Para se inserir no contexto, convém previamente ler "Nunes vê a admirável Geração Beat" / 'A admirável Geração Beat: liberdade e coragem para ser vagabundo' - AQUI -, publicada neste blog em 7 do corrente.
(Ilustração: GGN).
Os vagabundos iluminados: o eterno conflito entre marginalidade e poder
Por Sebastião Nunes
Em abril de 1949 (há 70 anos), Jack Kerouac relatou que William Burroughs fora preso em Nova Orleans por posse de armas e drogas. Na mesma época, alguns de seus amigos mais próximos foram presos em Nova Iorque depois que a polícia invadiu o apartamento de Allen Ginsberg e descobriu drogas e mercadorias roubadas.
Nos Estados Unidos podia-se comprar armas pelo correio, modelo que a Bancada da Bala certamente implantará no Brasil. O sofisticado fuzil que Lee Oswald usou para matar Kennedy em 1963, chegou pelo correio, com balas e tudo, balas das quais o ex-fuzileiro naval utilizou parte aprimorando a pontaria. No livro “A história de Lee Oswald”, Norman Mailer descreve com detalhes exaustivos a fantástica pontaria de Oswald e a não menos fantástica capacidade de alcance e mira da arma.
Pode-se dizer que possuir, transportar e usar armas é quase uma obsessão nacional estadunidense. Daí, com certeza, os incontáveis massacres que ocorrem de cima abaixo no país. Entre os beatniks, Bill Burroughs era fascinado por armas, dando tiros a torno e a direito, dentro de casa ou fora dela.
Parêntese: o próprio Mailer, grande jornalista e escritor, que certa vez chegou a se candidatar a prefeito de Nova Iorque, esfaqueou a mulher pelo singelo motivo de desejar sentir como seria matar alguém.
Na década de 1970 era comum artistas marginais como o que vos fala praticar furtos mais ou menos graves, sem maiores consequências. Certo dia, entrei na Galeria Guignard, em Belo Horizonte, tirei da parede uma pintura de Pancetti, botei debaixo do braço e, retornando à Cantina do Lucas, bar em que bebia com amigos, tentei vendê-lo por 10 cruzeiros. Não achei comprador. Naturalmente bêbado, ou não me atreveria a tanto, voltei à Galeria Guignard e devolvi o valioso Pancetti a seu lugar.
A pergunta apropriada talvez seja: qual é o limite para o delírio?
A GÊNESE DA ILUMINAÇÃO
Em setembro de 1949 Kerouac confessou: “Tenho que admitir que estou bloqueado com On the Road. Pela primeira vez em anos NÃO FAÇO A MAIS VAGA IDEIA DO QUE FAZER. SIMPLESMENTE NÃO TENHO A MENOR IDEIA DO QUE FAZER” [As maiúsculas são dele].
Ninguém se torna um Buda por acaso. O próprio Gautama só atingiu o estado de iluminação espiritual depois de anos de ascetismo. Quase em desespero, sentou-se debaixo de uma “Ficus religiosa”, jurando não se levantar até encontrar a verdade. Segundo a tradição, esse período varia de 49 dias a 12 meses, mas então, aos 35 anos, ele estava pronto para seguir em frente. Tornara-se um Buda e sabia o que era Nirvana.
Pasteur dizia que “o acaso só favorece a mente já preparada”, e estava certo. Horace Walpole inventou a palavra “serendipidade” para designar um evento feliz, uma descoberta que acontece por sorte, mas que só acontece com quem está pronto.
Pulando da teoria à anedota, gosto de recordar certo diálogo do pianista Arthur Rubinstein, um dos maiores que já existiram. Depois de um concerto, chegou até ele uma senhora e disse: “Mestre, eu daria a minha vida para tocar como o senhor”, ao que Rubinstein respondeu: “Foi assim comigo, cara senhora, eu dei a minha”.
