Aos meus alunos, sem medo
Por Luiz Felipe Viel Moreira
Em 1982, iniciei o exercício do magistério como alfabetizador no antigo Mobral. Ali, pela primeira vez entrei em contato com o pensamento de Paulo Freire. Eu, com os meus silêncios, tive que lidar com a voz tímida dos silenciados. A partir das palavras geradoras comecei com todos aqueles esforçados, pois sempre depois de uma árdua jornada de trabalho, o processo de reconhecimento de sermos condicionados e não determinados, possibilitando assim o surgimento de uma lenta consciência crítica, um caminho fundamental para se superar a mera percepção ingênua da realidade. E me dou conta hoje que este início, onde meu aluno mais novo tinha 16 anos e o mais velho 73, foi o período de maior alegria na minha atividade como mestre.
Ao longo da década de 1980, a nação transitava para a democracia e eu atuava como professor em inúmeras escolas da grande Porto Alegre, ao mesmo tempo em que, como cidadão, ajudava a construir no campo político uma nova opção transformadora. Como a música e a peça de teatro tão famosas naquelas latitudes à época, não queríamos então nos perder por aí. As possibilidades abertas em 1989 foram maravilhosas para os setores populares, com a vitória de Olívio Dutra na capital. E era partícipe de um projeto político que finalmente começava a sentar raízes, passando a atuar no gabinete de um dos vereadores eleitos da cidade, no qual não fiquei muito tempo, por uma opção de retorno aos bancos da academia, depois de tantos anos de docência no ensino primário.
Nos quase 30 anos que se seguiram, tanto aqui como o mundo mudaram muito, e tenho dúvidas se consegui acompanhar as transformações, até mesmo em seus aspectos tecnológicos. Penso e me consolo no poema de Walt Withman: “Contradigo-me? Pois bem, contradigo-me Sou amplo Contenho multidões”. Mas, qual foi o meu papel nesse período como professor, pai e marido, que implicitamente havia prometido como no poema de Mario Benedetti, e que cantamos no casamento em Córdoba, estarmos “na rua lado a lado, e sermos assim muito mais que dois”? Vejo que a tudo e a todos com minhas contradições marquei positiva e negativamente. A formação acadêmica imprimida e que me levou a trabalhar numa universidade pública possibilitou um crescimento intelectual. Tornei-me exigente no conteúdo, mas não generoso como educador. Como prêmio de consolação, a única certeza que tenho é a de não ter sido irresponsável e cúmplice de um sistema alienante.
Nos acontecimentos que correm, no passivo de uma pátria vergonhosamente desigual, os mais efetivos passos em direção à justiça social foram dados em governos anteriores, e isso é o que incomoda às elites brasileiras. A mentalidade escravista da casa grande, com seus privilégios arraigados, e tão naturalizados, ainda permeia a nossa sociedade bacharelesca, onde o peso do “você sabe com quem está falando!” marca a diferença e expressa a realidade de uma cidadania plena que segue sendo sequestrada. Uma mentalidade tão míope que não se dá conta do tiro no pé que está dando, com o processo de desmonte do próprio capitalismo local.
As contradições não foram apenas minhas, mas de um coletivo que após 2002 abandonou a busca pela hegemonia em suas bases sociais e com o arco das lutas nacional-populares, o que não permitiu avançarmos muito mais nas conquistas junto aos setores mais vulneráveis e excluídos de qualquer lugar ao sol neste imenso Brasil. Acreditava-se que o sucesso mundialmente reconhecido das transformações bastariam e mudariam a mentalidade das minorias, para quem igualdade de direitos e oportunidades soa como opressão; que não perderam em nada e nem generosamente doaram anel algum. Ledo engano, pois a fraternidade se desbotou, o debate ideológico minguou e a militância se esvaziou.
Moisés vagou tantas décadas em círculos no deserto para percorrer tão poucos quilômetros por apenas não dispor à época de um GPS para cruzar o Sinai e chegar à terra prometida? Não, foi proposital o desaparecimento de uma geração, simplesmente para fazer com que os construtores da nova sociedade não a amalgamassem com uma mentalidade de escravizados. Quanta ingenuidade de parte das lideranças progressistas e de todos nós. O que vemos hoje é uma reação raivosa, antidemocrática e intolerante. E aqui entra em cena uma enorme farsa, com o papel dos grandes meios de comunicação e de uma justiça, ambos partidários, atuando seletivamente e contaminando toxicamente todo tecido social. Como resultado, um processo de embrutecimento mental de uma parte significativa da sociedade, arrastando as classes médias para as marchas por Deus, Pátria e Família, como em 1964. Estamos frente a um embuste, agora com possibilidades de tragédia, cujos primeiros atos já claramente apareceram na contestação ao resultado das eleições presidenciais de 2014.
