segunda-feira, 18 de novembro de 2019

DA SÉRIE CADA JUIZ, UMA SENTENÇA (OU: OS FALSOS ECOS DO JULGAMENTO DAS ADC'S PELO STF)

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"Este texto é um alerta. Com minha chatice epistêmica. O que quero dizer é que NÃO podemos perder uma garantia constitucional  como a presunção da inocência  por causa de falsas narrativas."
Alerta para lá de oportuno. Definitivamente, falar para certos 'doutrinados' sobre garantias constitucionais, a exemplo da atinente à presunção de inocência, constitui inominável ofensa, acintosa heresia. Devotados, virtuosos adeptos do direito penal do inimigo, defendem a tese de que quaisquer barbaridades praticadas contra seus oponentes são plenamente justas, revogadas as disposições em contrário. 


Juiz boicota STF ao soltar condenado a 29 anos! E Mazloum salva o dia! 
Por Lênio Streck 
Da série Neste País Ninguém Morre de Tédio, vem de Cascavel (PR) a mais nova pérola da Justiça, não por seu equívoco, mas pelo que representa, no plano simbólico, como perigo para a institucionalidade de uma decisão do Supremo Tribunal. A matéria é de Fernando Martines, aqui da ConJur, que descreve magnificamente o imbróglio. Assim se faz jornalismo: mostra um fato e compara com outro, da mesma natureza e desvela a contradição.
Explico: um juiz de Cascavel, encarregado da Execução Penal, determinou a soltura (aqui) de um homem condenado por homicídio com base (sic) no novo entendimento do Supremo Tribunal Federal.
Até aí, tudo bem. Ocorre que a decisão não está fundamentada e interpreta, erroneamente, a decisão da Suprema Corte. Com efeito, o condenado deve cumprir pena de 29 anos. Condenado, a única coisa que restava no plano recursal eram embargos declaratórios. Bom, é o que dá para entender da decisão.
O que fez o juiz? Sem qualquer fundamentação, mandou soltar o condenado. Automatizou a decisão das ADCs. Sem mais, nem menos. Eis aí o perigo que denunciei tantas vezes. O STF não decidiu isso. Mas o juiz, ao que parece, resolveu, nesse caso, ser um exegeta do século XIX.
Na verdade, isso me cheira a boicote. Logo, logo, um senador ou deputado esgrimirá a decisão de sua excelência e dirá: “ — viram? Eis o que o STF fez”.
Já fico imaginando os grupos de WhatsApp — essas novas células terroristas de IA (ignorância artificial)  repletas de gente vestida com a camiseta da CBF, espalhando “a novidade”. Além de dizerem “viram? Um assassino de um policial condenado a 29 anos está solto por causa da decisão do STF”, dirão mais: “Pobre do juiz de Cascavel — nada tinha a fazer, senão soltar o meliante — tudo culpa do STF”. Que coisa, não?
Isso está errado. Não pode ser assim. Todos sabemos  e até as pedras o sabem  que não mais do que 5 mil pessoas serão beneficiadas pelo julgamento. Ninguém sai automaticamente. O CNJ e o STF já alertaram para isso, afastando a mentira de que seriam 190 mil presos. Pois não é que o juiz resolveu peitar esses números, mostrando que a decisão do STF devia ser aplicada automaticamente? Interessante, para quem tiver paciência, é ler os comentários de advogados e policiais à decisão do juiz de Cascavel. Todos a favor da decisão, porque, eles, os comentaristas, são… contra a decisão do STF. Veem a decisão como uma espécie de vendeta. Eis o triste resultado de anos e anos de ensino jurídico deficitário. O certo vira errado, o errado vira certo. O que fizeram com o Direito?
Ora, quando fomos ao STF buscar a preservação de uma garantia constitucional (presunção da inocência), não agimos sem responsabilidade institucional e política. Não foi para sacramentar a impunidade. Cada réu tem direito à garantia, desde que obedecidos os requisitos legais-constitucionais. Sempre deixamos isso muito claro. Pela milionésima vez: o STF não proibiu que se prenda após decisão de segundo grau ou decisão de júri.
O que não foi examinado pelo juiz de Cascavel: (i) o sujeito estava preso apenas pela razão da possibilidade até então de execução provisória ou há motivos no caso para ele permanecer preso ou ser posto em liberdade? (ii) Efeito vinculante não exclui análise do caso concreto; (iii) Qualquer norma exige concretização-fundamentação; (iv) A decisão judicial não substitui automaticamente a do juiz de execução; (v) Ao aplicar automaticamente, o juiz paradoxalmente está negando jurisdição; (vi) Efeito vinculante não é avocatória.
Esperamos que o MP recorra da decisão, já que seu parecer foi contrário. Não fosse por outra coisa, a decisão do juiz carece de fundamentação. Prisão e liberdade são conceitos bem definidos. Requisitos de prisão e possibilidades de liberdade possuem conceitos bem delimitados na dogmática processual. Se o juiz de Cascavel tiver razão, então, de fato, 190 mil presos sairão. Afinal, bastaria ter recurso em andamento para ser solto. Automaticamente.
No caminho certo, ainda bem que existem juízes como Ali Mazloum, da 7ª Vara Federal em São Paulo, quem expediu alvará de soltura e logo em seguida decretou prisão preventiva para um homem que aguarda julgamento de recursos. Simples assim. Claro que tem aí o problema da prisão de ofício. Há que ter pedido do MP. Mas aqui a questão que importa é mostrar que a narrativa de que não pode prender em segundo grau é falsa. Se tem requisitos e pedido do MP, pode. Se não tem requisitos, solta. E não se deve esquecer as cautelares substitutivas. Venho dizendo isso há meses e meses. O juiz de Cascavel bem que poderia se inspirar em Ali Mazloum. Leiamos:
Impende registrar, por fim, que o caso destes autos demonstra ser descabido o discurso apocalíptico de alguns setores da sociedade, de que a decisão de nossa Suprema Corte causaria impunidade”.
Corretíssimo. Quantas vezes escrevi sobre isso aqui na ConJur? (Por todos, este: É o Direito, estúpido. Eis o jogo dos sete erros da presunção da inocência). E Mazloum confirma o que falei, dizendo, na decisão, que “continuarão presos aqueles que devem assim permanecer, tendo em vista que sempre haverá a possibilidade de se decretar prisão cautelar” (leiam aqui a matéria do Tiago Angelo, do ConJur).
Era exatamente o caso do acusado em Cascavel, que não poderia ser solto automaticamente do modo como fez o juiz. Espero que isso seja corrigido imediatamente, antes que um senador faça um discurso apocalíptico da tribuna para mostrar que se deve aprovar uma PEC e derrubar uma cláusula pétrea da Constituição.
Não é fácil defender o Direito neste país. Mas não é, mesmo. Vejam que, sob pretexto de defender a lei (ou uma decisão do STF), o juiz de Cascavel fez o contrário. Na verdade, foi um boicote às avessas da decisão do STF.
Este texto é um alerta. Com minha chatice epistêmica. O que quero dizer é que NÃO podemos perder uma garantia constitucional  como a presunção da inocência  por causa de falsas narrativas.  -  (Fonte: ConJur - Aqui).
 (Lênio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito).

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