terça-feira, 20 de junho de 2017

O DIREITO FINANCEIRO CONTRA O CAOS PÚBLICO


Caos nas contas e políticas públicas: é o Direito Financeiro, estúpido!

Por Élida Graziane Pinto

Há 25 anos a eleição norte-americana foi definida nuclearmente pela estratégia de James Carville que orientou o foco da campanha de Bill Clinton para a economia, a despeito da aparente vantagem de George Bush no ideário da imagem de potência bélico-internacional dos EUA. O jargão politicamente vitorioso lembrava que não se podia olvidar da agenda econômica doméstica.
Muito embora a economia não se resuma às finanças públicas, tampouco essas se confundam com seu regime jurídico-constitucional, há inegável caráter estruturante na confluência de tais eixos para a organização da atividade estatal e da sua relação com o mercado e a sociedade.
Do ponto de vista dos impasses fiscais pelos quais o Brasil tem passado e mesmo à luz do complexo debate sobre o controle de políticas públicas, parece-nos perfeitamente cabível parafrasear a máxima “It’s the economy, stupid” para apontarmos a deliberada estupidez da nossa falta de estudo do Direito Financeiro. Mas não basta qualquer estudo do Direito Financeiro, pois a mera repetição irrefletida de limites, procedimentos ou datas protocolares não nos tira dessa indigência quanto ao debate do seu conteúdo substantivo.
Salvo raríssimas exceções, os cursos de Direito no país, o exame da Ordem dos Advogados do Brasil, a avassaladora maioria dos concursos para as carreiras jurídicas e praticamente quase todas as atividades que lhe concernem no âmbito judicial e extrajudicial desconhecem as relações entre receitas e despesas públicas no nosso pacto federativo, ignoram o modo como o estado administra o endividamento público, bem como apresentam propostas pouco críveis e um tanto míopes para o controle das complexas equações e problemas daí decorrentes.
Ao invés de saturarmos o Judiciário com demandas a posteriori por serviços públicos de qualidade e com questionamentos individuais pela eficácia dos direitos sociais, é preciso reorientarmos o foco para a “macrojustiça” do ciclo da política pública em sua matriz jurídica de planejamento suficiente, execução orçamentária conforme o planejado (salvo motivo de fato ou de direito que ampare o redesenho ocorrido) e controles interno e externo exercidos cotidianamente sobre os custos e os resultados desse ciclo, sem prejuízo do exame da sua conformidade constitucional (na esteira dos artigos 74 da Constituição e 75 da Lei 4.320/1964).
O locus adequado para a análise jurídica das políticas públicas não reside primordialmente no seu controle judicial. Disso nos dá prova a realidade brasileira que temos vivido na última década. Sobrecarga de demandas judiciais tende a gerar iniquidades, reproduzindo novos déficits de eficácia dos direitos fundamentais e, por conseguinte, mais judicialização.
Ora, não há caráter pedagógico em deslocar, de forma substitutiva, o debate democrático das instâncias político-representativas para a arena técnica e, portanto, limitada do sistema de justiça. Muito antes pelo contrário, diante de uma liminar individual, o planejamento governamental deixa de se ocupar da árdua e politicamente onerosa tarefa de fazer escolhas trágicas para universalizar uma resposta inicialmente conferida judicialmente para o campo da política pública ordinária.
Ainda que o Direito Processual Civil tenha muito a oferecer à sociedade com sua proposta de um “processo especial para o controle e intervenção em políticas públicas pelo Poder Judiciário”, como, aliás, já encampado pelo Projeto de Lei 8.058/2014[1], decididamente o artigo 6º do Decreto-Lei 200/1967 e o artigo 165 da Constituição de 1988 nos ensinam que o problema passa pelo ciclo dinâmico de relações entre planejamento, execução e controle regidos pelo Direito Financeiro.
É por onde passa o dinheiro que a matriz das prioridades alocativas do Estado se realiza. Sem clareza de como o Direito rege o fluxo de receitas (incluídas aqui as renúncias fiscais), sua repartição no território federativo, as despesas diretamente realizadas pelo Estado ou fomentadas por ele, o endividamento e a prestação de contas; a abordagem do controle jurídico de políticas públicas se revela míope e incapaz de oferecer uma resposta satisfatória.
Como bem alertava o ministro Carlos Ayres Britto, a lei orçamentária é “a lei materialmente mais importante do ordenamento jurídico logo abaixo da Constituição” (STF, ADI-MC 4048-1/DF, j. 14.5.2008, p. 92). Não há outra fonte de definição mais concreta e real de prioridades cotidianas da ação estatal senão o ciclo orçamentário.
Precisamos, pois, reconhecer a saturação das nossas tradicionais respostas e omissões para os problemas estruturais que o país tem enfrentado sob a égide da Constituição de 1988. A ineficiência, o caos fiscal, a corrupção e a má qualidade dos serviços públicos não são apenas um problema de licitações fraudadas ou contratos superfaturados, tampouco nos basta o foco na recalcitrante desobediência a limites mínimos ou máximos de gastos.
