Por Rui Daher
Quando criança, sempre que meu pai se referia a alguém como descarado, imaginava o dito sem os contornos faciais. Logo corria ao espelho e, sorte, estava tudo ali. Como na música, todos poderiam entrar em mim “pelos sete buracos da minha cabeça”. Não preciso citá-los, vocês os conhecem bem.
“João Alfredo? O maior descarado”. Seria pela altura do pobre João ou mereceria ele tratamento rápido. Degola, por exemplo.
“Vai encarar”? Sou dado a melancolias. Era quando sentia pena dos descarados. Nunca sabiam como responder.
- Olha, por que está me encarando?
- Quem? Eu?
Percebia o constrangimento do descarado pelos movimentos do gogó em seu pescoço. Um sobe e desce agitado, veloz, proeminente.
Ficava aflito. Certo dia, na saída do colégio, tentei intervir.
- Ô Gordo, você não percebeu que ele é descarado? Nem olha nem encara. Como pode?
- É por isso mesmo. Na dúvida, arrisco.
- Cruel, não? Já pensou a confusão que você cria na cabeça do descarado?
- E quem não tem cara tem cabeça?
- É de se pensar, Gordo. Mas acho que sim, cérebro e tudo, lá nos interiores, sabe?
- Será que ouvem sem as orelhas?
- Sabe-se lá, os ouvidos podem estar embutidos. Percebo reações de quem bem escutou e sofreu.
- Dane-se. Ele é um descarado.
Talvez, de lá até cá, tenham-se passado seis décadas sem que eu pensasse no assunto nessas bases. O tempo fizera a conotação mudar meu pensamento. O descarado mantinha todos os sete buracos, eles não estavam “mais embaixo”, como é costume dizer, mas sim internalizados em seus cérebros. Sem ideias, noções, caráter, vergonha.
A última vez que me confundi com o assunto, creio, foi por volta de 1964. Assistia num cineclube ao filme "O homem da máscara de ferro", EUA, versão de 1939, dirigido por James Whale, e baseado na obra de Alexandre Dumas, pai. Estreava no cinema o notável ator Peter Cushing, fonte para várias adaptações cinematográficas posteriores do romance.
Um amigo comenta: “Apesar da época, cinema ainda a evoluir, creio que o diretor descaracterizou demais o personagem”.
Pra quê? Voltei à infância e desci a Teodoro Sampaio, procurando descarados. Não importavam ferro, massa de pedreiro ou gesso. Fiquei um tempo assim, a desvendá-los. Com o tempo, fui desencanando deles. Mesmo quando alguém assim se referiu a Fernando Collor, não dei bola.
Até que o Brasil pós-2015 fez-me entender o significado de descaramento, uma epidemia que me parece atravessará o século 21.
E como não poderia abandonar a galhofa, cito aqui dez importantes descarados do Brasil atual. Claro que não cairia na vala comum de Gilmar, Temer, Serra, Moro, Irmãos Batista, et caterva. As tristes valas deixadas pelos alemães com corpos judeus seriam insuficientes para abrigá-los. Vamos lá:
1. O jornal Valor, que depois passou a ser 100% das Organizações Globo, vê a economia brasileira em franca recuperação;
2. Todas as associações patronais, ou não, ligadas à imprensa, que não abriram a boca para se manifestar contra a censura e os ataques que hoje sofrem os blogs progressistas, suprimida sua liberdade de expressão digital;
3. João Dória Júnior, o Doriana, que se derrete ao primeiro calor e se entrega ao mais baixo e inculto corporativismo;
4. Ronaldo Caiado, colunista de agronegócios da Folha de São Paulo. Desde sua estreia, não escreveu um só artigo sobre o tema;
5. Sérgio D’Ávila, editor da Folha, que aproveita ter sido correspondente de guerra do jornal e genro do excepcional Hamilton Ribeiro, do Globo Rural, para não perceber o quanto o jornal desinforma a nação;
6. Luciano Huck, o boca-júnior no dizer malévolo do Pasquim sobre Flávio Cavalcanti, na época;
7. As grossíssimas pernas cruzadas e saias justas das apresentadoras da Globo News e seus equivalentes masculinos, cabelos alinhados, bigodes medievais e ternos saídos dos estoques remanescentes das Lojas Ducal;
8. Um japonesinho jovem, não sei o nome, muito feio. Pretende ser o sucessor de Jack Chan e comprovar a supremacia dos EUA;
9. Pastores religiosos, sem cabras e ovelhas, muito menos “pastando no meu jardim”, mas surrupiando dízimos de gente pobre;
10. Fernando Henrique Cardoso, que a tudo percebe, tudo entende, mas prefere rebolar em meneios de cintura, como sensacional cabrocha.