São muitas e brilhantes as avaliações nos últimos dias sobre o que está acontecendo conosco, principalmente partindo das áreas da filosofia e psicologia, com sobras de manuais de autoajuda para lidar com o desinformado que está ao lado, mas que não deve ser tratado de fascista. Ou do aspecto conservador da sociedade como um todo, independente de como ela se conformou, ultrapassando as análises de classe. Ao que se tem que agregar o clamor para que as esquerdas façam sua auto crítica. Como se os acertos não fossem infinitamente superiores aos erros e como se nós como pais, profissionais ou mesmo como amigos nunca tivéssemos errado e isso não fizesse parte da vida. Basta.
Agora simplesmente é hora de se formar uma frente ampla, apenas isso, contra toda uma onda de maldade que está vindo. A luta atual retoma nua e cruamente a famosa dicotomia de Sarmiento, civilização versus barbárie, lá do século XIX. Exemplo do papel da ação humana em um destes contextos no século XX é sintetizada e apresentada de forma bem didática no personagem interpretado por Viggo Mortensen no filme “Um homem bom”, do cineasta Vicente Amorim. Não vejo melhor lição do que essa, pois o que faz uma pessoa feliz não pode ser ruim ao mesmo tempo? Halder, um pacífico intelectual, involuntariamente ajudou a azeitar uma máquina mortífera, mas se deu conta tarde demais. Ao término de sua jornada ele se depara finalmente com “o mostro que nos olha no espelho”. Aqui me remeto a um texto de cidadania escrito há pouco por Sergio Medeiros. Um ensaio síntese que não deixa de refletir sobre todos nós, sujeitos de carne e osso, milhões de Halder brasileiros em pleno século XXI, que terão que responder por seus atos, mesmo não tendo instrução, ou se sentindo tão piedosos.
A violência sempre fez parte da nossa história social, apenas não queremos ver, e anestesiados a jogamos para debaixo do tapete. Aí está a criminalização das lutas sociais, que contraditoriamente continuaram mesmo após a retomada da democracia, invertendo o real drama dos que se encontram expulsos do paraíso. A omissão do Estado nos últimos anos, e de significativos segmentos da sociedade civil organizada, que há muito já não zelam pelos valores democráticos, abriu espaço para uma nova violência política, essa agora em andamento. Não haverá como justificar o que está acontecendo, nem compatriotas poderão mansamente lavar as mãos e simplesmente dizerem “em meu nome não!”. Então em nome de quem concidadão, de um fundamentalismo cristão-monetário apenas? Ou de um chauvinismo cínico? Todos sairemos chamuscados, pois mais do que os possíveis excessos de uma retórica quando de época de eleições, muito se mentiu e difamou nos últimos anos, em público e privado, de boa ou má-fé. E como sociedade há muito escutamos barbaridades de alguns de nossos representantes, e fomos condescendentes. A caixa de Pandora foi aberta, e todos os diabinhos de preconceitos saíram para fora. Estamos perdendo urbanidade.
Do geral ao particular, o que vemos hoje é o avanço do fascismo no país, sem meias palavras, pois esse é o nome, substantivo, adjetivo e verbo. O ovo da serpente há muito foi chocado, mas a maioria de nós não se deu conta. Leonardo Boff, que como Paulo Freire, embasam muito além dos pagos tupiniquins rupturas epistemológicas importantes no pensamento social contemporâneo, há pouco afirmou ao comentar os acontecimentos que estamos vivendo, algo elementar, mas esquecido pela imensa maioria: o quanto tudo que envolve o conceito de classes continua sendo atual. É o velho e atualíssimo Marx nos dizendo ali no 18 de Brumário que os homens fazem sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, pois são sujeitos de experiências condicionadas pela complexidade de suas relações sociais.
