O Novo Crepúsculo do Liberalismo
Por Jorge Alexandre Neves
Ao ler o editorial da revista britânica The Economist (“A Manifesto for Renewing Liberalism”) é inevitável para mim a lembrança do livro e do filme “O Grande Gatsby”. Um dos grandes romances americanos de todos os tempos, o texto de F. Scott Fitzgerald traz uma extraordinária crítica social ao crepúsculo do laissez-faire, na década de 1920, nos EUA.
O laissez-faire sucumbiu não apenas em função de razões objetivas, quanto de certa decadência moral. Thorstein Veblen terminou por registrar em um ensaio (A Teoria da Classe Ociosa) o que Fitzgerald fez em seu romance. A suposta ética do trabalho dos capitalistas identificada por Max Weber (A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo) já tinha sucumbido a uma burguesia que havia se “aristocracizado”. Da mesma forma, as condições econômicas e políticas que fundamentavam o laissez-faire estavam em rápido processo de decomposição. Para Jügen Habermas (Toward a Rational Society), o período entre as duas grandes guerras foi marcado pela intervenção estatal para atenuar flutuações cíclicas na economia, levando à morte do capitalismo liberal, a consolidação do capitalismo oligopolista e o consequente colapso e deslegitimação da ideologia do laissez-faire.
Como coloca Fernando Rugitsky, o arcabouço institucional da sociedade foi, então, “repolitizado” e “tanto as causas quanto as consequências dessa transformação histórica se deveram à profunda polarização política dos anos 1930, com o fortalecimento da esquerda radical e da direita radical e o resultante eclipse do liberalismo político” (disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-41612015000300499). Para Habermas (Toward a Rational Society), o período que sucede a segunda guerra mundial trouxe a emergência de uma nova base de legitimação, que substituiu o laissez-faire. Para ele, a ciência e a tecnologia – e, portanto, a educação – passaram a desempenhar esse novo papel de legitimação, consolidando-se como uma nova ideologia que hoje costumamos chamar de “meritocracia”.
Vivemos, hoje, um novo crepúsculo do liberalismo e não é coincidência que o editorial da revista The Economist identifica que esse processo coincide com a derrocada da ideologia que substituiu o laissez-faire, ao concluir que “de todas as formas possíveis, a meritocracia liberal está fechada em si mesma e se autossustentado. [...] A classe dominante vive numa bolha. Eles frequentam as mesmas universidades, casam-se entre si, moram nas mesmas ruas e trabalham nos mesmos escritórios”. A base de legitimação da meritocracia como ideologia de dominação está se desintegrando. A maior evidência empírica da falácia da meritocracia é a chamada The Great Gatsby Curve, que podemos ver no gráfico, abaixo.
O gráfico acima mostra como a reprodução intergeracional da renda (medida pela elasticidade) está associada com a desigualdade de renda (medida pelo coeficiente de Gini). O Brasil se destaca no gráfico por ter o nível mais elevado de desigualdade de renda (o maior Gini). Adicionalmente, pode-se ver que, no caso do Brasil, o valor observado da elasticidade intergeracional da renda está bastante próximo ao valor esperado. Tanto economistas políticos, como Lester Thurow, quanto sociólogos, como Wolfgang Streeck, identificaram justamente na cristalização da desigualdade – possível após a derrocada do socialismo no leste europeu – o germe da derrocada do capitalismo liberal, após o triunfo da chamada revolução neoliberal.
A transmissão intergeracional da desigualdade se dá, no mundo contemporâneo, justamente através da educação, o que só reforça a falácia da ideologia meritocrática. O gráfico abaixo mostra bem como esse processo é tratado na análise sociológica, obviamente em sua versão mais parcimoniosa.
Onde: OSE = Origem Socioeconômica; EDU = Educação formal ou escolarização e; DSE = Destino socioeconômico.
