Liberdade para quem, cara-pálida?
Por Fernando Horta
Uma das mais bem documentadas (e romanceadas) histórias de choques culturais é a ocorrida nos EUA, entre os homens brancos ocidentais e os nativos indígenas. Desde Dee Brown e seu famoso “Enterre meu coração na ‘Wounded Knee’”, até as obras recentes de Roxanne Dunbar-Ortiz muito já se agregou à discussão sobre a história indígena dos EUA. O termo “paleface” (cara pálida para nós), entretanto, continua simbólico do choque entre duas culturas que não compartilhavam sequer dos conceitos mais básicos. Sempre que se usa “cara pálida” numa conversa está se reportando ao que a Antropologia chama de “estranhamento”. No momento em que duas pessoas travam contato e seus padrões culturais e linguísticos não conseguem achar ponto de convergência tem-se o “estranhamento”.
Longe dos séculos XVI, XVII e XVIII, em que este estranhamento está retratado em toda a América por conta das Grandes Navegações, vivemos hoje, no mundo todo, um “estranhamento”. Homens e mulheres ocidentais, falantes das mesmas línguas, comendo as mesmas comidas, educados em modelos escolares semelhantes e vivendo sob rigorosamente a mesma forma de organização sócio-política (o Estado Nacional Moderno), experimentamos um momento de dissonância impressionante. Poderia passar algumas páginas de texto comentando a diferença de sentido entre termos iguais, que batem em nossos ouvidos todos os dias: democracia, justiça, sucesso, respeito, direito, nação, criança, bandido e por aí vai.
Não falo apenas em diferenças conceituais que – normalmente – remetem a divergências tópicas entre as “coisas nomeadas” e seus nomes. Quando eu falo em “carro”, por exemplo, vão surgir inúmeras imagens em nossa cabeça, mas tenho quase certeza que vamos chegar a uma grande convergência de sentido. Se nos mostrarem, a mim e a você, centenas de figuras e nos perguntarem o que é “carro”, vamos concordar possivelmente em 99% delas. Outras palavras como cachorro, casa, garfo, morte e etc. também terão resultado semelhante.
A dificuldade surge nos termos em que há uma disputa de sentido. Sempre política. Disputa que está sendo travada de forma mais acelerada do que aquela feita pela sucessão das gerações. Se perguntarmos para nossos avós o que é um vestido curto, certamente ele será muito mais longo do que se perguntado para as gerações atuais. Esta disputa de sentidos entre gerações é normal, e as sociedades adaptam-se a ela através da regra da finitude. Os mais velhos, portadores dos antigos sentidos simplesmente deixam de existir. Os novos sentidos se tornam majoritários através dos mais jovens que, em seguida, vão envelhecendo. O ciclo continua.
O que ocorre hoje, entretanto, é uma ação política deliberada. Instrumentalizada através dos meios de comunicação, ações de marketing, mercado editorial, controle da educação e toda uma sorte de mecanismos de luta social pelos sentidos do mundo que, contudo, são invisíveis para a imensa maioria das pessoas. Marx chamou isto de “dominação ideológica” e conclamou aos trabalhadores a fazerem também esta luta. A luta ideológica é, portanto, uma forma de disputa política e não há ninguém que esteja fora dela.
Ocorre que para uma parte não iluminada das nossas populações, esta luta se dá apenas “por causa da esquerda”. Como se os sentidos das palavras, das coisas e dos sentimentos fossem algo dado no mundo, bastando querer conhece-los e eles se revelariam em sua mais precisa conceituação. Ora, quando eu digo que “justiça” é seguir a “lei” e outro diz que “justiça” precisa ter sentido próximo de “equidade”, “equidistância”, “transparência”, “participação”, “oportunidade” e etc. estamos falando de dois entendimentos completamente diferentes. Um chegando a negar o uso do termo ao sentido adversário. Uma lei pode ser totalmente injusta, ainda que lei.
Tais disputas de sentido chegaram ao Brasil em forma muito semelhante ao que ocorre em todo o mundo. Desde 2013, assolam a nossa sociedade impondo a destruições dos consensos mínimos que nos levam a poder dialogar. A senha primária desta luta, o termo original de disputa, parece ter sido a palavra “liberdade”. Cecília Meirelles disse que “Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”, numa frase de rara beleza, mas tremendamente confusa. Se liberdade é “sonho humano” então é algo atinente ao sujeito. Aquele que sente pode sentir-se livre, ainda que constrito em uma cela. Da mesma forma, se depende do sentir subjetivo, então aquele que, mesmo fisicamente livre, se sente preso fará constar que não goza de liberdade. Daí que os sentidos de liberdade se encontram, segundo Cecília Meirelles, no campo imagético essencialmente.
