domingo, 22 de outubro de 2017

O LEGADO DE CARL SAGAN, O CRIADOR DE COSMOS

Ilustração: Pedro Piccinini.

Carl Sagan: Como o criador de Cosmos criou uma geração apaixonada por Ciência

Da Revista Galileu

Os domingos de 1982 estão guardados com carinho na memória da família Aleman: foram marcados por um discreto ritual que se repetiu por 13 semanas. O término do Fantástico denunciava o avançado da hora quando Isabel, seu irmão e seus pais se reuniam na sala de estar da casa em Embu das Artes, na Região Metropolitana de São Paulo, para ouvir a palavra de Carl Sagan.
Mesmo tarde, ninguém ia para a cama antes de as duas crianças terem esgotado o arsenal de perguntas existenciais que surgiam depois que o programa acabava. Por 60 minutos, assistiam atentamente àquele astrônomo esguio, de cabelos escuros e voz penetrante, traduzir com eloquência poética o encanto do cosmos.

A bordo da nave da imaginação, livre das amarras do espaço e do tempo, ele podia viajar para onde quisesse — como as pétalas do dente-de-leão que soprou no início do primeiro episódio da série. Essa nave era o veículo perfeito para transportar 400 milhões de seres humanos, de mais de 60 nações, em uma aventura cósmica. “A maneira como ele explicava nos fazia entender e ficar fascinados por tudo”, diz Isabel Aleman, que viu Cosmos pela primeira vez aos 6 anos.

Hoje, com quase 40, é pós-doutora em Astrofísica pelo iag-usp e estuda detalhes sobre como as moléculas se comportam no meio interestelar. Ela jamais se esqueceu da influência que aquelas noites exerceram sobre a escolha de sua carreira. “Registrei em minha tese de doutorado um agradecimento a Carl Sagan pelas minhas primeiras jornadas nas estrelas.”
Algo parecido aconteceu nos anos 1990 em Brasília com Victor de Souza Magalhães.

Enquanto explorava a biblioteca do avô, ficou intrigado com uma capa que tinha uma vela estampada em fundo preto e um título chamativo: O Mundo Assombrado pelos Demônios — A Ciência Vista como uma Vela no Escuro. Folheou e encontrou referências a alienígenas, fantasmas e dragões que germinaram no solo fértil que é a mente de alguém de 15 anos. “Foi uma surpresa total quando comecei a ler e vi que era uma quebra de todas as místicas que existem por trás.”

Ele tinha em mãos a última obra escrita por Sagan, que também é considerada uma das mais relevantes por disseminar de forma profunda e acessível a importância do método científico e do raciocínio lógico na busca pela verdade, que deve ser guiada pelo ceticismo crítico. E isso às vésperas da virada do milênio, quando a pseudociência e o misticismo cresciam em ritmo galopante. “Ao terminar o livro, me dei conta de que esse era o caminho a seguir”, afirma o hoje pesquisador do Instituto de Planetologia e Astrofísica de Grenoble, na França.

Aleman e Magalhães fazem parte de uma geração de cientistas para a qual a porta de entrada na ciência foi o trabalho de Sagan, cuja morte prematura, aos 62 anos, no solstício de inverno de 1996, completa duas décadas no dia 20 de dezembro. “Grande parte do seu legado foi apresentar a jovens a ideia da ciência como uma carreira”, diz à galileu a produtora Sasha Sagan, única mulher entre os cinco filhos que o astrônomo teve em três casamentos. “Mas ele apresentou a milhões mais a ideia da ciência como uma filosofia, uma visão de mundo.”

NA INFÂNCIA
Para entender as raízes do dom de Sagan tanto para explicar conceitos complexos a quem pouco entendia de ciência como também para compartilhar a reverência que sentia pela vida e pelo cosmos é preciso explorar certos traços de sua personalidade. “Ele era, em vários aspectos, comparável a um poeta, que usava os fatos concretos do mundo para transmitir as emoções mais profundas”, afirma William Poundstone, autor de Carl Sagan: A Life in the Cosmos (sem edição no Brasil). “A relação de Sagan com a astronomia era, de diversas maneiras, uma relação espiritual.”

O vínculo começou ainda na infância, nos anos 1930. Sagan cresceu devorando livros de ciência e ficção científica. Depois de adulto, costumava mencionar um episódio que o marcou profundamente — quando os pais o levaram à Feira Mundial de Nova York de 1939. Então com 5 anos, ele ficou maravilhado com os pavilhões futuristas. “Isso mostrou que havia um mundo para além da vizinhança de classe trabalhadora do Brooklyn. Várias mostras da feira tinham visões otimistas do futuro, inclusive sobre viagens espaciais”, diz Poundstone. “Ele reteve aquele otimismo e cresceu para desenvolver sondas.”