Derrocadas do liberalismo trazem ameaças e oportunidades. No caso dos períodos entre as duas grandes guerras, a maior ameaça foi a emersão do autoritarismo (de esquerda e de direita) e a consequente fragilização da democracia. O período posterior à segunda grande guerra, contudo, mostrou ser possível a superação do capitalismo liberal sob o protagonismo de estados democráticos.
De modo geral, esse processo de superação do capitalismo liberal que se observou em vários países do mundo entre 1945 e o final da década de 1970 (quando se iniciou a chamada revolução neoliberal) conseguiu produzir o desenvolvimento social e a queda da desigualdade graças à elevação da carga tributária. Aqui, tem-se um problema para o caso brasileiro. O gráfico abaixo mostra uma clara relação entre carga tributária e desigualdade. Mais especificamente, ver-se ali que, quanto maior a carga tributária, menor tende a ser a desigualdade. O problema é que o Brasil é claramente um ponto fora da curva (tem um valor observado muito distante do valor esperado). Ao contrário do padrão universal, no Brasil o estado arrecada bastante (tem uma carga tributária semelhante a de alguns países europeus), porém não consegue promover a equidade, muito pelo contrário. Temos, no Brasil, historicamente, um estado relativamente forte e que extrai uma proporção significativa da renda nacional, mas ao fazer isso termina por transferir renda dos pobres para os ricos, o contrário do que fazem, de modo geral, os demais países com elevadas cargas tributárias.
Recentemente, o estado brasileiro passou por uma breve experiência de “colocar o pobre no orçamento” e, com isso, promover o desenvolvimento social e a queda de várias formas de desigualdade. Esse movimento leve e discreto já foi suficiente para impulsionar um golpe estamental. A retomada desse processo, com um possível refortalecimento da democracia, demandará medidas ainda mais focadas em expectativas redistributivas. Reformas – em particular a tributária, focada na redução da regressividade do sistema – se farão necessárias e precisarão, inevitavelmente, mexer com privilégios da plutocracia rentista e do estamento burocrático e profissional. O que sobrou de nossa democracia sobreviverá a esse novo estresse político-distributivo? - (Aqui).
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[Jorge Alexandre Neves - Ph.D. em Sociologia pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA), Professor Titular do Departamento de Sociologia da UFMG, Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin (EUA) e da Universidad del Norte (Barranquilla, Colômbia), pesquisador do CNPq e articulista do jornal Hoje em Dia. Especialista em desigualdades socioeconômicas, análise organizacional, políticas públicas e métodos quantitativos].
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Nota:
O artigo acima foi produzido bem antes da ascensão do candidato Jair Bolsonaro.
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Entre os (bons) comentários suscitados, destacamos o de autoria de Wilton Cardoso Moreira:
"Há duas possibilidades: ou estamos no crepúsculo do neoliberalismo, com a possibilidade do ressurgimento de um modelo político e econômico mais justo; ou estamos na crise final do capitalismo, cuja alternativa racional seria a emancipação do sistema.
A segunda hipótese não pode ser ignorada, pois talvez não haja mais possibilidade de o capitalismo se autorreformar, como em 45. Principalmente por conta da automação generalizada da produção, finanças, serviços e comércio, que já começou.
Bilhões de pessoas podem estar se tornando supérfluas para o capitalismo, que não necessita delas para produzir bens e serviços. A automação, e não o neoliberalismo financista, seria a causa profunda da tendência global ao desemprego e ao subemprego e, consequentemente, à crescente desigualdade de renda.
E parece que, desta vez, o fechamento de vagas promovido pela tecnologia não abrirá mais vagas em outros setores. Se for este o caso, não há mais saída para o capitalismo. A renda mínima universal ou soluções como o IR negativo ou Bolsa Família são meros paliativos para a impossibilidade da imensa maioria da população (mundial) ter um trabalho que permita viver de forma digna.
O trabalho é a base (social, psíquica e econômica) do capitalismo. Se ele não for mais necessário, o capitalismo acaba. Mas antes haverá terremotos sociais insuportáveis em todas as nações."
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