domingo, 1 de dezembro de 2019

MARK TWAIN, O ANTIPATRIOTA

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"Um clássico sempre é atual – ou nos próprios textos, somente pelo valor das linhas publicadas, ou pela ressurreição que sofre no tempo, quando a anticivilização volta".
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Ou: 
De como o verdadeiro perfil de Mark Twain - crítico ferrenho do modelo geopolítico norte-americano e do american-way-of-life - foi escondido por seu biógrafo-mor, com o beneplácito da empresa que editava os seus livros.


O antipatriotismo de Mark Twain

Por Urariano Mota

Um clássico sempre é atual, ou nos próprios textos, somente pelo valor das linhas publicadas, ou pela ressurreição que sofre no tempo, quando a anticivilização volta. E por anticivilização quero dizer, nada mais atrasado e fascista que o sentido da pátria em circulação no desgoverno do Brasil em 2019. De passagem, observo que o amor à pátria não pode ter o sentido bélico estúpido que opõe a minha terra a outra, e mais, numa clara covardia, se opuser a minha pátria a uma gente que não poderia responder a uma agressão armada.Esse parágrafo vem a propósito do fundamental Mark Twain, que nasceu  em um 30 de novembro como o de hoje, em 1835. E por que a ele se refere de um modo mais preciso? Acompanhem, por favor.


