O poder da palavra é imensurável. Não à toa, 'lançamos' neste destemido blog, há priscas eras, a série Certas Palavras, explorando sutilezas escondidas por trás de sentidos, de acepções, de significados. O deus das palavras diria, sutilmente, que no início, no meio e no fim, reina a palavra, o verbo. Para o bem e para o mal. Que o digam os escribas midiáticos, especialmente os destes atribulados tempos.
Gramática de Manipulação: Uma aula de como enviesar o leitor pela manchete
Do Jornal GGN
Mestre em Linguística e com mais de vinte anos de carreira no jornalismo, também chamam Letícia Sallorenzo pelo apelido “Madrasta do Texto Ruim”, por seu trabalho minucioso de revelar o trato dos jornais com as palavras. Mas foram as manchetes, os poucos caracteres que formam os títulos de reportagens, durante as eleições 2014, que serviram de mesa farta para seu estudo da manipulação.
Essa análise da parcialidade e da tomada de decisões que envolvem criar manchetes pelos meios de comunicação foi cientificamente provada na sua dissertação de mestrado, defendida em março, no Programa de Pós Graduação em Linguística (PPGL) da Universidade de Brasília. E que, agora, virou o livro "Gramática da Manipulação: como os jornais trabalham as manchetes em tempos de eleições (e em outros tempos também)", pela Quintal Edições.
Conversamos com Letícia para entender como se comprova a manipulação da imprensa, por meio dessas ferramentas "cognitivo-funcionais" na observação das palavras de um título – o diagnóstico da publicação, que será lançada no próximo 25 de setembro, em Brasília.
A resposta não foi tão simples, mas uma verdadeira aula de Linguística que ensina, entre outras coisas, o poder das palavras, seus impactos sensoriais, as escolhas políticas de sinônimos mais ou menos adjetivados, a importância da semântica tanto quanto da sintaxe e a conclusão de que a construção de uma manchete é movida por ideologias.
Abaixo, acompanhe os principais trechos da entrevista:
GGN: Uma apresentação e como surgiu a ideia de trabalhar esse tema?
Letícia Sallorenzo: Sou Letícia, vinte e tantos anos de jornalismo, mestra em Linguística, linguista, colunista do GGN. Estou fazendo neste momento nas manchetes de 2018 o que eu fiz no mestrado em 2014. As manchetes começaram a me incomodar já no segundo governo Lula, quando teve aquele boom de notícias positivas, com a economia explodindo, com o PIB em alta, e eu via uma notícia positiva, (virgula mais) uma notícia negativa.
E aquilo estava me atormentando, estava vendo manchetes mais extensas do que o normal e sempre com o viés negativo, principalmente na estrutura da manchete. Eu consegui provar na minha dissertação que manchete é um gênero textual, a despeito de ser um gênero jornalístico. O que a torna um gênero? É a função que desempenha. A manchete tem uma função que é diferente da reportagem: gráfica, informativa, tem a função de falar o lead com outras palavras.
GGN: Por que essa escolha pela manchete?
Porque todo mundo lê manchete. Nem todo mundo lê as notícias. E manchete já extrapolou a diagramação da primeira página. Porque essa teoria vem de um tempo em que os jornais impressos eram "vedete", tinha importância e as pessoas passavam nas ruas e olhavam para as bancas de jornal. Isso não existe hoje mais, as pessoas passam na rua olhando para o celular. Uma das funções da manchete é ser vitrine. E tem muitas manchetes contraditórias com o texto que elas anunciam, a manchete diz uma coisa, o texto diz outra. Ela atrai mais gente, é rápida, de consumo instantâneo, imediato.
GGN: Esse novo significado da manchete tem a ver com esse momento atual que a gente vive?
Tem a ver com o momento atual que a gente vive também. E uma das coisas que eu quero defender, e já estou extrapolando para o meu doutorado em comunicação, é que eu tenho para mim que o modo de criar uma manchete se alterou de uns anos para cá e a internet teve papel nisso.