Descarados. Agora entendi. - (Fonte: aqui).
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Rui Daher, analista agronômico, observador da cena político-social e cronista, publica matérias na revista Carta Capital e no Jornal GGN.
Selecionamos dois interessantes comentários de leitores:
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Rui Daher, analista agronômico, observador da cena político-social e cronista, publica matérias na revista Carta Capital e no Jornal GGN.
Selecionamos dois interessantes comentários de leitores:
1) Amoraiza:
"Minha tia chegou de Feira de Santana falando um idioma desconhecido.
"Minha tia chegou de Feira de Santana falando um idioma desconhecido.
Dizia, do que pudemos entender, que viera de marinete e que a sacola que trazia chamava-se bocapio.
Ela não mandava recado, mandava bileites.
Quando brigava com a gente prometia sentar a peia. Se alguém a incomodava, no auge de seu furor chamava o inconveniente de descarado.
Assim, a palavra para nós, sobrinhos paulistanos, carregada que fosse de qualquer intenção ofensiva, não passava de curiosidade.
Descarado, rapariga, brega, baitola, toba, entre outras palavras que ela nos trouxe, soavam estrangeiras e pitorescas para os nossos ouvidos.
A menos que elejamos um palavrão de alcance nacional, chamar alguém de descarado será mais uma curiosidade linguística."
2) Boeotorum Brasiliensis:
"Rui, a idade, sob a desculpa da senilidade, nos permite a galhofa e muito mais. Envelhecer tem duas vantagens: a experiência, que nos dá as histórias para contar, e a liberdade de impor nosso humor-ácido (falar humor-negro é racismo) aos demais, obrigados a nos tolerar. Você está ficando bom nisso.
"Rui, a idade, sob a desculpa da senilidade, nos permite a galhofa e muito mais. Envelhecer tem duas vantagens: a experiência, que nos dá as histórias para contar, e a liberdade de impor nosso humor-ácido (falar humor-negro é racismo) aos demais, obrigados a nos tolerar. Você está ficando bom nisso.
À classificação de "descarados", aliás, perfeita ensinada pelo seu pai, soma-se a de "bonzinhos" ensinada pela minha mãe. Ela sempre me lembra: - Filho, cuidado com os bonzinhos.
Bonzinho é aquele certinho, sempre alardeando suas boas qualidades e sempre se usando como exemplo de conduta e como contraponto às atitudes erradas dos outros. Também, é aquele que se oferece para atos sem maiores consequências, como ajudar cego a atravessar a rua ou para assinar abaixo assinado contra a corrupção. Quando a coisa fica séria ou quando se espera uma atitude que envolva qualquer tipo de sacrifício, pessoal, profissional ou financeiro, esqueça dele. Além do mais é useiro e vezeiro de usar a pose e a reputação de bonzinho para puxar tapetes ou se aproveitar de situações que o beneficie. E, às vítimas, tomadas de surpresa, com cara de bobas, sobra a frase - Quem diria, tão bonzinho... Pior, quando contam o ocorrido, ouvem - Fulano fez isso? Não acredito, ele é bonzinho.
O que ele é mesmo, esse tipo de FDP, é DESCARADO.
Quanto ao rol apresentado, assino embaixo, mas acrescento mais um: Muniz Bandeira, por ser vivendièr, como uns e outros. [kkkkk]."
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O descarado, na verdade, é, antes de tudo, um cara de pau. E eles pululam mundo afora. As avaliações, claro, variam segundo as opiniões de cada um. Uma bolinha de papel na cabeça, por exemplo, pode ser encarada como um atentado contra um virtuoso ou resultar numa demonstração monumental de descaramento.
Faz uns bons anos que vimos divulgando neste blog nossa série "Certas Palavras", mas elas surgem sempre no contexto de desenhos, cartuns os mais diversos cujas legendas contenham a palavra 'foco'. Nada como como ver Rui Daher lançando a série numa crônica de primeira).
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