A bem da verdade, nosso aparente fetiche por respostas fáceis não se resume ao processo civil. Não adianta adotarmos posturas simplistas de fiscalização de check-lists formais como os da Lei 8.666/1993 (uma norma administrativa tipicamente procedimental) ou mesmo vinculações de gasto mínimo com saúde e educação, bem como limites máximos da Lei de Responsabilidade Fiscal e do “Novo Regime Fiscal” (como o são, por exemplo, os limites de despesa de pessoal, de endividamento e o teto global de despesas primárias).
Tenho dito[2] sempre que a origem dos nossos problemas está na fragilidade substantiva do ciclo das políticas públicas. Sociedade que não planeja aceita qualquer resultado, obtido, inclusive, por uma execução orçamentária arbitrária e abusiva. Mas nosso déficit não é de normatização sobre o dever de boa-gestão acerca desse ciclo, pois vale lembrar, a título de exemplo, que o Decreto-Lei 200, há cinquenta anos[3], busca orientar a administração pública brasileira sobre princípios e eixos basilares de avaliação e monitoramento da ação governamental.
Nosso déficit é de compreensão estrutural e de aplicação íntegra no cotidiano das escolhas trágicas que o Estado brasileiro assume em nome da sociedade. Nenhum avanço teremos se não nos ocuparmos de exigir que os planos plurianuais, as leis de diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais, bem como suas execuções e prestações de contas sejam aderentes às obrigações constitucionais e legais de fazer já elucidadas em diversas regras positivadas inclusive pelo planejamento setorial de cada política pública.
Não temos de reinventar a roda, tampouco podemos nos dar ao luxo de invocar apenas princípios extraídos da doutrina e jurisprudência germânica. Talvez seja mesmo chegada a hora de nos voltarmos para a difícil e complexa tarefa de assegurar cumprimento às regras já vigentes no ordenamento brasileiro no fluxo das prioridades alocativas do orçamento público de cada ente da federação.
O primeiro passo é tratar o estoque de demandas judiciais acumulado ao longo da sua série histórica, no mínimo, como um diagnóstico de déficit de cobertura do planejamento, cujo processamento legítimo obrigaria os órgãos de defesa do Estado (Procuradorias e Advocacias Públicas) a levantarem tal estoque para que as áreas competentes possam buscar, dentro do próximo ciclo de planejamento, uma forma de universalizar a resposta no bojo da política pública.
O segundo passo é enfrentar cada ato da execução orçamentária como atos administrativos que são, por definição e natureza jurídica, suscetíveis de controle na forma até mesmo da Lei de Ação Popular, ou seja, merecem avaliação detida sobre seus desvios de finalidade, falta de motivação, além dos vícios de forma, competência e objeto.
Um terceiro passo necessariamente passa pela qualificação do controle em torno do teste de consistência entre planejado e executado, se as metas físicas e financeiras previstas no ciclo orçamentário se realizaram adequadamente nos resultados e custos verificados ao longo do exercício, sem prejuízo do exame acerca das balizas de conformidade com o ordenamento vigente e, em especial, do cumprimento das obrigações constitucionais e legais de fazer que materializam a consecução dos direitos fundamentais.
Interessante a esse respeito é o exemplo das Recomendações  44[4] e 48[5], ambas de 2016, que foram emitidas pelo Conselho Nacional do Ministério Público para orientar todos os membros do Ministério Público brasileiro quanto ao controle dos gastos mínimos em educação e saúde pelo viés material do respeito aos direitos fundamentais implicados nesses regimes constitucionais de vinculação orçamentária. Nessa mesma linha qualitativa, trilharam as Recomendações 1 e 2/2016 do Conselho Nacional dos Procuradores Gerais de Contas[6] e a Resolução 3/2015 da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil[7].
Mas de nada adianta nos limitarmos a poucas iniciativas isoladas. É preciso multiplicar conhecimento, ampliar a transparência dos dados e fomentar a eterna vigilância de todos os cidadãos afetados. Afinal, ninguém melhor fiscaliza a licitação, senão o licitante; o serviço público, senão o usuário; o concurso público, senão o candidato, o fisco, senão o contribuinte... Precisamos mudar a cultura do país quanto ao uso dos recursos públicos, para que ele seja, de fato, republicano e democrático.
Precisamos reformar[8] nossos Tribunais de Contas, que deveriam ser guardiões íntegros do seu adequado cumprimento, mas que vêm sendo capturados por seu modelo atual de funcionamento e indicação dos seus ministros e conselheiros, em rota de evidente risco de captura política!
Além disso, precisamos, sobretudo, aplacar coletivamente nossa estupidez e ignorância quanto ao conteúdo e ao manejo cotidiano do Direito Financeiro! É inconcebível que a formação jurídica no país, em regra, desconheça tal disciplina nuclear.