Paulo Freire preferia ao uso do substantivo “liberdade” o adjetivo “libertador” ou “libertadora”. Fazia constar Freire, que o sentido desta liberdade não é algo definível por si mesmo, mas a ação de libertar-se seria o verdadeiro sentido da humanidade. Ao trazer do substantivo (liberdade) para o adjetivo (libertadora) e, finalmente, ao verbo (libertar), Paulo Freire mostrava que a ação carrega em si um sentido mais preciso do que o substantivo. Além disto, a ação respeita os limites e condicionantes do agente. Não interessa o que você entenda por prisão ou constrição, a ação de libertar-se respeita o teu entendimento prévio e, portanto, é muito mais inclusiva de que o substantivo liberdade.
Apesar das tortas leituras atuais, toda a obra de Marx é a obra em homenagem à liberdade. Marx reconhece, num primeiro momento, que o homem não é livre nem materialmente nem historicamente. E para fazer isto ele precisou refletir sobre os espaços de ação dos sujeitos dentro da sociedade capitalista. A partir daí, Marx percebe (com importantes aportes de Engels) que a História da humanidade era uma história de adaptação aos níveis de liberdades materiais e históricos impostos ou pré-existentes. O conceito de “modo de produção” mede matematicamente um quantum abstrato de liberdade que os homens tinham, em comparação com os mesmos homens de outros tempos.
Assim, a escravidão, a servidão e todas as formas de opressão do homem pelo homem podem ser colocadas numa escala de maior ou menor liberdade que Marx brilhantemente demonstra através da avaliação do trabalho humano. Qual o fruto do trabalho do homem? Ele é livre para exercer este trabalho? Ele é livre para desfrutar do seu trabalho? Toda a crítica marxista tem como sentido mudo a ideia material de liberdade. As constantes imagens de “quebrar correntes”, “romper com as amarras” ajudam a compor o sentido de “revolução” que Marx desenha em suas obras. A liberdade em Marx é, portanto, a pedra de toque de seus textos, terminando em uma sociedade – chamada por ele de Comunista – em que o nível de produção seria tão alto (e, portanto, o homem estaria liberto de suas necessidades materiais) que o próprio Estado deixaria de ser necessário.
De forma muito reducionista, as lutas ideológicas do século XX e XXI transformaram o termo “liberdade” em “liberdade econômica”. Nem mesmo a liberdade política existiria, segundo os teóricos “libertários” atuais, sem a liberdade econômica. O mercado precisa ser livre, e assim sendo ele libertará o indivíduo. Milton Friedman afirmou que “quem coloca igualdade à frente de liberdade, ficará sem as duas”. O sentido de liberdade política, urdido nas discussões dos séculos XVIII e XIX, se vê constrangedoramente reduzido ao econômico e, frequentemente, ao comercial. O dinheiro não pode ter fronteiras, precisa ser livre para entrar e sair em mercados e países. As pessoas precisam de um sem número de documentos, frequentemente taxadas de “refugiados” a receberem um tratamento semelhante aos leprosos dos tempos medievais e antigos. A propriedade, por sua vez, precisa ser divinamente respeitada e protegida; a vida pode ser tratada de forma numérica, em índices de vida e morte, desnutrição, educação, inflação e etc.
Usamos o mesmo termo, que deu tanta força aos homens dos séculos XVIII e XIX nas lutas contra os regimes políticos de seus tempos, mas com sentido totalmente invertido. Hoje, liberdade é a senha para a manutenção das desigualdades do mundo. Invoca-se um sentido reducionista e torpe para agredir e criminalizar quem – de fato – tenta libertar-se. As inversões ficam claras quando fazemos o caminho de Freire. Hoje, quem defende o substantivo “liberdade” não defende uma posição “libertadora” e, tampouco, o ato de “libertar-se”. Muito pelo contrário, quem usa o termo “liberdade” o encaixota colado em “econômica” que, no fundo, controla e mantém travadas as estruturas da sociedade e o verbo correlato que surge é “submeter-se”, “aceitar”.
Como num macabro espelho, em que as posições são invertidas, a Liberdade do século XXI não liberta nem revoluciona. Constrange, oprime, explora, empobrece, aliena e cala.
Eu, um estranho a este mundo novo, sempre pergunto: “Liberdade para quem, cara pálida?” - (Fonte: aqui).
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