Entre as coisas que viu naquele dia, talvez a mais inspiradora tenha sido o enterro de uma cápsula do tempo. Foi a base para um dos seus projetos mais emblemáticos: o Disco Dourado, lançado em 1977 a bordo das duas sondas Voyager. Nada mais é do que uma cápsula do tempo gravada em um vinil de cobre banhado a ouro, que já deixou o Sistema Solar e vagará pelo próximo bilhão de anos. É como uma mensagem em uma garrafa para possíveis inteligências alienígenas. Sagan coordenou a equipe que selecionou 115 imagens e 90 minutos de música que melhor representariam nossa espécie, bem como saudações em 55 idiomas.

EM CASA
“Olá das crianças do planeta Terra”, diz a gravação em inglês, que ficou a cargo de Nick Sagan, filho de Carl. Na época, sua idade era quase a mesma que o pai tinha quando visitou a Feira Mundial. Hoje com 46 anos, o escritor de roteiros e livros de ficção científica se considera honrado por participar de um projeto único como aquele. “Essa pequena saudação vai continuar muito depois que eu me for.” É o que Nick, fruto do casamento de Sagan com a artista Linda Salzman, considera o melhor exemplo de sua “infância surreal”. Ver lançamentos de foguetes era banal como brincar no parquinho.

Foi durante a infância de Nick que Carl, então já bem estabelecido na academia como diretor do Laboratório de Estudos Planetários da Universidade Cornell, começou a adquirir o status de figura pública. O apelo popular do Disco Dourado e a credibilidade de ganhar um Pulitzer no mesmo ano chamaram a atenção da mídia. O foco na carreira, porém, desgastou o casamento com Salzman, que logo acabaria. No desenvolvimento do Disco Dourado, Sagan se apaixonou pela diretora criativa do projeto, sua terceira e última esposa, com quem permaneceu até o fim da vida: Ann Druyan. “Ele deu sorte com uma mulher que era capaz de aceitar que ele era esse incurável workaholic”, destaca o biógrafo William Poundstone. “Claro que ajudava o fato de que, àquela altura, ele podia arcar com pessoas para ajudar com as crianças e com a casa, então não era um fardo sobre Ann.”

Produtora e escritora, Druyan não só aceitava os trabalhos do marido como colaborava com eles. Foi coautora de Cosmos, lançada em 1980, primeiro ano do casamento. “Eles estavam profundamente apaixonados — e agora, como adulta, consigo enxergar que suas colaborações profissionais eram uma outra expressão da união deles”, reflete a filha Sasha em relato à revista nymag. Assim como o meio-irmão Nick, ela teve uma infância surreal: a casa em que cresceu em Ithaca, cidade no estado de Nova York onde fica Cornell, era chamada de Tumba da Cabeça da Esfinge. O lugar parecia um templo egípcio e havia sido a sede de uma sociedade secreta da universidade no final do século 19.

NA UNIVERSIDADE
Sagan percebeu desde cedo que não era capaz de limitar seus interesses a rótulos da academia. Desde criança, fomentava também fascínio pela origem da vida, o que o fez se aproximar da biologia. Foi neste contexto que conheceu a primeira esposa, a bióloga Lynn Margulis, com quem teve dois filhos. Ao longo da carreira, publicou artigos científicos detalhando modelos de como poderia ser a vida em outros mundos e, com esses estudos, ajudou a fundar o campo multidisciplinar da astrobiologia.

Outra grande contribuição foi na área da ciência planetária: doutorou-se com uma tese sobre o funcionamento da atmosfera de Vênus. “Ele ensinou a seus alunos que planetas são lugares, verdadeiramente outros mundos”, diz o astrofísico David Morrison, que esteve entre esses estudantes. “Nos encorajava a pensar como seria a sensação de estar nesses outros mundos.” Cientista sênior da Nasa, Morrison foi orientado por Sagan no doutorado. “Mesmo que ele não desse a orientação técnica e detalhada que muitos orientadores dão, isso era compensado por sua amplitude de visão e por seus muitos contatos na ciência planetária.”

Os interesses peculiares e à frente de seu tempo, unidos à adulação do público e da imprensa, causavam estranhamento e até inveja em certos círculos universitários. O linguista Carlos Vogt, coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (LabJor), referência em divulgação científica no Brasil, atribui esse desconforto ao conservadorismo do meio. “Cada vez que, no mundo acadêmico, acontece essa força luminosa de um autor que é capaz de conversar com a academia e com o mundo não acadêmico e ainda viver de modo intenso, sempre há tensão”, diz o ex-reitor da Unicamp.

