segunda-feira, 5 de agosto de 2019

O BRASIL DE DORIAN GRAY

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Reflexão incidental: E se a Constituição da República fosse dissecada nas escolas públicas desde a mais tenra idade, como tarefa obrigatória, e se a Carta Magna tivesse ao menos alguns de seus termos e fundamentos discutidos didaticamente com o alunado, e se restasse para sempre consolidada a convicção inabalável de que a Lei Maior submete a todos os cidadãos, e se a cidadania reagisse energicamente a todas as iniciativas de autoridades que configurassem agressão a preceitos constitucionais, e se julgadores em geral, em face de tal realidade, se vissem compelidos a afastar-se da fogueira das vaidades e/ou dos eventuais conchavos? E as ameaças seguidamente lançadas pela barbárie, prosperariam? A regra é simples: Quer dar com os burros n'água? Despreze, vilipendie, enxovalhe a Constituição; comece, por exemplo, a modificar/'anular' dispositivos pétreos simplesmente com base em sua interpretação pessoal, com o de acordo de outros doutos.


Dorian Gray, um retrato do novo Brasil
Por Fábio de Oliveira Ribeiro
Pode um país agir como se fosse um personagem literário? Qual seria esse personagem no caso do Brasil?
Responder a primeira pergunta não é uma tarefa muito fácil. O país é uma imensa teia de relações linguísticas, históricas, econômicas, políticas, sociais, jurídicas, religiosas, científicas, jornalísticas, virtuais, tecnológicas, etc… que se perpetuam e se tornam mais e mais complexas ao longo de gerações que coexistem num mesmo território. Essa teia existe como realidade e como ficção, pois as comunidades também são imaginadas. Não por acaso Benedict Anderson deu um grande destaque ao jornalismo:
“O que tornou possível imaginar as novas comunidades, num sentido positivo, foi uma interação mais ou menos casual, porém explosiva, entre um modo de produção e de relações de produção (o capitalismo), uma tecnologia de comunicação (a imprensa) e a fatalidade da diversidade lingüística humana.” (Comunidades imaginadas, Benedict Anderson, Companhia das Letras, São Paulo, 2008)
Thomas Hobbes imaginou o Estado como um homem gigantesco, o Leviatã. O célebre filósofo inglês:
“… concebe a relação entre soberano e súditos constituída mediante contratos de favorecimento recíproco como uma relação geral de poder. O direito da soberania e o medo do ‘subterfúgio do direito que induz à insurreição (Hobbes, 1889, II parte, cap. 8) obstruem seu caminho para a construção de um Estado de direito, ao menos, razoavelmente substancial. Com seu acordo de investidura do soberano, os membros individuais de uma sociedade, como súditos, não conseguem obter senão a condição de membros da associação estatal e a proteção dessa associação. Em contrapartida, abrem mão tanto de uma parte de sua liberdade quanto de seu direito a tudo, inclusive o direito de resistir em nome da segurança, contanto que o Leviatã cumpra seu encargo de proteção. Sobre ‘violações do direito’ cometidas pelo soberano ou que a ele possam ser imputadas, eles não se podem queixar, já que lhe concederam amplos poderes. Pois: volenti non fit iniuria (ibdem, cap. 2(3) e cap. 5 (2); idem, 1984, cap. 21). À sombra do poder soberano sobre a vida e a morte, resta a eles a liberdade de fazer aquilo que o soberano não regulou e, se for preciso, de negar obediência. No âmbito daquilo que é regulado, as leis civis ligam inelutavelmente os ouvidos dos súditos aos lábios do soberano.” (Hobbes, 1984, ca. 21). (Técnicas de Estado – Perspectivas sobre o Estado de Direito e o Estado de Exceção, Günter Frankenberg, editora Unesp, São Paulo, 2018, p. 29)
O Leviatã (Thomas Hobbes) pode ser considerado um personagem criado por uma comunidade imaginada (Benedict Anderson). Portanto, me parece perfeitamente plausível admitir (para fins didáticos e/ou retóricos) a hipótese de que um país possa se comportar como se fosse um personagem literário. Tentarei agora responder à segunda pergunta.
Alguns diriam que o Brasil é macunaímico https://istoe.com.br/uma-republica-macunaimica/https://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/m00002.htm e http://olavodecarvalho.org/brasil-macunaimico/. Entretanto, essa comparação me parece inadequada e até abusiva.
Macunaíma é um preguiçoso convicto e inveterado. Esse aspecto da personalidade fantástica dele não corresponde mais à do nosso país. De fato, desde 2015 o Brasil faz um esforço titânico e desesperado para voltar a ser uma colônia. Nosso país renunciou ao seu sistema constitucional em 2016. No ano seguinte o Brasil trabalhou muito para renunciar ao seu mercado interno e à sua economia nacional. Em 2018 renunciamos totalmente à racionalidade, ao pré-sal, à nossa política externa independente e até à soberania territorial sobre a Base de Alcântara.
