Entusiasmo natural
Por Carlos Orsi
Uma das narrativas mais cativantes da ciência contemporânea é a do produto natural validado em laboratório: a história do(a) pesquisador(a) que se embrenha na mata, estuda aos pés de velhas benzedeiras e sábios pajés, leva a flor, a lagarta, a folha ou a raiz de volta para a civilização e, dali, obtém a molécula que vai combater a hipertensão, o câncer, as rugas e os pés-de-galinha.
Há muito a admirar nesse tipo de conto. Entre outras coisas, ele sublinha o valor da biodiversidade e o fato de que a sabedoria tradicional e o conhecimento científico podem coexistir num clima de respeito mútuo e maior benefício para a humanidade. Seria difícil encontrar algo mais alinhado ao zeitgeist -- ou, ao menos, àquilo que as pessoas bem-pensantes gostariam que fosse o zeitgeist.
O problema é que o entusiasmo com uma ideia que parece boa demais por motivos emocionais, morais ou políticos pode acabar escondendo evidências de que ela talvez não seja cientificamente tão sólida assim. Por exemplo, em 2014, artigo publicado no periódico Journal of Medicinal Chesmistry advertia que boa parte do trabalho dedicado ao estudos de produtos naturais "promissores" acaba dando em nada.
"A mineração sistemática de mais de 80 anos da literatura de biologia e fitoquímica (...) revela que apenas 39 compostos representam os produtos naturais mais reportados por ocorrência, atividade e atividade distinta (...) todos têm variadas atribuições de de bioatividade, o que os designa como panaceias metabólicas inválidas", diz o texto.
Uma "panaceia metabólica inválida" é um composto que gera tantos resultados falsos positivos durante o processo de triagem que parece curar praticamente qualquer coisa quando testado preliminarmente em laboratório -- só para frustrar os pesquisadores mais adiante, quanto começam os ensaios clínicos. As razões para isso são diversas, mas incluem a presença de impurezas (não é incomum que o suposto efeito de um composto diminua à medida que o grau de pureza da amostra testada aumenta) e a própria complexidade das moléculas envolvidas.
Os autores do trabalho de 2014 notam que esses efeitos geram um resultado perverso na atividade científica: à medida que os estudos preliminares, reportando um sem-número de sucessos que, na verdade, são falsos positivos, se multiplicam , o composto acaba se tornando objeto de estudo de mais e mais grupos de pesquisa, num imenso desperdício de energia. "A distribuição cumulativa de cerca de 200 mil produtos naturais revelou que a pesquisa desses produtos segue uma lei de potência com características típicas de fenômenos comportamentais". Um máximo de esforço acaba sendo despendido num mínimo de compostos -- que quase com certeza serão falsas panaceias.
Em janeiro deste ano, o mesmo periódico publicou artigo sugerindo fortemente que a curcumina -- extrato da raiz do açafrão-da-terra, ou cúrcuma, e um dos grandes produtos naturais da moda -- é uma dessas falsas panaceias.
Os números são impressionantes: de mais de 120 ensaios clínicos de derivados de cúrcuma, testados contra as doenças mais variadas, nenhum -- nenhum -- produziu resultados dignos de nota. Os autores chamam ainda atenção para fato de que a literatura científica sobre a artemisinina, um produto natural que, comprovadamente, tem efeitos benéficos contra a malária é muito menos volumosa que a disponível sobre a curcumina, o que reforça a impressão de que o estudo de produtos naturais tende a produzir um excesso de esforço para um mínimo de efeito.
Esse "desmascaramento" da curcumina foi notícia até mesmo na revista Nature. "Testes comumente usados para triagem de drogas detectam se o produto químico se liga a uma parte de uma proteína implicada na doença", explica o texto da Nature. "Mas algumas moléculas, como a curcumina, parecem mostrar essa atividade específica quando não há nenhuma. A molécula pode fluorescer naturalmente, frustrando tentativas de usar florescência como sinal de ligação com a proteína. Pode atacar a membrana celular, enganando testes que tentam detectar drogas que visam proteínas específicas da membrana. E pode degradar-se sub-repticiamente em compostos com diferentes propriedades, ou conter impurezas com atividade biológica própria".
Esse tipo de comportamento enganoso não é exclusividade dos produtos naturais, claro, e talvez a maior lição disso tudo seja apontar a necessidade de rever os testes de triagem, para evitar tantos falsos positivos. Mas não consigo me livrar da impressão de que os seguidos resultados promissores-mas-não-é-bem-assim apresentados por substâncias como a curcumina (e os derivados de ginseng, e o infame resveratrol, também citados no artigo sobre falsas panaceias) só são recebidos com tanta paciência e boa-vontade no meio acadêmico/científico por conta de um preconceito favorável (privilégio?) concedido aos produtos naturais. - (Fonte: Blog de Carlos Orsi - AQUI).
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Tudo bem, mas, se os produtos naturais são tão questionáveis, por que será que grandes laboratórios internacionais estão gastando os tubos em pesquisas sobre produtos naturais no Brasil, inclusive e especialmente na Amazônia? Por que tais laboratórios, segundo consta, estariam tão empenhados em assegurar as patentes das fórmulas obtidas a partir dos produtos 'descobertos' e/ou até mesmo se apropriando dos direitos de pesquisadores nacionais titulares de fórmulas aqui patenteadas?
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