domingo, 5 de novembro de 2017

DA SÉRIE TEORIA DA EVOLUÇÃO: REPRODUÇÃO SEXUAL

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O texto a seguir integra o pacote 'Teoria da Evolução' e é a postagem nº 4. Para ler as anteriores, clique AQUI (e siga a corrente). Como já observado por este blog, cumpre lembrar que alguns dos argumentos alinhados pelo articulista estão sendo veementemente questionados por leitores do Jornal GGN, fonte dos posts aqui reproduzidos. Não obstante, permitimo-nos opinar no sentido de que vale a pena ler a série.


Como surgiu a reprodução sexual?

Por Gustavo Gollo

O jogo da ciência
A ciência pode ser vista como um jogo de enigmas cujas regras são as seguintes: inventa-se uma pergunta e tenta-se respondê-la. A construção da pergunta é uma das partes mais importantes do jogo (perguntas bem formuladas favorecem boas respostas, perguntas mal feitas induzem os jogadores a erro). Formulada a pergunta, tenta-se encontrar uma resposta para ela. Boas respostas devem ter conteúdo informacional, ou seja, devem excluir algumas possibilidades. Sugeridas as respostas, deve-se testá-las, quero dizer, tentar mostrar que são falsas. Boas teorias se impõem, tornam-se inegáveis, impossível encontrar qualquer outra possibilidade que não as impostas pela teoria.
Nas linhas que seguem descreverei o meu mais belo gol nesse jogo da ciência. Torçam comigo, ao som dos tabores e sob a agitação de bandeiras. A ciência é uma caixinha de surpresas. Tundundundum...
Antes de começar o jogo, no entanto, precisarei apresentar os pressupostos sobre os quais construí a teoria.
Cooperação: a evolução do mutualismo
A evolução biológica é uma decorrência da seleção natural. Replicadores mais aptos, mais capazes de se replicar (fazer réplicas de si mesmo), multiplicam-se mais que os outros, impondo-se desse modo, tornando-se cada vez mais numerosos, sendo esse o princípio básico da evolução.
Pela simples razão exposta acima, o processo de seleção natural impõe certas dinâmicas. Uma delas consiste em uma tendência a interações amigáveis, conforme explicarei.
Suponha o surgimento de uma doença letal, virulentíssima, capaz de matar suas vítimas em um dia. Coisas assim podem emergir. Bastaria, para isso, apenas a ocorrência de uma mutação exatamente errada em algum dos inúmeros seres com os quais convivemos.
Após infectar e matar a primeira pessoa, a doença mortal, então, se espalharia, atacando aqueles que tivessem tido contato com o doente. Esses infelizes morreriam no primeiro dia, infectando outras pessoas durante esse tempo. Seria uma epidemia catastrófica, mas, se imposta uma quarentena, em um dia todos os portadores da doença morreriam. Em seguida, esterilizando-se o ambiente, a doença desapareceria.
Suponha que, no meio tempo, no entanto, tenha surgido uma variante menos letal da doença, uma que matasse em 2 dias. Embora mais branda, essa variante tenderia a matar mais pessoas, já que os infectados viveriam por mais tempo, tendo, por isso, maior probabilidade de infectar mais gente.
Reduções ainda maiores na letalidade ampliariam esse resultado perverso, de modo que se a doença passasse a matar em 4 dias, teria esse tempo para se propagar após contagiar alguém. Matando em 8 dias as possibilidades de contágio aumentariam, o mesmo valendo para qualquer outro aumento no tempo de vida dos infectados.
Sob o ponto de vista das pessoas, tudo isso seria horrendo, catastrófico. Sob o ponto de vista da infecção, no entanto, ela estaria evoluindo e se tornando mais apta. Note que as linhagens muito letais tendem a se extinguir muito rapidamente, enquanto linhagens mais brandas tendem a se propagar e perdurar mais. Essa propensão tenderia a conservar variantes cada vez menos letais.
Uma linhagem que matasse em um ano teria muito mais tempo para se propagar. Matando em 10 anos, isso se acentuaria; em 100 anos, ainda mais!

