"Não foi como ele desejaria, mas aconteceu. Sete meses depois de instalar na Casa Branca uma presidência disfuncional, errática, tão combativa quanto combatida, Donald Trump conseguiu, pela primeira vez, que partidários e adversários chegassem a um consenso nacional: esta última semana pode ser considerada a pior e mais neurastênica desde a sua instalação na Casa Branca.
David Gergen, o comedido conselheiro político considerado insubstituível pelos quatro presidentes a que serviu, deu um veredito severo: a instabilidade emocional de Trump precisa começar a ser questionada, inclusive por profissionais, pois arrisca minar os fundamentos da sociedade americana.
O ex-vice-presidente democrata Al Gore, derrotado por George Bush na contestada eleição de 2000, foi mais direto. Perguntado sobre qual conselho daria a Trump diante das erupções da semana, respondeu com uma só palavra: “Demissionar”. Há quem prefira aguardar o resultado do cipoal de investigações em curso no Congresso e no FBI para saber se abrem caminho a um eventual processo de impeachment. Outra, ainda, é a previsão de Tony Schwartz, o ghostwriter que conviveu 18 meses com o personagem enquanto escrevia “A arte da negociação”, assinado por Trump. Ele está convencido de que o presidente encontrará uma forma de renunciar num período próximo: “Se ele se submeter a um eventual processo de impeachment ou continuar a ser humilhado na Casa Branca”, garante Schwartz, “encontrará uma maneira de fazer o que fez a vida toda: revestir de ganho uma perda. Ao renunciar, ele vai declarar vitória”. (No caso, vitória contra o establishment de Washington que vilipendiara ao longo da campanha eleitoral).
Como amplamente noticiado, a origem de tudo foi a falência múltipla do presidente diante da ação de supremacistas brancos que provocaram um espetáculo de terror nazista, antissemita e racista em Charlottesville, Virgínia, no sábado anterior. Ao não denunciar de imediato a Ku Klux Klan, os neonazistas e outros grupos de ideologia racista que desfilaram armados cuspindo ódio e preconceito, Trump vacilou. Não percebeu ser aquele um dos momentos em que o país inteiro aguarda a palavra do presidente, quando valores nacionais estão em jogo, e palavras contam.
Nenhuma tentativa posterior de consertar o vazio inicial teve efeito. A sensação de que os Estados Unidos estavam órfãos de um chefe da nação em sintonia com a história e o país que governa ficou escancarada.
Pela primeira vez, as mais altas patentes militares do país acharam necessário posicionar-se de forma contundente e pública contra o racismo. Um a um, os chefes do Estado-Maior do Exército, da Marinha, dos Fuzileiros Navais, da Guarda Nacional e da Força Aérea deixaram claro que as manifestações de ódio ocorridas não podiam ser igualmente distribuídas entre nacionalistas brancos e opositores antifascistas, como pretendeu o comandante em chefe.
Costuma-se dizer que a Presidência da maior potência mundial acaba amadurecendo o seu ocupante devido ao peso histórico e à responsabilidade do cargo. Só que o atual ocupante do cargo parece estar invertendo a equação: a Presidência sumiu. Só tem Donald Trump, que ocupa assento na Casa Branca e basta a si mesmo. Nem a demissão de Steve Bannon, seu temido e detestado conselheiro estratégico ligado à extrema-direita nacionalista, pode aliviar as tensões mais cruas. Mas não resolverá a equação Trump.
Para ontem, em Boston, estava prevista nova marcha de supremacistas brancos “em defesa da liberdade de expressão”. Ao contrário de Charlottesville, com proibição expressa de levarem mochilas, bastões e armas de fogo. E sem homenagens a algum herói confederado (leia-se, a favor da escravidão) da Guerra Civil ocorrida três séculos atrás, mas que até hoje dilacera a nação.
Desde os confrontos do fim de semana anterior centrados no destino a ser dado a uma estátua do general confederado Robert E. Lee, autoridades e ativistas trataram de se livrar de marcos semelhantes em outras cidades e estados — seja cobrindo monumentos com plástico, seja derrubando-os a marteladas e cordas como se fossem a estátua de Saddam Hussein, seja removendo os símbolos do passado escravagista para algum museu ou localidade não declarada.
Um interessante artigo de Paul M.M. Cooper, estudioso de ruínas históricas e memória publicado na revista “Foreign Policy” aborda este dilema. Como nações de passado violento equilibram a pressão pela remoção de monumentos que honram o repreensível, e a sua preservação como pontos de memória?
Cada caso tem raízes e soluções diferentes, claro, mas o autor cita, entre outros, a solução encontrada pela Hungria, que se viu às voltas com centenas de pantagruélicos monumentos à glória comunista após a derrocada do bloco soviético em 1989/90. Ao invés de atenderem à pressão popular para que as odiadas marcas em pedra e bronze de 40 anos de opressão virassem pó, os líderes do novo regime democrático decidiram transferir para um mesmo local toda a pesada tralha espalhada pela cidade — estátuas de Stalin, Lênin, Marx, líderes comunistas húngaros, soldados em poses heroicas, monumentos ao trabalhador bolchevique.
Assim nasceu o Memento Park de Budapeste, visitado por milhares de turistas estrangeiros e nacionais, que se divertem comprando suvenires comunistas da lojinha Bandeira Vermelha, mas também aprendem a história por trás daquelas estátuas através de brochuras, vídeos, exposições e eventos culturais. Nada ali é glorificado.
A Alemanha deu uma contextualização semelhante a seu passado, ainda mais complexa e elaborada, mas, como aponta o autor, isso só é factível quando a comunidade concorda com a nova leitura a ser dada à História, por exigir uma compreensão democrática da memória.
Difícil prever se isso é possível no contexto atual de extrema polarização da vida americana."
(Da jornalista Dorrit Harazim, post intitulado "Estátuas vivas e mortas", publicado no jornal O Globo, edição de ontem, 20 - aqui.
Enquanto isso, cartunistas de todo o mundo se mantêm implacáveis no combate ao racismo. A ironia acima, de autoria de Ed Wexler, fala tão incisivamente quanto um editorial).
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