"Atravessei uma ponte para o futuro e desembarquei em 1532 na tribo Guaianás. No centro da tribo estava um homem barbudo e esguio, usando chapéu engraçado, sem camisa e com um chicote na mão, bradava o tempo inteiro contra os índios. De gestos bruscos e palavras ríspidas, o homem, conhecido por João Ramalho, entregou todos os guaianás para Martim Afonso, que prometeu trocá-los por ouro e especiarias.
Corri, novamente, para a ponte e atravessei-a sem olhar para trás; desembarquei em 1698 em Minas Gerais. Lá encontrei Borba Gato, próximo ao Rio das Velhas, afogando dois escravos, aos quais chamava de “negros funestos da terra”, e determinando que os demais não parassem de trabalhar em hipótese alguma. Tentei tirar uma foto com meu celular para denunciar os abusos, assim que voltasse ao futuro, mas antes que apanhasse o aparelho que estava no bolso de minha calça jeans, dois jagunços de Borba Gato correram em minha direção; apavorado voltei para a ponte e atravessei-a de novo.
Um tanto ofegante desembarquei de olhos fechados, em 1967, no centro de São Paulo, mais especificamente, entre as avenidas Ipiranga e São João, e só tive tempo de correr para não ser atropelado por um Fusca, tremendão azul, que era conduzido por Aloysio Nunes e tinha Carlos Marighella no banco traseiro. Logo atrás, e também em alta velocidade, estava em um Ford Thunderbird, 1961 verde, o delegado Sérgio Fleury, que atirava sem parar... Corri o máximo que pude, atravessei a ponte, e desembarquei em 2015, em meio a uma manifestação na Avenida Paulista. Vi pessoas pedindo o fim da corrupção, a intervenção militar e o impeachment já, tudo em uma mesma faixa. Tentei conversar com alguns grupos a respeito da intervenção militar e fui alvejado com um golpe certeiro de uma panela Tramontina de alumínio, que me fez cambalear e cair próximo da ponte. Arrastei-me até o fim da ponte para o futuro (que a esta altura mais parecia uma pinguela) e, ainda atordoado por conta do golpe, desembarquei em 2018 no meio de uma fábrica. Perguntei o que estava acontecendo e um senhor de cabelos grisalhos, magro, quase esquelético, disse que eu deveria calar a minha boca e agradecer pelo emprego.
— Qual emprego?, argumentei.
— O negócio é o seguinte: eu não vou tolerar reclamações aqui, afinal muitas gente gostaria de estar em seu lugar.
— Como? Tentei argumentar novamente.
— Não se faça de burro: quem não quer ter um emprego com 80 horas semanais? Que lhe dá possibilidade de produzir para o país; sem essas bobagens de registro em carteira, que oneram os cofres das indústrias e que é, na verdade, um entrave para a economia interna. Temos quinze minutos de almoço (que é suficiente!), não precisamos de aposentadoria, pois trabalhamos! Aposentadoria é coisa de vagabundo e o verdadeiro homem foi feito para o trabalho e não para a vagabundagem!
Busquei desesperadamente a ponte para atravessá-la novamente, mas não a encontrei. As únicas coisas que vi foram diversos cartazes que repetiam os dizeres: não fale em crise, trabalhe!"
(De Janderson Lacerda, crônica intitulada "Uma ponte para o futuro", publicada no Jornal GGN - AQUI).
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