segunda-feira, 9 de outubro de 2017

A CONFRARIA DOS CIENTISTAS DO MUNDO (E A TENTATIVA BRASILEIRA)


Dicionários biográficos

Por Felipe A. P. L. Costa

O American Council of Learned Societies (ACLS) é uma associação estadunidense fundada em 1919, reunindo dezenas de organizações acadêmicas. Entre as obras que já publicou consta a American national biography (1999), coleção em 24 volumes com informações a respeito da vida e obra de aproximadamente 17 mil personagens que marcaram a história dos Estados Unidos. É uma obra e tanto.

Todavia, no contexto deste artigo, caberia antes citar o Dictionary of scientific biography (DSB), coleção em 16 volumes (o v. 15 é o Supplement I e o v. 16, o índice), publicada entre 1970 e 1980. A obra traz informações sobre a vida e obra de cientistas do mundo inteiro, desde a Antiguidade até meados do século 20.

O editor geral do DSB foi Charles C. [Coulston] Gillispie (1918-2015), então professor de história da ciência na Universidade de Princeton. Centenas de colaboradores de vários países participaram do projeto, escrevendo notas biográficas e fazendo um balanço crítico das contribuições de cada biografado. As entradas – muitas das quais ilustradas – vêm acompanhadas de uma pequena bibliografia. O critério inicial era incluir apenas e tão somente cientistas falecidos que tivessem contribuído de modo significativo para o desenvolvimento das ciências naturais ou da matemática. A publicação foi um sucesso.
Em 1981, apareceu uma versão condensada do DSB em um único volume. Em 1990, foi publicado o Supplement II, em dois volumes (v. 17 e 18), com biografias adicionais. Nesses dois volumes, cujo editor geral foi Frederic L. [Lawrence] Holmes (1932-2003), então professor de história da medicina na Universidade Yale, foram incluídos, além de personagens com o perfil descrito acima, alguns nomes oriundos das ciências sociais e humanas – notadamente antropologia, economia, psicologia e sociologia. Em 2001, apareceu uma 2ª edição da versão em volume único de 1981, abrangendo o material suplementar publicado em 1990.
O DSB era então uma coleção em 18 volumes, contendo notas biográficas e comentários sobre o trabalho de mais de cinco mil cientistas (especialmente cientistas naturais) e matemáticos.
O novo DSB
Em dezembro de 2007, após um anúncio prévio divulgado com meses de antecedência, apareceu o New dictionary of scientific biography (NDSB), obra igualmente organizada pelo ACLS.
O NDSB é uma coleção em 8 volumes (v. 8 é o índice), contendo cerca de 800 entradas (Nota deste blog: neste artigo, onde se lê "entradas", leia-se "verbetes") adicionais em relação aos 18 volumes do DSB. Desse total, umas 500 entradas tratam de cientistas que faleceram nas últimas décadas. Alguns apenas alguns meses antes de a obra ser publicada, como foi o caso de Charles Keeling e Stanley L. Miller. Outras 75 entradas tratam de cientistas que faleceram há mais tempo, mas que haviam sido ‘esquecidos’, ficando de fora do DSB. Esse foi o caso, por exemplo, do botânico russo Wladimir [Peter] Köppen (1846-1940), fundador da moderna climatologia; do biólogo estadunidense Alfred [Charles] Kinsey (1894-1956), pioneiro na investigação da sexualidade humana; e do biólogo e psicólogo suíço Jean [William Fritz] Piaget (1896-1980), criador da chamada epistemologia genética. As duzentas e tantas entradas restantes são acréscimos, correções ou variações a respeito de cientistas que já haviam sido tratados no DSB. Juntas, as duas coleções (DSB e NDSB) somam agora quase seis mil biografados.
A editora geral do NDSB foi Noretta Koertge (nascida em 1935), professora de filosofia da ciência na Universidade de Indiana. Mais uma vez, dezenas de colaboradores participaram do empreendimento, incluindo a historiadora brasileira Christina Helena da Motta Barboza, do Museu de Astronomia e Ciências Afins (RJ). Barboza é autora do verbete sobre o naturalista e astrônomo francês Emmanuel-Bernardin Liais (1826-1900), que morou e trabalhou no Brasil entre 1858 e 1881.