Esse fenômeno acontece com todas as infecções que nos ameaçam, por exemplo, com a AIDS. Quando surgiu, nos anos 80 a AIDS arrasava e matava os infectados em pouquíssimo tempo. As formas mais brandas da doença, as que demoram mais a se manifestar e não debilitam nem matam os doentes tão drasticamente vão se multiplicando, enquanto as linhagens mais agressivas tendem a desaparecer. A AIDS não é mais tão agressiva quanto nessa época.
Agora imaginemos a evolução do sistema durante um longo tempo. Linhagens muito letais vão sendo substituídas por linhagens menos letais, até que a infecção acabe por se tornar tão branda que inócua. Mas, suponha, então, que novas mutações acrescentem a essa linhagem anódina, certo potencial para melhorar a vida do infectado. É possível, por exemplo, que algum ser infectante inócuo sofra mutação que o torne produtor de uma dada vitamina. Oh! Nesse caso, o portador da infecção passaria a suprir uma necessidade alimentar do hospedeiro sem custo para este. Recebendo o agente infectante, chamemo-lo, agora, simbionte, os indivíduos infectados obteriam vantagens com a infecção, tendendo a viver por mais tempo que outros, favorecendo, com isso, também, seus simbiontes que, desse modo, obteriam mais tempo para sua própria disseminação. Quanto mais benéfica uma linhagem de simbiontes para seus hospedeiros, maiores serão suas possibilidades de se disseminar.
Esse processo é bem conhecido há muitas décadas. Descreve a tendência dos parasitas de se tornarem menos deletérios e letais, com o tempo, e a prossecução do processo até a transformação dos seres em simbiontes capazes de favorecer os infectados. A flora intestinal ilustra esse nível de cooperação entre os organismos. Em um nível ainda posterior, a associação se tornaria tão emaranhada, que os seres se tornariam dependentes, uns dos outros.
Acredita-se ter sido essa a origem dos animais, colônias de seres infectados por mitocôndrias, originalmente, seres parasitas. Também teria sido a origem dos vegetais, infectados originalmente pelos plastos. Tanto as mitocôndrias quanto os plastos possuem DNA próprio e se reproduzem independentemente, consistindo, provavelmente, em descendentes de parasitas que passaram por todas as etapas acima.
Golaço! Lembro que exultei ao ler isso em “O gene egoísta”, de R. Dawkins. Recapitular essa belíssima passagem é como rever um gol. Tornemos ao jogo.
Como surgiu reprodução sexual nos animais?
A forma sexual de reprodução parece constituir um enorme contrassenso por várias razões:
A forma preexistente de reprodução funcionava perfeitamente e de maneira mais simples, havendo só um tipo de indivíduo. O modo sexual de reprodução é muito mais difícil e complexo em todos os níveis do processo.
É extremamente antieconômica já que, aproximadamente, a metade do esforço reprodutivo é “desperdiçada” na produção de machos. A longo prazo, essa diferença vai se multiplicando e adquirindo quantidades assombrosas decorrentes do crescimento exponencial. Na décima geração, o potencial de geração de fêmeas a partir da reprodução assexuada é 1000 vezes maior que na sexuada, na vigésima, isso sobe para 1.000.000.

A reprodução sexual gera outras dificuldades, como a necessidade de encontro entre machos e fêmeas. De maneira geral, no entanto, podemos descrever o modo de reprodução sexual como uma inovação onerosa, dados os gastos com machos; e dificultosa, devido à necessidade de dois tipos distintos (machos e fêmeas). [Esse obstáculo pode ser superado por seres hermafroditas, sugerindo ter sido esse o primeiro modo de reprodução sexual, que teria consistido, assim, apenas em uma complicação desnecessária, mas não tão onerosa].
Como tal complicação teria se imposto em alguma linhagem? De que maneira uma espécie teria passado a complicar uma ação já executada a contento e de modo mais simples e eficiente?
Perguntas como essas costumam ter como resposta algum processo adaptativo. Se um dado evento, ou processo, propicia vantagem seletiva para um dado grupo, ou seja, se facilita a replicação e consequentemente, a multiplicação desse grupo, o processo tende a se espalhar.
A reprodução sexual tende a proteger as espécies de seres grandes (visíveis a olho nu) – muito complexos e que tendem se replicar a uma taxa muito lenta, mantendo número relativamente pequeno de indivíduos –, contra parasitas, por propiciar maior diversidade genética aos organismos (o parasita capaz de matar um ser, tem capacidade de matar todos os seus clones). Tal proteção, no entanto, não propicia uma vantagem seletiva imediata.  
Penso que tais vantagens, como todas as outras associadas a esse modo de reprodução, manifestam-se, apenas, passado longo tempo, quando as dificuldades associadas ele já deveriam tê-lo eliminado. Mas, sendo assim, o que teria levado uma espécie a complicar as coisas para ela mesma, reproduzindo-se sexualmente?
A origem da reprodução sexual
Consideremos os primeiros animais já possuidores de órgãos diferenciados a singrar os mares. Embora a divisão de tais seres seja pensável, duplicar e dividir órgãos tende a dificultar esse processo. Seres complexos, estruturados em órgãos, replicam-se mais facilmente através da construção de células embrionárias independentes que, posteriormente, dividem-se e diferenciam-se nos vários tecidos que compõem o indivíduo adulto.
Chamemos essa célula original de ovo.
Originalmente, os animais produziam ovos e os lançavam ao mar, onde as células que os compunham se dividiam sucessivamente até atingir a conformação adulta, quando tais indivíduos passavam a lançar seus próprios ovos, fechando o ciclo.
Imaginemos um minúsculo parasita livre-natante infectando os seres marinhos. Ele encontra um ser, preferencialmente embrionário, um ovo, normalmente frágil, infecta esse ser e se reproduz em seu interior. Talvez a infecção acabe matando o hospedeiro. A dinâmica parasita/hospedeiro, no entanto, sugere uma atenuação constante, ao longo do tempo, da agressividade do parasita: linhagens menos agressivas, que evitam danos ao hospedeiro, tendem a se perpetuar, enquanto as linhagens agressivas pagam o preço por eliminar o hospedeiro do qual sobrevivem.

