"Pelo menos no campo da saúde, o nosso Sistema Único de Saúde, o SUS, poderá ter enfim seu reconhecimento e valorização social. Seus princípios e diretrizes magistralmente orquestrados pela Reforma Sanitária Brasileira e garantida pela Constituição Cidadã poderão mostrar sua fortaleza e sua independência frente aos projetos de desmonte dos serviços públicos."
Por Rafael da Silveira Moreira
Todos anseiam pelo fim da pandemia da COVID-19, pelo fim do isolamento social e pelo retorno das nossas atividades cotidianas. Contudo, como será o mundo pós-coronavírus? Continuaremos uma sociedade colonizada pela política e economia importadas de outras partes do mundo ou passaremos por uma real independência e soberania nesses campos? Continuaremos com um projeto neoliberal da economia ou retomaremos o projeto de estado de bem-estar social?
Pelo menos no campo da saúde, o nosso Sistema Único de Saúde, o SUS, poderá ter enfim seu reconhecimento e valorização social. Seus princípios e diretrizes magistralmente orquestrados pela Reforma Sanitária Brasileira e garantidos pela Constituição Cidadã poderão mostrar sua fortaleza e sua independência frente aos projetos de desmonte dos serviços públicos. Ainda em 2017, a Fiocruz em seu VIII Congresso Interno já apontava para "a profunda crise política, econômica e institucional experimentada em nosso país, cujo curso indica perda da soberania, ampliação das desigualdades, empobrecimento e eliminação da possibilidade de construção de um sistema de bem-estar social. É fundamental e urgente, portanto, a defesa de um outro projeto de desenvolvimento”.Por seu turno, o modelo neoliberal de estado mínimo poderá no tempo pós-coronavírus ser mais fortemente compreendido e criticado pela sociedade. Aliás, o que vemos nesse momento revolucionário de pandemia, é a falência do estado mínimo que, ao transformar a saúde em mercadoria, não garante sua própria sobrevivência. A intervenção do Estado na saúde e na economia vem mostrando a diferença ética entre dois modelos antagônicos. A garantia universal dos valores inegociáveis da saúde e da educação não é interesse do mercado.
Outro aspecto que não ganha mais sustentação é o discurso de demonização do funcionalismo público. São os profissionais do serviço público que estão no front de guerra contra a pandemia. Mesmo os profissionais de saúde do serviço privado foram convidados pelo Estado para atuarem de forma pública. Fica emblemático que os interesse do mercado não representam os interesses públicos. E que são os interesses públicos que garantem o exercício de nossas liberdades individuais. O que os interesses do mercado garantem? Será que realmente existe liberdade no modelo neoliberal? Ou seria essa liberdade uma ficção da nossa vontade de crença em nos autodeterminarmos?
Nos últimos anos observamos uma propaganda salvacionista da ideologia neoliberal, com idolatria ao mercado e desvalorização do público. O empreendedorismo individual se mostra sedutor na medida em que alimenta nossas paixões e desejos de um sucesso que depende apenas de cada um de nós. Desresponsabiliza o Estado de qualquer papel nesse itinerário, cujo desfecho, seja ele positivo ou negativo, será mérito individual. A contenda narrativa entre salvar a economia ou salvar a saúde é falaciosa porque, além de adotar o princípio lógico do terceiro excluído, coloca em disputa dois campos não contraditórios mas simbióticos. A quem interessa não ficar em casa? Interessa ao sujeito liberal que assumiu como sua responsabilidade as suas condições de sobrevivência e não como uma responsabilidade constitucional do Estado.
Com efeito, do ponto de vista ideológico e econômico, a atual crise sanitária nos aponta para uma reflexão sobre a ineficiência do livre mercado e do modelo neoliberal para a solução dessa pandemia. Em contrapartida, a evocação de medidas de saúde pública e de intervenção do Estado demonstra a importância de um modelo contra-hegemônico, em que o SUS tem o papel central na proteção sanitária e econômica frente à pandemia.
Dessa forma, como será o mundo pós-coronavírus? O ensaio social que estamos experimentando está desenhando as possíveis respostas a essa pergunta. Citando o filósofo dinamarquês Kierkegaard: “A vida só pode ser compreendida, olhando-se para trás; mas só pode ser vivida, olhando-se para frente.” - (Aqui).
(Rafael da Silveira Moreira
Pesquisador em Saúde Pública do Instituto Aggeu Magalhães
Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz – Pernambuco
Docente da Área de Medicina Social - Faculdade de Medicina da UFPE).
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