Otávio Ramos: jornalista, parceiro da UFMG por 24 anos, era também escritor, chegando a lançar nove livros em diversos gêneros (poesia, ensaio, ficção). Conforme o site UFMG (aqui) "entre os últimos livros de autoria de Ramos, constam 'Pise devagar, você está pisando nos meus sonhos' - classificado, por ele mesmo, como um romance revestido de sociologia barata - e 'A teia selvagem do mundo', que o também escritor, e seu editor, Sebastião Nunes dizia trilhar a imortalidade."
(Colagem por Sebastião Nunes)
Recordações do escritor Otávio Ramos
Por Sebastião Nunes
Otávio Ramos nasceu em 25/05/1949 e morreu em 23/09/2005.
Minha ideia era publicar o texto abaixo no último dia 23, numa homenagem a ele, ótimo escritor e um de meus amigos mais próximos, mas a urgência política falou mais alto e dediquei meu texto a rastrear monstruosidades escritas por Edir Macedo, o neopentecostal caçador de demônios e acumulador de fortunas, um dos patrocinadores do Coiso, que por sua vez está disposto a transformar este país no latifúndio do boi, da bala e da bíblia. Na semana seguinte também foi impossível, por estar esmiuçando, numa sátira, o universo nojento da TV Globo, com seus jornalistas paus-mandados e seu projeto nacional de lavagem cerebral em massa.
Publico hoje, com duas semanas de atraso, o texto de Otávio, que deixou um punhado de livros excelentes, que aos poucos desaparecem na penumbra, num Brasil que parece regredir aos tempos mais obscuros da barbárie.
Como abertura, uma de suas frases memoráveis e das mais belas da literatura brasileira:
“Todos os anos, passas, inconscientemente, pela data de aniversário de tua morte”.
Espero que hoje e na votação do segundo turno possamos resgatar o país do abismo em que estamos afundando e vencer a luta feroz contra os 3 bês do retrocesso: boi, bala e bíblia (com minúscula mesmo, pois a bíblia deles é a de fabricar dinheiro).
JOÃO (texto inédito, escrito por Otávio Ramos em 28/05/2001)
“Como para os garotos são as moscas, nós somos para os deuses: matam-nos por brinquedo.” Shakespeare, King Lear
Perdi meu filho em janeiro de 2001, depois de uma longa (ou curta?) agonia de quatro meses.
Morreu devido a dezenas de tumores cancerígenos que se espalharam por seu cérebro, conforme indicou o exame de ressonância magnética e a opinião médica especializada. Mas nunca conheceremos a real natureza do mal, porque enquanto ele esteve lúcido – e esteve lúcido até quatro horas antes de expirar – recusou-se terminantemente a submeter-se a uma biópsia ou a qualquer outro tipo de exame que ocasionasse a invasão de seu crânio por instrumentos cirúrgicos. Recusou-se, também, a se internar em qualquer hospital.
Respeitamos sua vontade até o fim.
Os primeiros sintomas da doença se mostraram um ano e meio antes da morte. Corajosamente, talvez adivinhando o fim iminente, ele se mandou, sumiu, para, quem sabe, fazer como os elefantes velhos, que se isolam da manada para morrer sós.
Depois de meses sem notícias, fomos descobri-lo na Costa Rica, aquele pequeno país centro-americano situado entre o Panamá e a Nicarágua, numa localidade de nome Pacha Marna.
Finalmente, conseguimos convencê-lo a voltar a Belo Horizonte e, a partir daí, começou sua decadência física irreversível.
Primeiramente, perdeu a visão dos dois olhos. Depois, a capacidade de se locomover. Às vezes, tinha alucinações.
Morreu aos 26 anos, magro, exaurido, mais esquelético do que a imagem de judeus sobreviventes em campos de concentração nazistas.
Pode-se dizer que seu enterro foi uma cerimônia bonita.
O vazio causado por sua falta jamais será preenchido. E enquanto o tempo não se encarregar de dissipar o fantasma de meu filho nas brumas da memória, a lembrança de sua vida soará no coração ora como tortura, ora como salvação.
Embora eu saiba que a dor é, intrinsicamente, uma experiência pessoal e subjetiva, por uma questão de sobrevivência psicológica e emocional, posso, mesmo que em vão, tentar, de público, transcender a morte pela literatura.
Tentar tornar “suave meu tormento; doce, minha amargura; agradáveis minhas penas e aprazível a minha tristeza”.
Todos podem constatar que, desde Homero, morte e literatura estão indissoluvelmente ligadas. Mas me interessa olhar para dois autores: Thomas de Quincey, de “Os últimos dias de Immanuel Kant”, e Julio Cortázar, ambos já mortos.
Se as características da estética da chamada pós-modernidade são o pastiche, a consideração da arte como jogo e negação de toda e qualquer transcendência, pode-se afirmar que “Os últimos dias de Immanuel Kant” é um livro pós-moderno, embora tenha sido escrito na quarta década do século XIX, muito antes, portanto, do que se convencionou classificar de modernismo.
De Quincey relê relatos biográficos de pessoas que conviveram com Kant e reescreve a rotina do filósofo em seu final de vida sob uma perspectiva, digamos, hiper-realista, narrando minuciosamente e exagerando detalhes do real que, como se visto através da lente de um microscópio, acaba por se tornar absurdo e, por isso mesmo, sutilmente engraçado.
Já Julio Cortázar, para quem a morte é “o escândalo supremo”, escreveu, entre outros, os livros “Rayuela” e “62 modelos para armar” que, embora cultuem em sua composição o gosto pelo jogo e pelo engenho, não podem ser consideradas obras pós-modernas mas, sim, contemporâneas, filhas diletas da matriz criada por Joyce em “Ulysses”, e que levam ao extremo o questionamento da linguagem e da noção de enredo romanesco.
No conto “As fases de Severo”, do livro “Octaedro”, que acabo de ler, Cortázar, com seu estilo característico que lembra espirais concêntricas, narra metaforicamente a agonia do moribundo, cercado em sua casa de amigos e familiares. A fase do suor, quando é preciso trocar os lençóis e o pijama, a fase dos saltos, a fase das traças, a fase dos números, a fase dos relógios, quando se deve atrasar ou adiantar os ponteiros sem se reparar nas marcas das horas e minutos e, por último, o sono, quando se compreende que é o fim.
Uma lágrima, renitente, teima em brotar da membrana da retina.
(Nota sobre a ilustração: na colagem, tentei recriar Otávio como sempre o imaginei: rindo de si mesmo). - (Aqui).
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