Assim, o parasita acaba se adaptando para conseguir conviver longamente com o hospedeiro, infectando-o desde o ovo, multiplicando-se enquanto o hospedeiro cresce e se desenvolve. Uma boa estratégia para poupar o parasita, garantindo assim a continuidade do próprio sustento, pode consistir no enquistamento do parasita, concentrado assim, em um único ponto, permanecendo ali quase inerte esperando... esperando o momento de reprodução do hospedeiro, quando ele e outros de seu tipo depositam seus ovos, talvez conjuntamente, de maneira a saciar os predadores. Quando na época da postura, o parasita poderia “acordar”, se multiplicar, e se lançar às águas, livremente, em uma enorme nuvem de minúsculos seres em busca de seus próprios hospedeiros. Uma estratégia assim talvez perpetuasse a linhagem de parasitas, poupando, também, a de hospedeiros, e enlaçando-os, ambos, em um relacionamento tendente à redução de prejuízo e aumento de benesses recíprocas; quero dizer, o tempo se encarrega de fazer prosperar as linhagens tendentes às reações mutualísticas, favoráveis a ambas, e de eliminar linhagens funestas. Pode-se imaginar duas linhagens paralelas de parasita/hospedeiro dependentes uma da outra, coexistindo em benefício mútuo.
Uma relação tão íntima entre as duas espécies poderia permitir, mais de uma vez, a ocorrência de um acidente notável; a incorporação do material genético do hospedeiro ao parasita, que pode passar a utilizar o sistema de reprodução celular do hospedeiro para a fabricação de seus próprios descendentes, misturando com o dele seu material genético.
O surgimento de um parasita que carregasse o material genético do hospedeiro consistiria em um surpreendente e eficientíssimo retroparasitismo efetuado pelo hospedeiro! Ao infectar um novo hospedeiro, o parasita garantiria, não apenas, sua própria reprodução, mas também a de seu hospedeiro, disseminando o seu genoma.
Imaginemos um parasita infectante de ovos, como o descrito acima, carregando consigo o genoma de seu hospedeiro e inoculando-o em outros ovos! O resultado seria contundente: um único hospedeiro/parasita poderia, desse modo, reproduzir-se de uma maneira estrondosa após disseminar uma vasta quantidade de parasitas portadores de seu próprio genoma. Em vez de gerar apenas seus ovos, esse indivíduo usaria seu parasita para perpetuar sua linhagem propagando assim o seu próprio genoma, de uma maneira extremamente econômica.