Desde a Inconfidência Mineira temos consciência da necessidade de conhecer e controlar a atividade tributária do Estado, mas mais de dois séculos se passaram e ainda não sabemos, de fato, bem gerir e fiscalizar o percurso das finanças públicas em toda a sua amplitude.
Não há mais como tergiversar: é no Direito Financeiro que grande parte dos nossos problemas atuais se origina e pode ali encontrar rota sustentável de solução. A realidade grita e clama mudança na nossa matriz de formação jurídica.
No início deste mês de junho, foi divulgada “Carta aberta à sociedade brasileira, ao Exmo. Sr. Ministro da Educação e ao Egrégio Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil”, também chamada “Carta de Fortaleza”[9], como produto do 4º Congresso Internacional de Direito Financeiro, organizado pelo Tribunal de Contas do Estado do Ceará. Nesse documento, foram expressamente sugeridas tanto “a inclusão da disciplina do Direito Financeiro, pelo Ministério da Educação (Conselho Nacional de Educação), no rol de disciplinas obrigatórias nas Faculdades de Direito, integrantes do Eixo de Formação Profissional constante da organização curricular dos cursos de graduação em Direito, de que trata o artigo 5° da Resolução CNE/CES 9/2004, que ‘Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito e dá outras providências’ ”, como também “a inclusão da disciplina do Direito Financeiro, pelo Conselho Federal da OAB, no Edital do Exame de Ordem, ao menos em sua prova objetiva”. Pessoalmente não posso deixar de aderir à “Carta de Fortaleza” e, por isso, aproveito o ensejo de estar a meu encargo a Coluna Contas à Vista desta semana, para me somar aos colegas que a elaboraram e assinaram.
Carecemos urgentemente superar nossa estupidez, deliberada ou não, quanto à falta de estudo substantivo do Direito Financeiro. Eis o caminho inexorável, sob pena de sucumbirmos não só em nosso caos fiscal, como também prosseguirmos a oferecer respostas insuficientes (“enxugar gelo”?) no combate à corrupção e no enfrentamento do mau uso dos recursos públicos. Essa ignorância nos custa muito caro há séculos...  -  (Fonte: Revista Consultor Jurídico - AQUI).
[1] Como se pode ler em http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1284947.pdf
[2] A exemplo do que debati em http://www.conjur.com.br/2016-dez-06/contas-vista-sociedade-nao-planeja-aceita-ma-qualidade-gasto-publico e http://www.conjur.com.br/2017-mar-01/50-anos-decreto-lei-200-falencia-estado
[3] Aniversário suscitado em http://www.conjur.com.br/2017-mar-01/50-anos-decreto-lei-200-falencia-estado
[4] Cujo inteiro teor se encontra disponível em http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Normas/Recomendacoes/RECOMENDACAO_44_2016.pdf
[5] Disponível em http://www.cnmp.mp.br/portal/images/normas/RECOMENDAO_48.pdf
[6] Disponíveis em http://www.cnpgc.org.br/?p=781 e http://www.cnpgc.org.br/?p=900
[7] Como se pode ler em http://www.atricon.org.br/wp-content/uploads/2016/02/Resolu%C3%A7%C3%A3o-Atricon-n.-03-diretrizes-educa%C3%A7%C3%A3o.pdf
[8] Como já suscitado em http://www.poder360.com.br/opiniao/opiniao/e-imperativo-diminuir-as-indicacoes-politicas-para-os-tribunais-de-contas/http://www.conjur.com.br/2017-abr-11/inadiavel-atrasada-reforma-tribunais-contashttp://www.conjur.com.br/2017-abr-11/professores-assinam-manifesto-modelo-tribunais-contas e http://www.conjur.com.br/2017-mai-11/interesse-publico-deu-errado-fiscalizacao-tribunais-contas.
[9] Disponível em https://www.tce.ce.gov.br/comunicacao/noticias/2711-carta-de-fortaleza-ressalta-importancia-de-instituir-o-direito-financeiro-como-disciplina-obrigatoria e https://www.tce.ce.gov.br/downloads/carta_de_fortaleza_congresso.pdf
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(A articulista é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG).
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"Salvo raríssimas exceções, os cursos de Direito no país, o exame da Ordem dos Advogados do Brasil, a avassaladora maioria dos concursos para as carreiras jurídicas e praticamente quase todas as atividades que lhe concernem no âmbito judicial e extrajudicial desconhecem as relações entre receitas e despesas públicas no nosso pacto federativo, ignoram o modo como o estado administra o endividamento público, bem como apresentam propostas pouco críveis e um tanto míopes para o controle das complexas equações e problemas daí decorrentes."
. O problema é que isso exigiria, adicionalmente, um certo domínio sobre microeconomia, matemática/contabilidade financeira, análise de contas nacionais, todas elas vertentes pouco afeitas a quem centraliza sua metodologia de estudo em 'dicas' e 'macetes' alinhados em apostilas/resumões para concurseiros, ou seja, não há como traduzir em roteiros, conceitos e fórmulas mágicas o conteúdo dos temas acima citados. Melhor ficar mesmo no trivial simples e mandar às favas aquelas complexidades! E o Erário que se dane.

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