Como obras de referências, o DSB e o NDSB podem ser muito úteis ao leitor interessado em conhecer o trabalho de um amplo e variado leque de cientistas. Todavia, como ocorre com toda e qualquer enciclopédia, ambas se veem diante de um sério dilema: achar um meio-termo entre o número de biografados e a profundidade com que se pode tratar da vida e obra de cada um deles. Não é difícil perceber, por exemplo, que nomes importantes permaneceram ‘esquecidos’ – como foi o caso do biólogo russo George [Frantsevich] Gause (1910-1986), um pioneiro da ecologia experimental cujo trabalho resultou na elaboração do princípio da exclusão competitiva; de John Maynard Smith; do químico estadunidense Clair Cameron Patterson (1922-1995), proponente da estimativa atual para a idade da Terra e pioneiro na luta em favor de uma gasolina livre de chumbo; e do físico brasileiro César [Cesare Mansueto Giulio] Lattes (1924-2005), codescobridor do méson pi, partícula subatômica cujo comportamento mantém coesos os núcleos atômicos. Em todo caso, assim como o NDSB veio complementar o DSB, é possível que apareçam volumes complementares no futuro.
A edição brasileira
Mais ou menos na mesma época em que o NDSB foi lançado nos Estados Unidos, a editora brasileira Contraponto lançava por aqui o Dicionário de biografias científicas (DBC), versão do DSB condensada em três volumes. Houve algum barulho na imprensa, embora o teor geral das matérias e comentários tenha sido o enaltecer ingenuamente, sem ponderar criticamente a respeito da obra. Por exemplo, ninguém observou que o DBC é uma versão desatualizadaparcial e tendenciosa da obra original.
Sim, desatualizada. Há um lapso considerável entre o material de onde foram retiradas as entradas para a versão em português e o material já então disponível. Na edição brasileira, a entrada mais recente diz respeito a um cientista que faleceu em 1984. (O editor erra ao afirmar [Apresentação, p. 31] que o biografado mais recente faleceu em 1981.) Além disso, curiosamente, quando um mesmo cientista consta tanto do DSB como do NDSB, o DBC optou tão somente pela versão do primeiro.
Sim, parcial. Os 329 nomes escolhidos para a edição brasileira equivalem a uma amostra diminuta do original – algo entre 5 e 7%, dependendo de a comparação envolver 26 (DSB + NDSB) ou 18 volumes (DSB). Em todo caso, um percentual bem inferior ao que o leitor é levado a pensar ao ler na Apresentação (p. 31; grafia original):
“Para oferecer o Dicionário ao leitor brasileiro, a Contraponto teve que realizar uma adaptação: selecionamos os 329 ensaios que consideramos mais importantes e os apresentamos na íntegra. Nossa edição, com aproximadamente 8.250 laudas de texto, corresponde a cerca de 25% da edição original, em tamanho, mas nenhum ensaio sofreu mutilação.”
O editor está falando em percentual de laudas, uma informação algo descabida para o leitor comum. Falar em termos de percentual de entradas, por exemplo, faria muito mais sentido.
Trata-se enfim de uma amostra tendenciosa. Basta ver que quase a metade dos 329 ensaios – tidos como os ‘mais importantes’ – aborda a vida e obra de matemáticos (101 ensaios) ou filósofos (52). Distorção semelhante ocorre nas ciências naturais: 56 ensaios tratam de físicos e outros 21, de astrônomos; em comparação, são apenas 17 químicos, sete geocientistas e 34 biólogos. Estranhamente, entre os nomes que ficaram de fora, encontramos cientistas que trabalharam ou viveram no país, como foi o caso de Fritz Müller e Eugen Warming (1841-1924). Quer dizer, embora Müller e Warming tenham sido incluídos no DSB, os editores do DBC acharam melhor deixá-los de fora...
Apesar de graves e grosseiros, nenhum desses problemas é insuperável. Espero, portanto, que os editores do DBC continuem trabalhando duro e assim, quem sabe, em futuro próximo, possam oferecer ao leitor brasileiro algum material suplementar que venha remediar as distorções presentes nesses três primeiros volumes.  
[Nota: o artigo acima, originalmente publicado na revista Cadernos de Saúde Pública (2009), integra o livro mais recente do autor, O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017) – ver aqui ou aqui.]
- Fonte: Jornal GGN - AQUI.

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