terça-feira, 3 de abril de 2018

DE COMO PHILIP MARLOWE VOLTOU À AÇÃO (CAPÍTULO 15)

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Sebastião Nunes, autor da série, é natural de Bocaiuva, MG, escritor, editor, artista gráfico e poeta. É também titular de um blog no Portal Luis Nassif OnLine.


O país dos canalhas - Capítulo 15 - A execução de Amnércio Naves 

Por Sebastião Nunes

A forca, de madeira rija e escura, foi erguida na Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro. Para chegar ao cadafalso era preciso subir 12 estreitos degraus. Entre o patíbulo e a plateia havia um cordão de isolamento constituído de estruturas metálicas pintadas de verde e amarelo e unidas por cordas mais grossas que a da forca, que era de nylon e media 15mm de espessura. As cordas não tinham pintura, conservando a cor original do cânhamo e do nylon. O patíbulo se elevava a dois metros de altura, de modo que Amnércio Naves, ao cair através do alçapão, ficaria inteiramente oculto, já que sua estatura era de aproximadamente 1,75m.


DISCUSSÕES FÚTEIS
Em meu delírio, que me mantinha febril e me obrigava a ficar deitado debaixo de grosso cobertor de lã, vi e ouvi tudo o que se relacionava com o julgamento, a condenação e a morte de Amnércio Naves. Não preciso retomar o julgamento ou mesmo a condenação do político golpista, já que toda a população do país (exceto comparsas e a grande imprensa) está ciente de seus inúmeros crimes. Prefiro me ater aos fatos que antecederam a execução e se encerraram com ela, motivo deste delirante e febril relato.
Um dos temas que dominou o plenário durante o julgamento popular foi o da altura do patíbulo. Boa parte dos jurados sugeriu que o enforcando mantivesse a cabeça visível durante todo o processo, de modo que a plateia pudesse acompanhar seus estertores até o último momento. Tal item não mereceu aprovação, sendo considerado macabro, optando-se pelo patíbulo com dois metros de altura, como referido acima.
Outro tema discutido foi a vestimenta do executando. Para alguns, Amnércio deveria usar uma longa bata branca, similar a de Tiradentes. Para a maioria, no entanto, essa semelhança constituía ofensa à memória do mártir, de modo que se decidiu por um dos confortáveis e elegantes trajes completos que usava costumeiramente nas festas, solenidades e jantares que frequentava diariamente, com exceção da gravata importada, é claro, que poderia dificultar o deslizamento do laço no pescoço.
Discutiu-se também se teria a cabeleira raspada, se deveria estar de sapatos ou de sandália havaiana, como fazia na praia, se portaria uma Bíblia, um terço, ou mesmo um exemplar da Constituição, optando-se afinal, por uma questão de humanidade, em permitir que ele próprio, o sentenciado, usasse o seu atilado bom gosto.

DETALHANDO O RITUAL
Decidiu-se pelo impedimento de bandas de rock ou de samba, devendo haver, contudo, o tradicional rufar de tambores. Sobre a assistência, optou-se pelo convite a dois mil representantes dos mais diversos segmentos da população, exceto membros dos poderes executivo, legislativo e judiciário, sendo a maioria suspeita ou ré em um ou mais processos, inclusive vários amigos íntimos e/ou cúmplices do supliciando.
Assim, convidaram-se cantores e atores famosos, empresários e industriais, clérigos de todas as religiões, apresentadores de televisão, blogueiros, fofoqueiros das redes sociais e até estudantes do ensino fundamental das últimas séries, a partir de 12 anos. Estes, para maior brilho da solenidade, empunhariam bandeirinhas nacionais, que sacudiriam nos momentos mais emocionantes.
Algumas dezenas de policiais e seguranças, armados até os dentes, garantiriam o bom andamento dos trabalhos. Não haveria discriminação de sexo, gênero, idade, cor ou religião, exceto aquela relativa à idade mínima, mas só em relação aos portadores de bandeirinhas. Quanto aos demais assistentes, até criancinhas de colo seriam admitidas, desde que acompanhadas pelos responsáveis. O argumento vencedor foi o de que, com o leite materno, o bebê sorveria as primeiras noções de ética, solidariedade e civilidade, que lhe serviriam de amparo na idade adulta, livrando-o de praticar atos como os que então se penalizava.

SOBRE O BUFÊ
Discutiu-se ardorosa e calorosamente, como é natural, sobre o lanche servido aos convidados. Como a palavra estaria aberta ao público, o evento poderia durar horas intermináveis, pois há sempre quem ame pontificar em situações do tipo, especialmente futuros candidatos a qualquer coisa. Considerou-se, ainda, que bufês requintados ou medianamente fartos poderiam atrair um excesso de pobres e mendigos, de modo que se optou por servir apenas refrigerante em copo plástico e sanduíches de mortadela ou sardinha, assim mesmo limitados a uma unidade per capita.

O ENFORCAMENTO
O condenado chegou à hora marcada, sete da manhã, escoltado pela polícia em trajes de gala. Tremia como vara verde, sendo amparado pelos mais próximos. Havia cagado na calça e se mijado todo, como é natural. O fedor era insuportável. Deixara crescer, na prisão, o bigode e os cabelos, de modo que parecia um bandoleiro mexicano de faroeste estadunidense. Olhava à direita e à esquerda como se, à maneira de Luís XVI, esperasse que a qualquer momento cúmplices, admiradores e amigos surgissem do nada para libertá-lo. Porém nada aconteceu.
Ladeavam-no um bispo católico, um pastor evangélico e um rabino ortodoxo. Tropeçou no sexto degrau, caindo de queixo no cadafalso, sem ferir-se, contudo. Erguido pelo bispo, e não conseguindo andar, mas apenas fixando de olhos arregalados o que o esperava, parou petrificado. Aos empurrões, porém, aproximou-se da forca.
Foram iniciados a seguir os discursos, com duração de aproximadamente cinco horas e meia, sem interrupções.
Encerradas as arengas, o carrasco apertou o laço no pescoço de Amnércio Naves e abriu a larga boca do alçapão, caindo o condenado e sendo imediatamente cavalgado pelo verdugo, para apressar a morte.
Em seguida, serviu-se o lanche aos convidados e meu delírio continuou.
(Continua)  -  [Fonte: Aqui].

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