Até a votação final da questão previdenciária, muita água vai rolar. Desconhecer distorções monumentais será miopia plena, mas um dos xis da questão será exatamente a identificação das tais distorções. Particularidades e evidências serão esgrimidas, outras tantas, ignoradas. Regimes serão destrinchados, mas os destaques serão seletivos. É do jogo. Antonio Delfim Netto tem, sim, credenciais para opinar. Mas traz à mente episódios não muito edificantes patrocinados nos chamados anos de chumbo, quando atuou, entre outros postos, como superministro da economia: um deles consistiu em 'estabelecer' previamente a taxa anual de inflação (12%, assim mesmo, sem o "até", o que por si já seria grotesco); outro, antológico: dizer que o povo teria de suportar as mazelas, dada a necessidade de fazer "o bolo crescer". O que se viu foi que, independentemente do estado resultante, o tal bolo continuou restrito aos felizardos de sempre.
(GGN).
Desastre sim, mas por razões opostas às de Delfim Netto
Por César Locatelli (No GGN)
O ex-ministro Antônio Delfim Netto emitiu, em 13/02 na Folha, cinco opiniões. A eleição para definir o grupo que controlaria o Senado foi uma pantomina aterradora. Ele crê fortemente nos benefícios da democracia representativa. Diz que os senadores são subordinados às mídias sociais. Tem “sérias dúvidas” se o Senado entregará a Reforma da Previdência. E, por fim, acredita que a reforma tem, no curto prazo, poderosos “perdedores” e nenhum “ganhador”, mas que a “abstrata sociedade” ganhará. No final das contas, parece-me que a intenção do ex-ministro era aumentar a pressão sobre o Senado.
Fico feliz em concordar com o ex-ministro, ao menos em um de seus pareceres, quanto à assustadora disputa no Senado.
A discussão sobre a reforma da previdência social anda meio mal parada, penso. Estamos há tempos discutindo se existe ou não déficit, mas a questão merece que desçamos um degrau, que aprofundemos um tantinho para conseguir enxergar melhor o que está movendo esse grupo, que inclui o ex-ministro, favorável à redução de direitos dos trabalhadores.
Nós vivemos em um tipo de sociedade, há uns 300 anos, em que cada um disputa, todo santo dia, uma parte maior do bolo produzido. E quando eu consigo capturar uma parte maior do que a que você conseguiu, ou seja, quando tenho mais poder econômico do que você, tenho, por consequência, maior poder político, consigo “comprar” mais representantes em todas as esferas de poder, seja executivo, legislativo, judiciário ou midiático.
A nossa democracia é bem torta. Essa coisa de uma pessoa um voto tende mais para um real (ou um dólar) um voto. Basta ver a origem das pessoas que compõem os poderes da República. Não acredito, portanto, nas virtudes da democracia representativa em uma sociedade capitalista, ainda mais com a concentração brasileira de renda e riqueza.
Mas o que tem a reforma da Previdência a ver com isso?
Não adianta tentarmos, em termos lógicos, provar que não há déficit, respeitadas as fontes de financiamento determinadas pela Constituição de 1988 para a seguridade social. A disputa por parte maior do bolo é o que importa. E a reforma vai ser aprovada do modo que a maior parte do poder estabelecido quiser. Sim, as mídias sociais farão certa pressão e sairão derrotadas.
A Assembleia Nacional Constituinte tinha uma composição que buscava um país que tratasse decentemente de seus cidadãos e seu produto, a Constituição de 1988, tem sido alvo de ataques constantes do poder econômico. Embora esteja a quilômetros de distância de promover uma sociedade igualitária, ela incluiu a obrigação do Estado brasileiro de cuidar de seus mais carentes. E é isso que tem estado em disputa desde então.
Os governos dos Fernandos fizeram vistas grossas a direitos conquistados e não os implantaram em seus governos. A partir de Lula é que o governo passou a respeitar o que os constituintes tinham aprovado, por exemplo os benefícios da assistência social. Desnecessário salientar que, a partir daí, a luta para suprimir esses direitos se acirrou.
Ainda tenho dúvidas sobre as manifestações de 2013. Tendo a achar que se tratou de uma “revolução colorida”, a exemplo daquelas dos países árabes e da Ucrânia, em que o poder econômico, local e externo, financiaram propaganda e “líderes” formados pelos redutos da extrema direita para a troca de regime no Brasil. Desnecessário repetir o que acorreu depois. Desnecessário dizer que o poder econômico está novamente no poder e a reforma da previdência está a um passo de ser aprovada.
Os economistas, que frequentam as telas e as páginas da mídia empresarial do país, fazem uma enorme ginástica para mostrar que a reforma será boa para os trabalhadores mais humildes. Eles, no entanto, fazem parte, quase sem exceção, daqueles que ou ganharão ou trabalham para que ganhará parte maior do bolo. Os recursos que deixarão de ser gastos com a Previdência diminuirão os impostos dos endinheirados, conferirão maior certeza de que a dívida pública será honrada, serão usados em “negócios” mais lucrativos para os empresários, irrigarão o sistema financeiro.
O ex-ministro salienta que há “perdedores” e nenhum “ganhador, no curto prazo, mas que a sociedade ganhará. Entendo eu que os recursos deixados nas mãos das pessoas mais necessitadas, além de constituir uma forma mais humana de se distribuir nosso produto social, retornarão para a circulação e farão a economia destravar. A política econômica que só corta não é inteligente, com todo respeito ao ex-ministro e aos defensores da linha econômica ortodoxa.
São válidos, acredito, os argumentos de que a previdência precisa se ajustar à evolução do tempo de vida das pessoas, de que há privilégios gritantes, como de políticos e militares, de que há desvios e corrupção. No entanto, se o objetivo fosse resolver essas questões, o encaminhamento da reforma seria completamente diferente. Muitos deveriam ser trazidos à mesa de negociações. Não haveria veto à discussão de privilégio por patrocinadores do golpe que nos trouxe aqui.
Se na aparência estamos discutindo a viabilidade do sistema de seguridade social, na essência estamos sendo empurrados pelo capital para uma sociedade que progressivamente desobriga o Estado de zelar por todos nós. Saúde, educação e previdência social giram uma quantidade muito grande de recursos. Ao se tornarem mercadorias, comercializadas por empresas privadas, engrossarão os lucros dos detentores do poder econômico e aumentarão a concentração de riqueza e renda.
Envolver os senadores numa gaiola de Faraday e cortar sua ligação com grupos de pressão das mídias sociais aproxima-se de uma ditadura sem Congresso, como aquela na qual o ex-ministro circulava soberano. Talvez uma gaiola que cortasse os vínculos econômicos dos senadores com a elite endinheirada impedisse o desastre.
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