quinta-feira, 17 de agosto de 2017

A ANATOMIA DA GNOSE


Como escapar da Matrix: 10 definições de "gnose" através do cinema

Por Wilson Ferreira

Desde os clássicos filmes gnósticos “Show de Truman” e “Matrix” a espécie humana é representada como prisioneira em uma gigantesca ilusão cósmica – tecnológica, psíquica ou midiática. Como escapar dela? Para o Gnosticismo, através da “gnosis” (“conhecimento”). Mas que tipo de conhecimento é esse? Uma epifania místico-religiosa? Algum tipo de comunhão secreta com o Divino? Iluminação espiritual? O Cinegnose reuniu dez definições de estudiosos sobre o conceito de “gnose” e como os filmes gnósticos figuram essa espécie de rota espiritual de fuga: quem éramos, o que nos tornamos, onde estávamos, para onde fomos lançados, para onde estamos indo, do que estamos libertos, o que é o nascimento e o que é renascimento.
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Após sete anos de atividades, esse humilde blogueiro percebeu uma séria lacuna no trabalho do Cinegnose em mapear os filmes gnósticos na atual produção cinematográfica.

Encontramos nos filmes a articulação dos diversos temas gnósticos como o Mito de Sophia, o Mal, a Queda, estados alterados de consciência (paranoia, suspensão e melancolia), o homem prisioneiro numa ilusão, o Demiurgo, o sono, Esquecimento, a memória, Alquimia entre outros.

Porém, um tema foi, por assim dizer, esquecido ou colocado entre parêntesis: a gnosis. Claro que nas análises sobre os filmes gnósticos (clique aqui para ver a nossa lista), o tema foi abordado de forma sub reptícia – o mal estar, estranhamento e alienação do protagonista diante da inautenticidade (a ilusão) do mundo, os estados alterados de consciência (que dão os três protagonistas-chave: o Viajante, o Detetive e o Estrangeiro) e finalmente a quebra da ilusão que mantinha o personagem no sono do esquecimento e prisioneiro.

Mas ainda assim, essas são apenas as condições que propiciam a gnosis. Mas o que é a gnose? Algum conhecimento arcano secreto? Uma epifania místico-religiosa? Algum tipo de comunhão secreta com o Divino? Iluminação espiritual?

Tomada literalmente, quer dizer “conhecimento”. Como veremos, há várias definições proferidas por diversos pesquisadores e adeptos do Gnosticismo. Apesar das diferenças, há um ponto comum: gnose não se confunde com o simples conhecimento acadêmico, erudição ou cultura intelectual – “conhecimento revelado” ou “conhecimento divino”.


Grosso modo, no Gnosticismo há três abordagens sobre a gnosis: (a) para os gnósticos antigos, a gnose não era apenas a iluminação, mas existia no âmbito da Cosmologia, do mito e da antropologia – viria acompanhada de uma compreensão expressa nos Resumos de Teódoto de Bizâncio: "quem éramos, o que nos tornamos, onde estávamos, para onde fomos lançados, para onde estamos indo, do que estamos libertos, o que é o nascimento e o que é renascimento".

(b) Para o gnosticismo setiano (anterior ao cristianismo) a mente de Deus teria sofrido um colapso e perdido a sabedoria (também conhecida como “Aeon Sophia”). Devido a essa crise, Sophia decaiu no vazio caótico, nas emoções especulativas e eventualmente no mundo material, dando à luz o “Demiurgo” (Yaldabaoth) que se livra de Sophia e cria um cosmos imperfeito, imitação do Divino. E cria o homem, prisioneiro na sua criação.

Por isso o homem seria “um deus em ruínas”. Para os setianos, o aperfeiçoamento das próprias mentes (a gnosis) restauraria a solidez da própria mente de Deus – Deus precisaria de nós tanto quanto precisamos dele para curar um cosmos fraturado.

(c) Gnose como “autoconhecimento”. Mas um autoconhecimento que não se confunde com o ideário atual da “autoajuda” – enquanto esta reforça o ego para o sucesso, na gnose é revelado ao homem um caminho interior que não pode ser compreendido e nem seguido pelos poderes do ego. O encontro da centelha espiritual interior que nos reconecta com a Divindade, fazendo-nos compreender que somos exilados de um plano além desse cosmos físico.

Se na autoajuda procuramos o caminho da adaptação (imanência), na gnose experimentamos a transcendência.

O Cinegnose apresenta 10 definições de especialistas e alguns filmes gnósticos que ajudam a ilustrá-las.


1. Elaine Pagels – Os Evangelhos Gnósticos, 2006.


Gnosis não é conhecimento, principalmente racional. A língua grega distingue entre o conhecimento científico ou reflexivo (“Ele sabe matemática”) e aquele através da observação ou experiência (“Ele me conhece”). Poderíamos traduzir como “insight”. A gnose envolve um processo intuitivo de conhecer a si mesmo. No entanto, conhecer a si mesmo, no nível mais profundo, é conhecer a Deus; este é o segredo da Gnose.