O Brasil tem trabalhado com afinco para realizar o sonho norte-americano de dominação total. Ao que parece, os donos do Estado brasileiro foram convencidos de que uma guerra entre os EUA e a China é inevitável. Sendo assim, devemos supor que eles imaginam que terão um lucro maior se o país deles ficar lado dos vitoriosos. Esse cálculo pode conter alguns erros (nenhuma guerra é inevitável; a guerra nuclear transformará todos em derrotados, etc…). Mas esse não é melhor momento para discutir essas questões.
A representação política do Estado concebida por Hobbes é um homem gigantesco. O Leviatã brasileiro sempre foi excludente e extremamente violento, capaz de aplicar a mesma Lei de maneiras distintas dependendo da situação econômica e da cor do réu. O gigante brasileiro é um imenso homem “…misterioso e decaído, satânico e perigoso, agente da ruína daquele que os cercam”https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2019/02/o-retrato-de-dorian-gray-quando-o-horror-e-essencialmente-humano.html.
A moralidade do nosso país é semelhante à de Dorian Gray. Entre a imagem que fazemos de nós mesmos e nosso verdadeiro retrato existe um abismo. A Lava Jato combate a corrupção para que os heróis lavajateiros possam desfrutá-la ou restringi-la às classes dominantes. A Constituição Federal proíbe a pena de morte, mas os governantes, a imprensa e uma parcela da população seguem aplaudindo milhares de execuções extrajudiciais realizadas todos os anos por policiais militares.
Dorian Gray rapidamente aprende com Lord Henry Wotton que não deve julgar a si mesmo e aos demais utilizando os mesmos critérios. O Estado brasileiro nunca foi capaz de julgar seus atos e seus donos, governantes e juízes com o mesmo rigor utilizado quando condena os pobres à miséria e ao encarceramento em massa. Nos últimos anos, os representantes dos pobres têm sido presos injustamente para que os culpados de sempre possam ganhar eleições e exercer um poder acima da Lei e isento de qualquer controle.
Quando finalmente se reencontra com sua verdadeira imagem Dorian Gray morre. O fim da fraude acarreta a destruição do corpo que a hospedava. A verdade que libertou o personagem de si mesmo também liberta a filha de Lord Henry Wotton dos previsíveis efeitos deletérios do pacto satânico que Dorian Gray celebrou para permanecer eternamente jovem.
A juventude eterna do Brasil – país que infantilmente trabalha para voltar a ser uma colônia – terminará em breve. O misterioso pacto que o Exército brasileiro parece ter celebrado nos EUA para provocar a ruína da nossa democracia acarretará a destruição do planeta de uma maneira ou de outra. A acelerada devastação da Amazônia patrocinada pelo governo Bolsonaro tornará a mudança climática irreversível. A guerra dos EUA contra a China, que se tornou mais provável em razão da abjeta submissão brasileira, pode resultar numa hecatombe nuclear e/ou no colapso da economia planetária do qual todos dependemos.
O personagem de Mário de Andrade gosta de evitar conflitos e sobrevive à batalha final contra o gigante Piaimã. O destino dele não é morrer de frio às margens do lago congelado em que a Uiara ficou presa por causa do inverno nuclear. Coerente com sua própria trajetória, Macunaíma morre porque quer brincar.
Na fase atual, o Brasil se parece mais com Dorian Gray. O Leviatã brasileiro vai morrer porque celebrou um pacto demoníaco para ficar eternamente dependente, jovem e irresponsável. O fim da fraude iniciada em 2016 não conseguirá restabelecer o império da verdade sem destruir o ser-simulacro que ela mesma criou.
É verdade que Macunaína comete algumas maldades. Todavia, ele não é deliberadamente perverso, perigoso e decadente. Essas são as principais características do Brasil nesse momento. A exemplo do personagem de Oscar Wilde nosso país se tornou cruel e está disposto a arruinar as vidas de muitos para satisfazer o sadismo, a ganância e a luxúria de alguns, ou pior, de um só: o Uncle Sam.
Uma coisa é certa. Para realizar o sonho norte-americano, o Brasil deixou de ser uma comunidade imaginada por brasileiros e para todos brasileiros. Alguns já são tratados pelo novo Leviatã dependente como se fossem hóspedes indesejados. Outros estão sendo despojados de seus direitos, de suas terras e de suas vidas.
Incapazes de aplicar a Lei Antiterrorismo contra Jair Bolsonaro e suas milícias policiais e criminosas, os procuradores e juízes dormem em berço esplêndido. Eles acreditam realmente que seus salários acima do teto e suas aposentadorias abaixo da moralidade estão garantidos para sempre? Veremos até quando isso continuará a ser verdade. Afinal, se o povo resolver sacudir as correntes que o prendem ao neoliberalismo escravocrata o prejuízo provavelmente será daqueles que substituíram nossa Constituição cidadã pela imoralidade contumaz de Dorian Gray.  -  (Aqui).

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