Sobre a necessidade do capitalismo de construir uma ideologia que disfarce sua atuação e seus verdadeiros propósitos, por exemplo, Graciliano Ramos escreveu:
« Se o capitalista fosse um bruto, eu o toleraria. Aflige-me é perceber nele uma inteligência, uma inteligência safada que aluga outras inteligências canalhas.»
Como não ver no Brasil de hoje a atuação desta «inteligência safada» alugando outras «inteligências canalhas» no processo que levou ao golpe que derrubou a presidente eleita Dilma Rousseff, à prisão do ex-presidente Lula e, por fim, à eleição de Jair Bolsonaro? Que esta «inteligência safada» do capitalismo seja inimiga profunda da cultura e de todo o pensamento crítico é um outro fato observado por Graciliano Ramos e muito obviamente presente no Brasil da era Bolsonaro, onde abundam «inteligências canalhas» de aluguel dispostas a defender propostas como as escolas sem partido, ou a homofobia, a tortura, as ditaduras e a exterminação dos povos indígenas. Isso sem mencionar a entrega das riquezas públicas brasileiras para o capital financeiro através das privatizações. Já desde algum tempo no Brasil procura-se encarcerar o pensamento e o espírito. Sobre tudo isso Graciliano foi - e é - contundente:
« O emburramento era necessário. Sem ele, como se poderiam aguentar políticos safados e generais analfabetos?»
Nada mais atual. O obscurantismo pregado por certas igrejas evangélicas ligadas ao novo Presidente, a escolha de Ricardo Velez Rodriguez para o Ministério da Educação, de Damares Alves para Ministra dos Direitos Humanos e de Ernesto Araújo para as Relações Exteriores são sinais claros de que o Governo Bolsonaro está em guerra contra o pensamento e a cultura. Guerra inevitável, como bem viu Graciliano Ramos, para se levar adiante um projeto econômico profundamente elitista, anti-popular e anti-nacional.
Graciliano Ramos estava bem consciente também da extensão da opressão necessária para manter um tal regime:
«É o que me atormentava. Não é o fato de ser oprimido: é saber que a opressão se erigiu em sistema.»
E ele sabia que não precisaria muito para ser enquadrado como «inimigo» pelo regime – de então e de agora - e nos avisou:
« Tínha-me alargado em conversas no café, dissera cobras e lagartos do fascismo, escrevera algumas histórias. Apenas. Conservara-me na superfície, nunca fizera à ordem ataque sério, realmente era um diletante.»
Diante da combinação de brutalidade e ignorância da repressão do governo Vargas, Graciliano chegou a pensar na possibilidade do exílio:
« Imaginei-me em país distante, falando língua exótica, ocupando-me de coisas úteis, terra onde não só os patifes mandassem.»
Graciliano Ramos também denunciou a abjeta subserviência do Brasil da época a um outro país, a Alemanha nazista. Mas suas palavras também descrevem com clareza a subserviência, alardeada com orgulho pelo Ministro Araújo, do Brasil de hoje aos EUA, basta substituir, na frase abaixo, «ditadura ignóbil» por «Donald Trump» (ou talvez, apenas acrescentar «de Trump» depois de «ignóbil», também funciona):
« A subserviência das autoridades reles a um despotismo longínquo enchia-me de tristeza e vergonha. Almas de escravos, infames; adulação torpe à ditadura ignóbil.»
Graciliano também observou e denunciou a deterioração do sistema legal, procedimento fundamental para o estabelecimento de um estado de repressão:
« A lei fora transgredida, a lei velha e sonolenta, imóvel carrancismo exposto em duros volumes redigidos em língua morta. Em substituição a isso, impunha-se uma lei verbal e móvel, indiferente aos textos, caprichosa, sujeita a erros, interesses e paixões. E depois? Que viria depois? O caos, provavelmente.»
E Graciliano prossegue, escrevendo o que parece ser um comentário à atuação do Poder Judiciário de hoje:
« Se os defensores da ordem a violavam, que deveríamos esperar? Confusão e ruína.»
Mas o pior ainda pode estar por vir. «Memórias do Cárcere» contém uma sombria profecia sobre um possível futuro deste governo:
« O governo se corrompera em demasia: para aguentar-se precisava simular conjuras, grandes perigos, salvar o país enchendo as cadeias.»
Desde o governo golpista de Temer já se tenta «simular conjuras, grandes perigos», inventou-se ameaças terroristas porque nada melhor que um inimigo interno para disfarçar fracassos econômicos e justificar a repressão. Este processo continua, sobretudo através da criminalização de movimentos sociais como o MST. A política econômica proposta pelo Ministro Paulo Guedes beneficia principalmente o setor financeiro e fatalmente vai aumentar os níveis de desigualdade e de pobreza. E as privatizações apenas vão entregar ao capital internacional as riquezas públicas do país, diminuindo ainda mais a possibilidade de recuperação econômica real. As forças que estão por trás da eleição deste governo não tem a menor preocupação e nem o menor compromisso com o Brasil e com o seu povo, apenas com o mercado. A combinação de despreparo, rapina, mediocridade e submissão aos interesses dos EUA, características do Governo Bolsonaro, inevitavelmente levarão ao desastre econômico e social, gerando cada vez mais resistência popular. Para o Governo, que conta com uma enorme participação de militares, só restará aumentar a repressão – sob qualquer pretexto – para manter-se no poder: «salvar o país enchendo as cadeias»."
(De Franklin Frederick, post intitulado "Graciliano Ramos e o Brasil de hoje", publicado no GGN - aqui.
Sempre nos detemos nos comentários oferecidos pelos leitores, notadamente os que recorrem ao blog citado. Desta feita, selecionamos o de Rui Ribeiro:
"'Inteligência safada alugando inteligências canalhas'.
Acho que o Graciliano era um viajante do tempo. Acho que ele fez uma viagem a 2019. Sobre a inteligência safada alugando inteligências canalhas, eu me lembrei da seguinte passagem de uma obra de Karl Marx:
'O que existe para mim por intermédio do dinheiro, aquilo por que eu posso pagar [isto é, que o dinheiro pode comprar, tudo isso sou eu, o possuidor de meu dinheiro. Meu próprio poder é tão grande quanto o dele. As propriedades do dinheiro são as minhas próprias [do possuidor] propriedades e faculdades. O que eu sou e posso fazer, portanto, não depende absolutamente de minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar a mais bela mulher para mim. Consequentemente, não sou feio, pois o efeito da feiura, seu poder de repulsa, é anulado pelo dinheiro. Como indivíduo sou coxo, mas o dinheiro proporciona-me vinte e quatro pernas; logo, não sou coxo. Sou um homem detestável, sem princípios, sem escrúpulos e estúpido, mas o dinheiro é acatado e assim também o seu possuidor. O dinheiro é o bem supremo, e por isso seu possuidor é bom. Além do mais, o dinheiro poupa-me do trabalho de ser desonesto; por conseguinte, sou presumivelmente honesto. Sou estúpido, mas como o dinheiro é o verdadeiro cérebro de tudo, como poderá seu possuidor ser estúpido? Outrossim, ele pode comprar pessoas talentosas para seu serviço e não é mais talentoso que os talentosos aquele que pode mandar neles? Eu, que posso ter, mediante o poder do dinheiro, tudo o que o coração humano deseja, não possuo então todas as habilidades humanas? Não transforma meu dinheiro, então, todas as minhas incapacidades em seus contrários?'").
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