Filmes: 


Revólver (2005) – a jornada interior do protagonista que descobre que o seu maior inimigo é o próprio ego; A Passagem (2005) – um misto de jornada interior pelo psiquismo e a travessia de um purgatório entre a vida e a morte. Clube da Luta (1999) – para o protagonista, a luta é a melhor forma de conhecer a si mesmo. Silenciando o corpo (mesmo através da porrada) abrimos a mente para insights.


2. Gilles Quispel – Gnostic Studies, 1974


Atravessar o inferno da matéria e o purgatório da moral para chegar ao paraíso espiritual.

Filmes: 


Dead Man (1995) – na companhia de um xamã, Johnny Deep faz jornada espiritual no oeste americano, conhecendo o inferno dos homens, atravessando o purgatório indígena até uma canoa levá-lo através de um rio espiritual; El Topo (1973) – outro western espiritual, agora do diretor Alejandro Jodorowsky. Tal como um toupeira, o protagonista escava um túnel no meio de simbolismo e alegorias religiosas e esotéricas e em meio à violência dos homens. Para chegar à superfície e encontrar a luz do Sol e espiritual; After Death (2015) – um grupo de jovens chega a uma espécie de antessala entre o Céu e o Inferno.

3. Bart Ehrman – Voices of Gnosticism, 2010


No caso do gnosticismo, gnosis é a própria base da salvação. Através da revelação da Gnose a pessoa é despertada da ignorância, do sono, ou embriaguez. São várias metáforas que são usadas para o estado do ser humano antes de receber a gnosis. Uma vez que a gnosis é revelada a essa pessoa, é aceita por ela mesma. É, em última análise, a base para a integração no mundo do divino a partir do qual essa pessoa se originou. Uma das características essenciais da gnosis em termos de conteúdo é que o conhecimento que salva é o conhecimento de que o mundo em que vivemos não é o mundo eterno e nossos seres mais íntimos são divinos e consubstanciados com um ser divino que está além do mundo e que, finalmente, não foi responsável por sua criação. 

Filmes: Cidade das Sombras (Dark City, 1998) – Um homem acorda sem memórias e preso num mundo cenográfico criado por demiurgos alienígenas; O Homem Que Incomoda (2006) em uma estranha cidade onde cada pessoa parece estar estranhamente satisfeita com a sua vida, um visitante chega (ele não sabe como parou ali) e passa a levantar questões sobre tudo e todos;  Show de Truman, 1999 – a descoberta de que o mundo no qual o protagonista vive não é “eterno”, mas um reality show no qual é prisioneiro. E que o seu “carisma” e “brilho” nada têm a ver com aquele mundo ilusório.


4. Stephan Hoeller – Gnosticism: a New Light on the Ancient Tradition of Inner Knowing, 2002.


Saber salvífico, chega intuitivamente, mas facilitado por vários estímulos, incluindo o ensino dos mistérios trazidos aos seres humanos por mensageiros da divindade de fora do cosmos.

Filmes: 


O Décimo Terceiro Andar (1999) – programadores de games de simulações descobrem que personagens virtuais tornam-se sencientes, apontando para a possibilidade do nosso cosmo ser também uma simulação no interior de outra simulação; Matrix (1999) – Neo se aprofunda na sabedoria de Morpheus e nos códigos fonte da Matrix para descobrir o deserto do real fora do seu próprio mundo.

5. Richard Smoley – Forbidden Faith: The Secret History of Gnosticism, 2006.


O despertar cognitivo da gnose é geralmente um processo gradual, em vez de uma única visão, transformadora. Nesta libertação do verdadeiro “eu” do mundo o comportamento moral não é relevante; mas pode facilitar - torna mais fácil de amar os outros seres humanos, porque liberta-o do egoísmo e das agendas ocultas.

Filmes: 


Vidas em Jogo (The Game, 1997) – Um rico banqueiro é submetido involuntariamente a um role-playing game que acaba libertando-o do seu egoísmo; Virei um Gato (Nine Lives, 2016) – o leitor pode ficar surpreso com a citação desse filme, familiar e pueril, um clássico de Sessão da Tarde. Porém, por trás de camadas de clichê de comédia popular há uma jornada de transformação íntima e “salto de fé” – um homem rico e famoso que conhecerá o valor moral do sacrifício e compaixão.


6. Carl Jung – Psicologia e Religião.


Gnosis, como tipo especial de conhecimento, não deve ser confundido com o Gnosticismo.

