A realidade é muito instigante e nos faz refletir. Ela desperta a nossa consciência e também, em uma perspectiva mais crítica, nos faz ver melhor a verdade que se oculta por trás dos fatos e atos do nosso cotidiano.
Recentemente, foram amplamente divulgadas, pela grande imprensa, algumas notícias que, se bem compreendidas, demonstram que o nosso “sistema de justiça penal” está ideologicamente assumindo “partido”. Vale dizer: “escola sem partido” e “justiça penal com partido” ...
Como tenho constantemente salientado, a estratégia punitivista de se socorrer da grande mídia para lograr punições, previamente desejadas, “está dando bastante certo”.
Aliás, esta estratégia perversa encontra agora um “terreno fértil”, pois os nossos órgãos de persecução penal e do Poder Judiciário, com as costumeiras exceções, são compostos por pessoas de formação conservadora, acrítica e, por vezes, profundamente elitista.
A falta de cultura geral torna polícias, membros do Ministério Público e do Poder Judiciário em “presas fáceis” do autoritarismo, de posturas simplistas e mais voltadas para o “senso comum”.
Na verdade, são raros os profissionais do Direito que, aprovados nos respectivos concursos públicos, continuam estudando e lendo sistematicamente. A falta de cultura geral é uma realidade em nossa atual sociedade. Os motivos desta “letargia” são vários e não cabe aqui elencá-los e comentá-los.
De qualquer forma, entendo que há um certo despreparo para o desempenho mais consequente destas relevantes funções, mormente quando se deflagra um ativismo judicial desmedido, quando se busca ampliar a discricionariedade no processo penal e quando somos dominados pelo poder econômico, que se utiliza da grande imprensa para padronizar comportamentos e pensamentos conservadores.
O pior é que se somam a tudo isso comportamentos insólitos de alguns magistrados e membros do Ministério Público, misturando-se estrelismo com messianismo ingênuo.
Estamos presenciando juízes abandonando a sua necessária posição de sujeito processual imparcial, que deve ser indiferente ao resultado do processo. Estamos presenciando Procuradores da República e Promotores de Justiça agindo como verdadeiros “advogados de acusação”.
Tudo isso fica muito claro na chamada “Lava Jato”, pautada pelo estardalhaço e exibicionismo de vários agentes que atuam em nosso sistema de justiça criminal.
O chamado “processo penal do espetáculo” criou danos irreparáveis para a nossa sociedade. Não só prejudicou fortemente a imagem de pessoas que sequer eram rés, como tornou vulneráveis a diversas críticas juízes e procuradores da república.
Cabe também salientar que a forma espetaculosa que foi imprimida nesta operação, previamente articulada com alguns órgãos da grande imprensa, causou imenso dano a várias empresas nacionais e à nossa economia em geral.
Note-se que não estamos afirmando que o combate à corrupção foi danoso, mas sim que a forma usada para efetivar este combate foi a maior responsável pelos imensos prejuízos acima apontados. Um exemplo claro disso, dentre tantos outros, foi a “Operação Carne Fraca”, irresponsavelmente tornada pública por alguns delegados da polícia federal.
Ademais, não resta dúvida de que os danos que o processo penal do espetáculo causou à Petrobrás são absurdamente maiores do que lhe causava a deletéria corrupção. Para comprovar o que acabamos de dizer, basta citar o pagamento de quase dez bilhões de reais que a Petrobrás acordou com seus acionistas norte-americanos.
Nada obstante tudo isso, julgo que as sequelas maiores deixadas pela Lava Jato não são os danos patrimoniais, mas sim a disseminação, perante a opinião pública, de que vale a pena “flexibilizar” regras jurídicas de garantias, inclusive os chamados Direitos Fundamentais, previstos na Constituição da República, em prol de um combate à corrupção em nosso país, mais simbólico do que efetivo, como demonstrou o professor Jessé Souza, em sua excelente obra intitulada “A Elite do Atraso”.
Outra sequela indelével foi a total “desarrumação” do nosso já precário sistema processual penal. A introdução, em nosso sistema de justiça criminal, do “negociado sobre o legislado”, através de acordos de cooperação premiada em flagrante desacordo com o disposto no Código Penal e Lei de Execução Penal, criando regras processuais absurdas, chegou ao ponto de violar o princípio “nulla poena sine judicio”, fundante do Estado Democrático de Direito.
Assim, o descalabro chegou ao ponto de se tentar executar diretamente o acordo de cooperação premiada, independente de uma necessária sentença condenatória, vale dizer, execução penal por título extrajudicial !!!
Enfim, o passageiro e decrescente prestígio que a Lava Jato outorgou ao Ministério Público Federal criou um sedutor incentivo para que alguns de seus membros buscassem, inclusive no plano legislativo, um poder discricionário no processo penal, totalmente incompatível com o Estado Democrático de Direito, previsto na Constituição da República.
A prova do que se disse acima, vale a pena repetir, é a insólita tentativa do Conselho Superior do Ministério Público de legislar sobre Direito Processual Penal, criando um sistema paralelo ao disciplinado no código vigente, consoante se constata da sua Resolução 181/16, cuja posterior pequena modificação não infirma todo o ato normativo de inconstitucionalidades formais e materiais."
(De Afrânio Silva Jardim, post intitulado "As sequelas da Operação Lava Jato", publicado no Jornal GGN - AQUI.
Afrânio Silva Jardim é professor associado de Direito Processual Penal da Uerj, Mestre e Livre-Docente de Direito Processual [Uerj]. É também Procurador de Justiça - aposentado - do Ministério Público do E.R.J).
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