GGN: Qual o poder das palavras e de que maneira isso se dá em uma manchete?
O poder das palavras é bem grande e isso se dá de maneira à pessoa não perceber. Começa pela categorização. O que é? É um processo que a equipe da professora Eleanor Rosch, do departamento de Psicologia da Universidade de Berkeley, na Califórnia, na década de 70, começou a estudar e descobriu que é um processo chave para nós humanos entendermos o mundo [leia mais aqui]. É uma maneira de a gente pegar o caos que é o mundo e jogar todas essas informações dentro da nossa cabeça em gavetinha, arrumadinho.
E esse processo não é 100% racional, tem uma boa parte de emocional, sensorial nele. Por exemplo, as comidas que eu gosto, as que eu não gosto; políticos que eu gosto, políticos que eu não gosto. Mas quais foram as palavras usadas nas notícias relacionadas àqueles políticos que eu não gosto?
(...)
GGN: Essa conclusão era inegável?
Eu me vejo diante desses dados, não foi nada sutil que apareceu para mim. Era muito estanque, muito determinado. O que eu tinha na minha frente era muito exacerbado, inegável.
GGN: O seu objetivo com o livro é conscientizar, formar olhar crítico do leitor, a partir dessas orientações? Você acredita que, a partir de agora, o leitor vai ver um verbo em uma manchete e perceber que está sendo pejorativo, repetitivo não por coincidência?
Sim, eu acredito até pela minha metodologia. Não vou dizer que qualquer leitor é capaz de pensar isso, não, mas eu estou esmiuçando tudo cientificamente. Claro que o leitor vai ter essa sensação, essa percepção.
O livro é um caminho das pedras, para indicar: observa o sujeito, observa o verbo, a professora "Maricota" só ensinou a você sintaxe, não ensinou semântica. E a semântica que provoca sintaxe. A partir disso, você começa a pensar: Dilma ataca e um animal aciona o 'atacar', então é um verbo de segunda categoria do ponto de vista intelectual. Qual verbo fica melhor: 'criticar', que só o ser humano aciona...
Ainda, o verbo criticar é quase do mesmo tamanho que o verbo atacar. Não foi escolha de redução de palavras, porque ocupa o mesmo espaço, então não existe nenhuma desculpa. Outro verbo que me irrita profundamente é o 'ameaçar'.
(...)
GGN: Do ponto de vista dos jornais, repórteres e editores, até que ponto essa construção de títulos, com palavras que levam a uma interpretação mas além do que parece, é intencional desde a sua criação ou atuam por impulso e repetição de padrões?
Eu sei que uma parte foi feito sem sentir, porque estava correndo, contando caracteres, pensando no fechamento da edição, com pressa, sobrecarregado, numa redação que está estupidamente enxuta. Não dá para culpar mitologicamente a imprensa. Existe linha editorial, formação ideológica, mas também existe barbeiragem. Quem conhece o dia a dia de uma redação de jornal, sabe identificar quando é barbeiragem na hora de fechar edição. Mas tem horas que é evidente que houve uma manipulação proposital.
E as escolhas que você faz são movidas por ideologia. Se você vai pensar em aborto como um assassinato ou como uma questão de saúde pública, vai depender da sua ideologia. Chamar uma mulher que fez um aborto de assassina vai falar mais sobre você do que ela. E por ai vai.
GGN: Como romper esse vício no jornalismo tendencioso?
Se os meus queridos coleguinhas me escutarem, primeira dica: não usem mais o verbo atacar. Só usem quando ele não puder ser substituído por criticar. Ataque a Bolsonaro, por exemplo, está certo, porque foi um ataque.
Outra coisa, parem com manchetes topicalizadas, que é a maneira como se arruma as palavras na frase. Colocar adjuntos adverbiais para cima da vírgula é um processo de topicalização, alçar outra coisa a tópico, a tema da frase. E isso geralmente fere a imparcialidade. (...). - (Fonte: Jornal GGN - AQUI).
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