Ao fazer aquela afirmação, de que não tinha a menor ideia do que fazer, Kerouac certamente não sabia, mas intuía o que deveria fazer. Leitor assíduo de grandes autores, em junho de 1950 viajou de Denver para a Cidade do México com Frank Jeffries e o inseparável Neal Cassady a convite de Burroughs. Em julho, Jack escreveu a seu amigo Ed White de Denver, dizendo que pretendia investigar “todos os níveis” de consciência de “dois quilômetros de altura”, promovidos pelo fumo da maconha mexicana, que foi uma das grandes descobertas de sua vida. E como chapava! E como delirava!
Mas ele chegaria lá, depois de ralar anos e anos. Pois é sempre fundamental lembrar que sua eterna vagabundagem tinha um objetivo claro: o de CHEGAR LÁ, qualquer que fosse o sentido desse “CHEGAR LÁ”, que ele e Neal Cassady perseguiam incansavelmente, revirando alucinados os Estados Unidos de cima abaixo. E esse dia chegou por uma espécie de iluminação, propiciada por uma carta de – adivinha quem? – Neal Cassady.
No dia 27 de dezembro de 1950 Kerouac pegou na soleira da porta de sua mãe a carta em que Cassady contava com urgência sua desventura sexual, naquilo que Jack disse que poderia “figurar entre as melhores coisas já escritas na América”. Jack leu a carta no metrô indo para a cidade e depois passou mais de duas horas relendo-a num café. Foi o estalo final, sobre a qual Lawrence Ferlinghetti escreveu mais tarde:
“A prosa de Cassady é áspera, primitiva e tem um certo encanto por sua ingenuidade, a um só tempo bufona e antiquada, frequentemente desajeitada e engrolada, como ocorre a alguém que fala rápido demais”.
Foi então que Kerouac concluiu, agora sim, iluminado:
“Vou arranjar um rolo de papel, enfiar na máquina de escrever e simplesmente bater o mais rápido que puder, exatamente como tudo aconteceu, de uma sentada, para o inferno com essas arquiteturas baratas [ele se referia à grande literatura europeia com a qual havia se alimentado até então].” Foi o estalo. Daí para a frente seria fácil, embora extremamente cansativo e, principalmente, alucinante.
Anos depois, Jack diria, defendendo-se e à sua obra:
“Nenhum de meus personagens viaja ‘em bando’ ou em ‘gangues juvenis’ ou leva facas. Concebi On the Road como um livro sobre a doçura de jovens intempestivos e infernais, como meu avô em 1880, quando também ele era um jovem. Jamais exaltei alguém por sua natureza violenta”.
Tentei resumir, ao máximo, a gênese de um dos pilares culturais da Geração Beat, aquela que mudou os Estados Unidos, e não mudaria nada se escrito no Brasil.
Pois lá era possível viver de bicos e viver relativamente bem. Pois lá era possível ser frentista e comprar um carro novo. Pois lá era possível ser garçonete e cuidar de dois ou três filhos. Pois lá era possível largar qualquer trabalho e botar o pé na estrada.
Quem fizer isso aqui será jogado na cadeia e enrabado numa cela em que 200 ocupam um lugar que caberia no máximo 50. E chamam a esses caras de bandidos! - (Aqui).
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Ao que o leitor Renato Lazzari pondera:
"Esse tempo passou, caro Nunes, e as coisas se inverteram. Hoje o poder está na marginalidade. Ou a marginalidade está no poder, tanto faz.
O poder hoje está com o dólar e nenhuma lei o alcança, o que o coloca à margem de marcos civilizatórios. Kerouac teria sido milionário aos 30 anos em Wall Street nos ’80 e hoje estaria morando numa tenda, com uma dívida impagável junto aos bancos de lá. É que isso é que virou a ideia de liberdade nos ’80.
Mas naquele tempo também tivemos nossos poetas, escritores e artistas marginais. Não ser marginal era seguir o padrão estadunidense de classe média, o 'Papai sabe tudo', e nem todo mundo o seguia.
A Ópera do Malandro, relatos da colonização do Brasil pelos EUA no pós-guerra, trata bem desse 'enquadramento' da vagabundagem, da marginalidade ascendendo ao poder."
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