Cícero e a queda da República dos brasileiros endividados
Por Fábio de Oliveira Ribeiro
Marco Túlio Cícero (106 aC 43 aC), advertiu os romanos contra cinco classes de cidadãos nocivos à República.
Em primeiro lugar os que “...tendo grandes dívidas, têm ainda maiores cabedais, de cujo amor prendidos se não querem soltar”. Em segundo os que “...carregados de dívidas, esperam contudo, e querem mandar e governar, crendo que, perturbada a República, conseguirão honras que não podem obter com ela sossegada". O terceiro gênero é composto por aqueles cidadãos “...de idade já avançada, mas robusta com o exercício...” que contraem dívidas com ostentações, mulheres, banquetes e palácios suntuosos “...de sorte que se quiserem se ver livres delas, têm que ressuscitar a Sila da sepultura”. Em quarto lugar vêm aqueles que “... se vêem oprimidos de modo que nunca levantaram a cabeça; dos quais uns por inércia, outros por má administração de bens, e outros também por gastos, perigam por dívidas antigas…” e o quinto os “... parricidas, brigões e demais facinorosos…”.
As citações acima - transcritas do livro Orações, Cícero, editora Atena, São Paulo, 1957, páginas 51 a 54 - evidenciam um problema metodológico. De fato, as cinco classes de cidadãos nocivos à República mencionadas por Cícero podem ser reduzidas a duas: os endividados e os facínoras.
A distinção entre estas duas classes é bastante permeável. De fato, o endividamento pode ocorrer porque o cidadão é um facínora. Além disto, o cidadão virtuoso pode sofrer uma transformação de caráter em razão da dívida que contraiu e que não consegue ou não quer mais pagar. Portanto, grosso modo podemos dizer que Cícero criticou apenas um vício: o de contrair dívidas.
Este vício privado que produz efeitos deletérios na esfera pública pode ser visto no neoliberalismo em geral e, em particular, nos neoliberais brasileiros.
O neoliberalismo se caracteriza pela ideia de que a riqueza privada e o bem estar social e público podem ser construídos através do endividamento. Estados endividados renunciam a arrecadar tributos e colocam em prática políticas públicas que facilitam o endividamento dos cidadãos para que eles possam adquirir inclusive os serviços que deixaram de ser oferecidos pelo poder público.
As crises temporárias e localizadas de produção (típicas do capitalismo) se tornam crises de endividamento que ameaçam produzir um colapso duradouro da economia em escala planetária. Atormentados pela carência de serviços públicos e envilecidos pelo endividamento os cidadãos abandonam a arena política. Em consequência, os banqueiros e investidores dominam a agenda pública e se limitam a preservar o modelo econômico que os beneficia.
O golpe de 2016 foi intensamente apoiado pelo Itaú e pela Rede Globo, duas empresas que juntas deviam quase 400 milhões de reais ao fisco. Vários Deputados e Senadores que derrubaram Dilma Rousseff estão entre os maiores devedores do INSS, um deles é relator da Reforma da Previdência. As “dívidas políticas” contraídas pelos parlamentares e líderes políticos que foram comprados com propina pela JBS e pela Odebrecht também influenciaram a votação do Impedimento.
Os facínoras e idosos que desestabilizaram a República brasileira (Aécio Neves, Michel Temer, José Serra, Aloysio Nunes, Tasso Jereissati, Gilmar Mendes, para citar apenas alguns deles) têm se esforçado muito para perdoar as dívidas fiscais e previdenciárias dos empresários e parlamentares que apoiaram e deram o golpe de estado. No limite, eles querem obrigar o povo brasileiro a se endividar para comprar os serviços públicos que estão sendo sucateados, privatizados, reduzidos ou extintos
Quando todos os brasileiros forem devedores seremos iguais, imaginam os golpistas. Todavia, a igualdade neste caso será nem virtuosa nem capaz de construir uma República estável e duradoura. Alguns anos após a morte de Marco Túlio Cícero a república romana deu lugar ao Império, que rapidamente se tornaria decadente e governado por homens insanos como Tibério, Calígula e Nero. O que dará lugar à República dos brasileiros endividados não será nem mesmo o simulacro de um império decadente. - (Aqui).