Através da educação podemos reproduzir a ideologia dominante dos saudosistas da senzala ou da ditadura, e nos somarmos alegremente e candidamente a essa onda reacionária, ou lutar pelo seu desmascaramento, e denunciarmos o engodo que estamos vivenciando. Temos essa obrigação para com filhos, gerações futuras e mesmo a humanidade, sim! Na onda que está arrebentando eles lograram impor que o temor entrasse nos corações, e isso é uma realidade até mesmo para aqueles que estão colocando a cabeça debaixo da terra. No pátio de estacionamento do Centro de Ciências Humanas onde trabalho, nenhum carro com adesivos do modelo maior da exclusão, talvez pelo que o Instituto ainda represente como bastião no pensamento livre local, mas também nenhum com o do candidato que defende os princípios republicanos construídos ao longo da nossa história. Na cidade, no entanto, uma sombra agressiva se impôs. Como é possível? Amigos que tem de fazer trajetos rodoviários não querem correr o risco de demonstrar sua opção. É o horror! Eles inocularam o medo e nós saímos da rua, e somos mais do que dois agora apenas em casa.
Para garantir que esse núcleo familiar se multiplique em base aos princípios humanistas saí correndo nos últimos dias a buscar algumas obras clássicas para meus filhos adolescentes lerem: “1984” de George Orwell, “Admirável mundo novo” de Aldous Huxley, “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury, além é claro de tudo de Lima Barreto – ao final a República Velha não é Novíssima? Digo isto pois creio que estas leituras mínimas podem lhes ajudar a surfar na onda, entenderem melhor o que está acontecendo e não se machucarem tanto. Eles terão que lidar com um entorno hostil e confuso, e estão permanentemente influenciados por luzes da ribalta no mínimo supérfluas, vindas de todos os lados possíveis.
E também porque receio não tardará muito para os livros começarem a serem incinerados, como o personagem Montag de Fahrenheit o fazia, antes de seu caminho a Damasco. Faulkner, Dante, Swift e Marco Aurélio não estavam na lista? Quem duvida que daqui a pouco, superando a ficção, Darci Ribeiro não será o primeiro nesse canto do planeta verde e amarelo? A biblioteca da Universidade de Brasília já não foi atacada? O incêndio e destruição do Museu Nacional não é o símbolo dos dias atuais nestes tristes trópicos? Seguro Lévi-Strauss, que trabalhou na Universidade de São Paulo, não escaparia da insânia. Sem falar dos Caios, o Fernando Abreu e o Prado Júnior, só para começar. A esperança é que o momento em que vivemos desperte em todos a nitidez do campo da luta onde nos encontramos. E possamos rever posições e atitudes, pois estamos nada menos que num embate pela preservação dos valores mais importantes edificados pelo ser humano.
Pois quem constrói permanentemente, ontem e nos dias de hoje, os Vales do Silício de sete portas? Para Bertold Brecht estas são histórias não apenas com grandes homens, mas com povo, de um trabalhador que lê e se pergunta, levando-o a refletir e perceber o significado das sombras que o amarravam na caverna. Entretanto, acima de tudo estamos falando de homens e mulheres perpassados também por inúmeras subjetividades, imersos atualmente em uma sociedade contemporânea de consumo desenfreado e de prazer auto referendado. E com a religião avançando sobre a “res publica”, num Estado que se deixou minar em sua capacidade de zelar por sua própria neutralidade, base da nossa modernidade nesse tema. Na política não existe lugar para o vazio e a direita agora tem clara sua consciência de classe, e arrasta pela desinformação e pelas notícias falsas a outros tantos milhões. Mas isto é suficiente para entendermos toda a extensão do que está acontecendo? Ontem era apenas o silêncio das massas, e hoje é o que?
Independente de todos os desdobramentos e análises por virem, que a determinação por uma pátria mais igualitária, solidária e inclusiva não adormeça e continue sendo uma bandeira honesta no coração ao menos de uma ampla maioria dos brasileiros. A luta continuará, pois mesmo que todos os livros sejam queimados subsistirá uma memória. E, particularmente, eu volte a ser um professor generoso. Sem medo de sermos felizes. - (Aqui).
(Luiz Felipe Viel Moreira - professor de História na Universidade Estadual de Maringá, e atualmente coordenador do Programa de Pós-graduação em História).
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