Filmes: 


Narrativas niilistas e ateias como em The Man From The Earth (2007, ceticismo e desconstrução da religião e da ciência sem qualquer lição metafísica ou teológica), O Novíssimo Testamento (2015, Deus morreu porque se tornou inútil) e Teorema Zero (2013, Deus escreve através de linhas tortas o caminho da sua própria negação) de Terry Gilliam, provam que a gnose não é nem uma religião e, muito menos, propriedade do Gnosticismo. Filmes agnósticos que figuram protagonistas incapazes de prover quaisquer fundamentos para a existência de Deus, sentido ou propósito para a existência. Paradoxalmente, propiciam gnose e transformação.

7. Andrew Philip Smith – A Dictionary of Gnosticism, 2009.


Conhecimento direto do divino, no qual se oferece a salvação. Para os antigos gnósticos, gnosis existia no âmbito da cosmologia, mito, antropologia e práxis utilizadas dentro de seus grupos. A gnose não era apenas a iluminação, mas foi acompanhada por um entender, tal como expresso no Trecho de Teódoto, de “quem éramos, o que nos tornamos, onde estávamos, para onde fomos lançados, para onde estamos indo, do que estamos libertos, o que é o nascimento e o que é renascimento”.

Filmes: 


Todas narrativas AstroGnósticas (aproximar a jornada humana na Terra com a jornada de aliens errantes; ou descobrimos que os seres humanos na verdade descendem de enxertos de DNA alienígena nos primatas ou simbolicamente a condição humana é comparada a de extraterrestres ameaçados ou corrompidos pela sociedade humana) se encaixam nessa definição de gnose: O Homem Que Caiu na Terra (1976), Earthling (2010) ou mesmo E.T. O Extraterrestre (1982).

Além dos filmes que abordam a questão da reencarnação do ponto de vista gnóstico: a prisão do esquecimento a cada “renascimento" – Quero Ser John Malkovich (1999), The Scopia Effect (2014), Enter The Void (2009).


8. Nicolas Denzey Lewis – Introduction to Gnosticism: Ancient Voices, Christians Worlds, 2013.


Palavra grega para conhecimento; um conhecimento específico das próprias origens divinas no qual o caminho para a salvação vem por meio do autoconhecimento.

Filmes:


Mais filmes sobre autoconhecimento – na jornada xamânica induzida por estados alterados de consciência em Blueberry: Desejo de Vingança (2004); e o autoconhecimento e transformações íntimas por processos alquímicos como em Beleza Americana (1999), na série Breaking Bad (2008-2013) e Fonte da Vida (2006) de Darren Aronofsky.

9. Stuart Holroyd – The Elements of Gnosticism, 1994.


Desconhecimento e ignorância mantêm  o homem sob o encalço dos Arcontes; somente o conhecimento (gnose) pode libertá-lo: o conhecimento do Deus transcendente e da divindade interior, e também o conhecimento da maneira de combater ou enganar os Arcontes e permitir a alma alcançar a reunião que anseia. Este conhecimento salvífico não pode ser descoberto no mundo, o reino das trevas. Ela deve vir do reino da luz, concedida quer por revelação (ou iluminação) ou trazida por um mensageiro, um salvador transcendente.  

Filmes:


Os Arcontes são seres hostis e malévolos criados pelo Demiurgo para manter a ilusão do mundo seduzindo o homem através da religião consoladora, o hedonismo e a racionalidade. Filmes como Agentes do Destino (2011, onde Arcontes são agentes de um jogo cósmico no qual o homem é um fantoche), Demônio de Neon (2016, o hedonismo como arma dos arcontes para seduzir a humanidade) ou Lost River - 2014, no qual um gerente de banco (endividamento) e capangas violentos são agentes de um sistema corrupto que mantém protagonistas presos a uma cidade decadente.


10. Birger Pearson – Ancient Gnosticism: Traditions and Literature, 2007.


O objetivo do gnóstico é ser salvo da prisão cósmica existente e para ser restaurado o reino da luz a partir do qual o ser humano verdadeiro  auto originou. Gnosis fornece os meios para alcançar este objetivo e assegurar a passagem da alma, após a morte, de volta a Deus. Uma vez que o processo de libertação for concluído, que é quando todos os eleitos são resgatados,  o mundo material ou será aniquilado ou ficará sujeito à escuridão eterna. A escatologia gnóstica é, basicamente, uma reinterpretação da escatologia bíblica e judaica padrão. 

Filmes: 


Após a morte deveríamos voltar a “Deus”, ou escapar dessa prisão cósmica e retornarmos à nossa antiga morada – o Pleroma. O Terceiro Olho (The I Inside, 2004) mostra essa gnose pós-morte como forma de escapar da reencarnação que nos condena ao esquecimento, mantendo o loop cósmico. Uma prisão cosmológica na qual nem a morte é capaz de nos libertar, como aborda o filme The Discovery (2017).

(Fonte: Cinegnose - aqui). 

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