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Comentários classificados:
1. Wilton Cardoso Moreira - 'O endividamento foi a solução para o capitalismo, não o problema' - "O endividamento é um fenômeno mundial. O Brasil está até bem nisto. O Primeiro Mundo está muito pior, em termos percentuais.
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Comentários classificados:
1. Wilton Cardoso Moreira - 'O endividamento foi a solução para o capitalismo, não o problema' - "O endividamento é um fenômeno mundial. O Brasil está até bem nisto. O Primeiro Mundo está muito pior, em termos percentuais.
A questão é que o endividamento, o financismo e a primazia da banca (o neoliberalismo, enfim), embora sejam muito ruins, não são as causas dos problemas do mundo, mas sintomas de um problema maior.
O problema, de fato, é que a economia real está deixando de dar lucro, desde a década de 70. O capitalismo está colapsando por conta de sua eficiência em substituir trabalho vivo (pessoas) por trabalho morto (máquinas). E a coisa só vai piorar, com a indústria 4.0. Não há trabalho suficiente para as pessoas e, sem trabalho, não há mais valia (lucro): o capital entra em parafuso.
O neoliberalismo, com seu regime de dívidas, salvou o capitalismo nas décadas de 1980, 90 e 2000, ao antecipar capitais para devedores que nunca conseguirão pagar. Mas é dinheiro fictício e em 2008 a bolha estourou. Foi contida pelos estados, que absorveram as dívidas da banca.
Mas quando estourar a próxima crise, não haverá mais jeito. Os estados não tem mais bala na agulha. Será o caos.
A saída proposta por Corbyn, Sanders e neokeynesianos em geral não resolverá, pois eles propõem uma volta à economia real e à social democracia do pós-guerra. Mas como eu disse, produzir não dá mais lucro e, em consequência, não alimenta os impostos necessários ao estado do bem estar que eles querem ressuscitar.
O capitalismo está atingindo seus limites internos. Ficou tão eficiente e automatizado que produzir não dá mais lucro nem emprega quase ninguém. Teremos que arranjar outro jeito de viver."
2. Ale AR - 'Ao contrário' - "Não é pela eficiência que o capitalismo 'colapsa'. Nem sequer é o capitalismo que está "colapsando". O que colapsa é a renda da população, asfixiada pela alta tributação que os Estados impõem para atender os serviços das dívidas contraídas e aumentadas com juros. Os Estados sempre terão bala na agulha, uma vez que são eles os que criam dinheiro. O problema é que a banca capturou os Estados, e ao invés desse dinheiro atender a produção e a população, é direcionado para a banca.
A banca neoliberal impõe a austeridade como política para que os Estados atendam seu interesse primeiro. Esse é o problema."
3. Wilton Barbosa Moreira - 'Não se pode criar dinheiro do nada para sempre' - "Você está invertendo causa e efeito. A questão não é de distribuição de riqueza, mas o fato de a riqueza no capitalismo estar ficado cada vez mais escassa. O capitalismo não consegue mais produzir riqueza.
Mas como há escassez de riqueza, se nunca houve tanta capacidade produtiva, tantos bens materiais e tanto dinheiro no mundo? Capacidade produtiva e bens materiais não são riqueza no capitalismo, a não ser que circulem e deem lucro. O dinheiro, sim, expressa a riqueza.
Mas o dinheiro não é a riqueza e a em si, mas somente a expressão do valor. Este a sim, é a verdadeira riqueza no capitalismo. No capitalismo, o dinheiro é só a aparência (ou expressão) de riqueza, enquanto o valor é a essência da riqueza.
E o valor só é gerado pelo trabalho vivo. Por causa da tecnologia, há cada vez menos trabalho vivo, e por isso o valor também diminui, em termos globais. Por isso a crise, Marx estava certo.
Quando se cria dinheiro do nada, como no neoliberalismo, o que acontece é um descompasso entre a aparência (enormes volumes de dinheiro) e a essência (o valor-trabalho cada vez mais escasso) do capital. É o que chamamos bolha.
E elas sempre estouram."
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