Que vantagem imensa poder se reproduzir desse modo tão barato, gerando uma infinidade de minúsculos portadores teleguiados de seu genoma, em busca de ovos. O gasto com um único ovo, poderia ser trocado pelo investimento em dezenas, talvez centenas de minúsculos parasitas.
Quanto ao “amável” parasita, tão solícito em disseminar o genoma do hospedeiro, em ajudá-lo tão eficientemente em sua replicação, deve ser tratado com amabilidade equivalente. Quanto mais bem tratado for o tão prestativo “parasita”, mais ele retribuirá. Quanto mais um deles for multiplicado, mais o outro o será. Enlaçando genótipos, ambas as criaturas, parasita e hospedeiro, entrelaçam-se, elas mesmas, selando seus destinos em um só.
Essa é a origem do espermatozoide.
Os indivíduos infectados pela parceria composta pelo retroparasitismo adquiririam uma forma diploide, (isto é, contendo 2n cromossomos, 2 conjuntos genômicos completos), incorporando o genoma haploide do hospedeiro/parasita ao seu próprio. Formas diploides tendem a adquirir certa robustez, fortalecidas pela eventual heterozigose.
Cada uma das linhagens infectadas pela surpreendente criatura viriam a se beneficiar do mesmo modo de reprodução barata propiciada pela disseminação parasitária.
Haveria, no entanto, um grave problema, recapitulemos:
O primeiro parasita retroinfectado teria gerado um indivíduo diploide infectado.
O genótipo desse indivíduo seria disseminado pelas miríades de parasitas que o infectassem, atacando seres comumente haploides e gerando seres triploides; esses gerariam tetraploides, e assim por diante, aumentando descontroladamente o material genético dos seres, gerando enorme instabilidade.
Essa instabilidade genética desfavoreceria a seleção, já que a “reprodução” dos seres não copiaria o genoma, mas o modificaria, ampliando-o.
Surgimento da meiose
Qualquer linhagem que conservasse a quantidade de cromossomos conseguiria a enorme vantagem da estabilização, o que poderia advir de um “erro”, interessante:
A divisão celular, a maneira de multiplicação das células, exige uma fase de duplicação cromossômica, quando todo o material genético da célula é duplicado, e posteriormente separado, indo cada metade idêntica desse material para uma das células. Um “erro” providencial, estabilizador, consistiu na repetição dessa última etapa quando na produção dos gametas.
A dupla divisão celular após a duplicação cromossômica reduz o número de cromossomos à metade, gerando assim gametas haploides que se completam ao se unir a seu par gerando seres diploides que recompõem o ciclo, dividindo duplamente suas células germinativas, posteriormente.
A estranha relação parasítica resulta assim, surpreendentemente, em um ser sexuado!
O parasita acabaria, dessa forma, por se tornar o vetor da reprodução de seu hospedeiro, garantindo assim o enorme sucesso de ambas as linhagens!
Um fator adicional surpreendente potencializou ainda mais o fenômeno. O parasita, caçador de ovos, não precisava ser muito exigente em sua escolha, atacando ovos em geral. A infecção de tipos diferentes do de seu hospedeiro tendia a ser arriscada para o parasita. Novos hospedeiros tratariam o agente infectante dessa forma, como agente infectante, que ele realmente é, “desconsiderando” seu potencial imenso como ajudante na confecção de suas próprias cópias. Tenderiam, por isso, a contragolpear o parasita.
Parasitas, no entanto, costumam estar preparados para isso, nesse caso, com um trunfo adicional: o genoma de outro hospedeiro. Ao infectar um novo hospedeiro, o parasita injetaria nele o genoma do antigo hospedeiro. Ambos os genomas lutariam pelo controle da célula, chegando, provavelmente, a um acordo intermediário, compartilhando, ambos, o governo da célula. O genótipo infectado, naturalmente, tenderia a favorecer seu aliado prestativo, o parasita, proporcionando-lhe as melhores condições de sobrevivência e replicação! E, desse modo, todos os 3 seres ganhariam com o sistema cooperativo já previamente desenvolvido por 2 deles. O resultado seria uma verdadeira explosão genômica, a criação de uma enorme diversidade de seres a compartilhar o surpreendente vetor parasítico de disseminação. Uma vasta diversidade de espécies tenderia a resultar de um tal processo.
E assim teria surgido a reprodução sexual entre os animais, com o parasita transformado em espermatozoide, encarregado da detecção e infecção, ou melhor, fecundação dos óvulos.
Desse modo as linhagens infectantes obtiveram enorme vantagem reprodutiva infectando as outras quase sem esforço. O parasita se incorporou definitivamente ao hospedeiro, assim como as mitocôndrias já o haviam feito. Depois de certo tempo, as espécies desenvolveram mecanismos de isolamento reprodutivo, gerados para garantir a estabilidade genômica, em uma espécie de reserva de mercado para a própria linhagem, evitando a infecção por parte de espermatozoides estranhos.
Junto com tais mecanismos de defesa foi criado também um outro, para garantir a infecção do óvulo por apenas um único espermatozoide.
Até hoje, os espermatozoides mantêm a aparência dos animálculos infectantes originais.
E assim teria surgido a reprodução sexual. Êe ôooo, ê ê ôoo, êe ôo êe ôo êe ôo!

Em tempo: incidentalmente, isso explicaria, também, a explosão cambriana, um momento surpreendente e, até agora, inexplicado na história evolutiva do planeta, quando, após bilhões de anos de morosidade evolutiva, uma explosão de vida gerou, repentinamente, uma vasta diversidade de seres, muito mais complexos e diferenciados que os anteriores.
A explosão cambriana teria sido o resultado da implementação da reprodução sexual entre os animais. Uuuuuuuhhhhhhllllllll!

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