tudo caridoso”.
E esse pobre cavaleiro é Goreng. E também é Baharat (Emilio Buale), outro presidiário que acredita que a chave de tudo, capaz de sensibilizar a Administração de que ainda é possível a solidariedade e a humanidade naquela máquina sádica, é enviar uma “mensagem” para o Nível 0. Onde supostamente estão os gestores. Uma mensagem que comprove que a humanidade pode agir diferente. E de que a nossa reponsabilidade é a de levar a vida em virtude.
Goreng acredita que se cada um for virtuoso, tudo mudará para melhor.
Mas para Trimigaze, as mudanças nunca ocorrem de forma espontânea. Outra presidiária, Miharu (Alexandra Masangkay) ironiza: “Talvez seja por isso que você está aqui!”.
O Poço não faz uma apologia da solidariedade: se todos fossem racionais e comessem apenas uma ração do banquete que desce pela plataforma, haveria comida suficiente para ser partilhada por todos.
E muito menos, uma condenação dos instintos torpes que motivariam as ações humanas.
Segunda pista: a metáfora religiosa
Galder Gaztelu-Urrutia quer mostrar o total non sense daquele Centro Vertical de Autogestão que parece ser não apenas uma metáfora da pirâmide social no Capitalismo – mas da própria condição onto e filogenética humana: prisioneiro em uma arapuca cósmica que propositalmente cria situações nas quais o medo e o salve-se quem puder passam a ser o drive das decisões humanas.
Desesperadas, buscam alguma forma de comunicação com a “Administração”. Quem sabe, buscando perdão, compreensão, enviar alguma mensagem provando que todos estão mudando e que merecem regras mais justas e menos sádicas de convivência.
É a metáfora da religião: Goreng acredita que em tudo aquilo há um plano maior. Ele e Baharat tentarão criar uma estratégia para mandar alguma mensagem para o Nível 0, seguindo o conselho de um sábio que conhecem pelo caminho de descida pela plataforma de comida: pretendem enviar uma panacota (sobremesa típica italiana) torre acima, quando a plataforma retornar vazia.
O problema é que à certa altura (depois do confronto de Baharat e Goreng contra dois prisioneiros de um nível inferior) realidade e alucinação começam a se misturar. Principalmente quando chegam ao último nível (333) e encontram uma menina em perfeitas condições de saúde, porém com fome. Entregam a ela a panacota (a mensagem que deveria ser enviada) e decidem ser ela, a menina a mensagem a ser enviada ao Nível 0.
Enviar uma criança a “Deus” é a confirmação da grande metáfora da religião e da condição humana em O Poço. A cena final é outra alusão, dessa vez ao livro bíblico de Mateus: “Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino dos céus pertence aos que são semelhantes a elas” – capítulo 14, versículo 19.
Baharat morre por causa dos seus graves ferimentos e Goreng, na completa escuridão do último nível, vê seu primeiro companheiro de cela que morreu (Trimagasi): “Sua viagem termina aqui”, dando a entender que Goreng já está morto e que a menina é, ela própria, a mensagem que não precisa de um portador.
Os dois seguem para o escuro enquanto a menina sobe para o Nível 0.
Se Baharat ou Goreng já estavam mortos ou sequer existe a menina é uma questão irrelevante. Lembre-se que Goreng é o cavaleiro das causas perdidas, como Dom Quixote, capaz de criar moinhos de vento imaginários e tentar dar um sentido nobre para a existência. Como o herói literário, é o “cavaleiro de triste figura”.
O final é distópico e gnóstico: a “Administração” é indiferente, um verdadeiro demiurgo que administra uma armadilha cósmica baseada no gerenciamento do medo, desespero e solidão.
Dividir para reinar, dizia Maquiavel. Esse é o mote do “Centro Vertical de Autogestão” (o nosso próprio cosmos em que vivemos): criar o pânico do cada um por si, desunir, enquanto a religião (o ópio do povo?) cria a esperança de alguma comunhão com Deus (a “Administração”) que traga alguma esperança no absoluto non sense à existência. - (Fonte: Cinegnose - Aqui).
Ficha Técnica |
Título: O Poço |
Diretor: Galder Gaztelu-Urrutia |
Roteiro: David Desola |
Elenco: Ivan Massagé, Zoron Eguileor, Antonia San Juan, Emilio Buale, Alexandra Masangkay |
Produção: Basque Films, Mr Myagi Films |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2019 |
País: Espanha |
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