O livro “Patriotas e Traidores: Anti-imperialismo, política e crítica social”, uma seleção de artigos e ensaios de Mark Twain, acende e acorda no leitor vários movimentos e surpresas. A principal surpresa é a de ver que o autor de Tom Sawyer está longe de ser um escritor para crianças e adolescentes. Entenda-se a descoberta: escritores para crianças são ótimos, quando escrevem para humanos de todas as idades, como num diálogo com a graça da flor rara que foi Hans Christian Andersen. Escritores para crianças são péssimos, quando escrevem para uma idealização da infância, e em vez de escritores infantis, para infantes, tornam-se infantis, idiotas. Quero dizer, a surpresa que o leitor recebe se deve à fala de Mark Twain para adultos quando adultos, e sob um ângulo, como dizê-lo, já que se trata de uma surpresa? Vá lá, sob um ângulo absolutamente novo. Se não, como classificar palavras de Twain do gênero
“Ele nada tinha de pessoal contra mim, exceto o fato de eu me opor à guerra política, e me chamou de traidor por não ter ido lutar nas Filipinas. Mas isso não prova nada… Seria completamente diferente se a vida do país estivesse em perigo… mas quando não se trata de qualquer ameaça à nação, mas apenas de uma guerrinha distante, então pode se dar que a nação se divida em torno da questão política, metade patriotas, metade traidores…”?
E tal surpresa tem uma explicação, que desculpa e perdoa a nossa ignorância. A introdução ao livro, assinada por Maria Sílvia Betti, é bem esclarecedora. Ela nos fala que Twain foi, durante décadas, até a segunda metade do século XX, expurgado, purificado, censurado. Ou por razões de Estado, de propaganda, de política externa norte-americana, ou de negócios (o que vem tudo ao fim dar no mesmo), todos recebemos e lemos todos um Mark Twain ótimo para crianças e adolescentes, um bom humorista de costumes para adultos, e um escritor absolutamente cego ao sangue arrancado a outros povos pelos Estados Unidos. Ele seria um inofensivo indivíduo de museu, espécime do século XIX, com um babado charuto na boca. Segundo Maria Sílvia Betti, o biógrafo oficial e executor do testamento literário de Twain foi também um ativo personagem da execução mortal da sua memória.
“O que caracteriza a relação de Paine”, o biógrafo e testamenteiro homicida, “com o material ficcional e ensaístico de Mark Twain é seu desejo de acomodar a imagem do autor aos moldes do estereótipo que a opinião pública foi levada a fixar e que, evidentemente, deixava de lado os aspectos de sua crítica ao imperialismo norte-americano. A preocupação de Paine a esse respeito é explicitada em uma carta que ele dirige a um editor da Harper & Brothers em 1926, sugerindo que todos os esforços possíveis fossem feitos para evitar que outros ensaístas ou pesquisadores escrevessem sobre o autor, sob pena de verem a imagem do Twain ‘tradicional’, que haviam preservado, começar a perder o brilho e a transformar-se. O apelo do biógrafo à casa editora encontra respaldo num argumento poderoso dentro da lógica do mercado editorial: o fato de que, em sua avaliação, o material literário de que a Harper era proprietária sofreria, se isso acontecesse, um processo de depreciação, decorrente da agregação de aspectos que destoariam dos já estabelecidos pela fortuna crítica do escritor”.
O Twain que até então conhecíamos, ao lado do criador de Huckleberry Finn e de Tom Sawyer, era um Twain dos primeiros tempos, do contista das cidadezinhas do oeste dos Estados Unidos, da Célebre Rã Saltadora, do contador de anedotas, como na História de Um Inválido. Dizia-se dele, até, que não era um pensador, mas uma força natural que sacudira o mundo pelo riso, como um primitivo, como um Adão norte-americano que tudo vira com olhos inocentes. A sua técnica narrativa, dizia-se, era essencialmente oral, e grande era a preferência pelas narrativas autobiográficas. Já se vê, pelo espólio que se impunha a Twain, o quanto se pode caluniar uma pessoa sob um manto de elogios. Ora, o Twain resgatado é infinitamente melhor e mais humano. Ele é o contista de uma obra-prima sufocada pela tradição de censura, sufocada já a partir do título, “O homem que corrompeu Hadleyburg”. Esse conto, cuja recuperação do tema por Howard Fast sofreu perseguição do macarthismo, é uma história com o ardor de um açoite sobre toda hipocrisia. Nela, uma cidadezinha orgulhosa de sua absoluta honestidade, virtuosa a ponto de ser a mais incorruptível dos Estados Unidos, pois que se protege ostensivamente de toda tentação como frades reclusos …. enfim, após três gerações de homens de moral imaculada, ela chega ao fim do conto sem um só cristão íntegro.
Esse Twain que agora descobrimos é o pensador que não precisa pedir a bênção a Voltaire. Ele nos escreve coisas como
“A primeira coisa que um missionário ensina a um selvagem é a indecência”.
Ou
“Uma das provas da imortalidade da alma são os milhões que nela acreditaram. Mas eles também acreditaram que a Terra era plana”. (E como voltaram a acreditar, Mark Twain!)
Ou quando declara que se tivesse de escolher entre o céu e o inferno ficaria com os dois. “O Céu pelo clima. O Inferno pela companhia”. Esse Twain revelado é o autor que aponta o dedo contra o imperialismo do seu país, tão atual, tão moderno, que parece apontar contra os Estados Unidos imperialista de todos os tempos, ao parodiar o cinismo das desculpas para a guerra:
“Fomos traiçoeiros, mas foi apenas para que o bem emergisse do mal aparente. É verdade que esmagamos um povo iludido e confiante; atacamos os fracos e sem amigos que confiavam em nós…. apunhalamos um aliado pelas costas e esbofeteamos o rosto de nosso hóspede; compramos uma mentira de um inimigo que nada tinha para vender; roubamos a terra e a liberdade de um amigo confiante; convidamos nossos jovens a apoiar no ombro um fuzil desacreditado e os obrigamos a fazer o trabalho que geralmente é feito por bandidos, sob a proteção de uma bandeira que os bandidos aprenderam a temer, não a seguir; corrompemos a honra americana e maculamos seu rosto perante o mundo, mas cada detalhe visava o bem….”.
Esse Twain, enfim, é um Twin, é um gêmeo nosso, um irmão de humanidade. É um bravo que se volta contra a covardia de linchamento de negros, contra a perseguição a chineses na Califórnia, contra o império dos negócios que sobrevivem sobre um mar de sangue. O movimento final que temos é o de abraçar esse gêmeo, esse gênio latino, europeu, asiático, africano. Que nova luz recebemos! Queremos dizer, como ficou bom voltar a ler as aventuras de Tom Sawyer e de Huckleberry Finn.  -  (Aqui).

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