PARA AS MASSAS
Na Nasa, Sagan se envolveu em uma polêmica que diz muito sobre como via a democratização da ciência. Quase nenhum cientista da agência acreditava que as sondas deveriam ter câmeras fotográficas. “Sagan insistiu que o público estava pagando pelas missões, e que ele se relacionaria com as fotos, não com palavras ou números”, diz William Poundstone. “Ele finalmente convenceu os que duvidavam. Então, toda vez que você olhar para uma imagem dos planetas em alta resolução, isso é um legado de Sagan.”

Mas há sobretudo duas pessoas que são herdeiras diretas desse legado, ambas responsáveis pela continuação atualizada de Cosmos, que foi ao ar em 2014: a própria Ann Druyan, hoje presidente da Fundação Carl Sagan e produtora executiva da nova série, e o astrofísico carismático Neil deGrasse Tyson, a quem coube a apresentação da nova versão. Tyson sempre conta que em 20 de dezembro de 1975, exatos 21 anos antes da morte de Sagan, quando era só mais um negro de 17 anos do Bronx tentando escolher onde estudar, foi recebido pelo próprio Sagan em Cornell. O astrônomo lhe mostrou a universidade e o levou à estação de ônibus. Como nevava muito, Sagan lhe deu o número de telefone da própria casa. Pediu que ligasse em caso de imprevisto para passar a noite com sua família. “Tenho o dever de responder a estudantes que estão fazendo perguntas sobre o universo como um plano de carreira da forma como Carl Sagan me respondeu”, disse no talk show Horizon.

Os canais Nat Geo e Fox divulgaram que 130 milhões de pessoas em 125 países assistiram a Tyson pegar o bastão da mão de Sagan e levá-lo adiante. Entre os novos fãs está a estudante de administração Mileni Nogueira, 21, que gostou tanto da série que foi beber na fonte da original. O encanto pela retórica de Sagan foi ainda mais profundo. “A paixão que ele me passou foi tão indescritível que me inspirou a escrever um romance envolvendo viagens no tempo”, diz ela, que pretende trocar de curso para estudar física e se especializar em cosmologia. Mais um sinal de que Sagan continuará destrancando as portas da ciência aos seres humanos de todo o planeta. “Ele balançou meu mundo, tudo o que eu conhecia.”

LINHA DO TEMPO
Carl Sagan casou-se três vezes e teve cinco filhos. Em sua carreira luminosa, criou áreas de estudo, foi influente na Nasa e inspirou milhões. Veja momentos marcantes da vida do astrônomo.

1934 - Sagan nasce no Brooklyn, em Nova York. Estuda em escolas públicas e desde cedo ama livros de ciência. Aos 5 anos, visita a Feira Mundial de Nova York, evento futurista que o impressiona muito.
1951 - Ganha bolsa integral para estudar física na Universidade de Chicago. Lá conhece a bióloga Lynn Margulis, com quem tem dois filhos: o escritor Dorion Sagan e o programador Jeremy Sagan.
1960 - Obtém o doutorado em astronomia com tese sobre a atmosfera de Vênus. Nos anos seguintes, firma-se como consultor e conselheiro da Nasa, influenciando diretamente no programa espacial.
1963 - Separa-se de Margulis e passa a dar aulas de astronomia em Harvard. Logo se torna figura popular entre os alunos, mas os interesses por questões exóticas despertam desconfiança dos colegas.
1968 - Muda-se para a Universidade Cornell, onde ficaria até o fim da vida. Lá desenvolve novas disciplinas: ciência planetária e astrobiologia. Casa-se com Linda Salzman e, dois anos depois, nasce Nick.
1977 - São lançadas as sondas Voyager. Sagan lidera a equipe do Golden Record, cápsula do tempo com registros da espécie humana, e conhece Ann Druyan, diretora criativa do projeto e sua futura esposa.
1977 - O livro Os Dragões do Éden, onde discorre sobre a evolução da inteligência humana, ganha o Pulitzer de não ficção. Começam as aparições recorrentes em programas de TV e capas de revistas.
1980 - Cosmos vai ao ar pela PBS, aclamada por público e crítica. No ano seguinte, ele se divorcia de Linda Salzman. Casa-se com Ann Druyan, escritora e produtora da série, com quem tem Sasha e Samuel.
1985 - É publicado Contato, seu único romance, sobre uma mensagem de rádio recebida pela humanidade de uma civilização alienígena. Sagan também se dedica à luta contra o uso de armas nucleares.
1996 - Morre em 20 de dezembro, aos 62, em Seattle, com complicações derivadas de pneumonia. Dois anos antes, fora diagnosticado com mielodisplasia, doença que impede o desenvolvimento das células da medula óssea.  -  (AQUI).

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