Bezerra da Silva e a delação no imaginário popular
Por Cláudio Santana Pimentel
Se houve alguém que respondeu, e muito bem, à indagação de Spivak: "pode o subalterno falar?", foi Bezerra da Silva. Migrante nordestino que viveu no Rio de Janeiro, suas composições apresentam, não uma estetização da criminalidade, como alguns podem querer crer - imagino que essa perspectiva é muito mais aplicável ao Cidade de Deus de Fernando Meirelles (para quem a condição subalterna talvez não vá além de um objeto fílmico) - mas uma reflexão muito cuidadosa e criativa desde a perspectiva daqueles para quem o Estado não se faz presente, ao contrário, manifesta-se em sua ausência: na precariedade ou inexistência da escola, do posto de saúde, etc. Manifesta-se, por outro lado, enquanto presença na atuação da polícia, na figura emblemática do delegado, não raro o único representante do poder público a quem o morador desassistido do morro pode apresentar sua voz, ainda que na condição de depoente, e frequentemente de suspeito.
Se a figura do malandro, como alguém que consegue transitar em meio a uma ordem social excludente - e seu necessário contraponto, o mané - são estruturantes na composição de Bezerra, sua temática permite perceber várias faces da condição subalterna brasileira urbana da segunda metade do século XX, e entendo que muito de sua reflexão ainda permanece válida nos dias de hoje: a presença do Estado-repressor e a ausência do Estado de bem-estar social, que já mencionei; a marginalização e a criminalidade como possibilidade de subsistência e mesmo de resistência; as relações cotidianas; o papel econômico e social das drogas ilícitas; mas também a festividade, ainda com um toque de crítica social, como no irresistível samba "Pagode na casa do gago".
Neste texto, minha atenção recai sobre a figura do cagueta - o delator, nos termos atuais. Cagueta, ou dedo-duro, é uma figura recorrente nas composições de Bezerra da Silva. Nas quais o autor mostra, entre a fina ironia e o deboche, o desprezo por uma personagem que se tornou habitual no cotidiano político brasileiro.
"É, você não está vendo
Que a boca tá assim de corujão
Tem dedo-de-seta adoidado
Todos eles a fim de entregar os irmãos
Malandragem dá um tempo
Deixa essa pá de sujeira ir embora
É por isso que eu vou apertar,
Mas não vou acender agora"
(Malandragem dá um tempo)
Percebe-se o delator ou cagueta como não simplesmente um denunciante, mas como alguém que trai a sua condição de classe. Para Bezerra, o dedo-duro é execrável por fazer o jogo das classes dominantes, ou, ao menos, de seu braço visível, a autoridade policial:
"Malandragem, fique esperta
Com essa boca de radar que é vacilante
Tô avisando a você
Pra não dá mole a essa boca de radar que é vacilante
Ele foi no delega cagueta
Onde o linha de frente maloca o flagrante
Vomitou bonitinho no doutor delegado
Onde o linha de frente maloca o flagrante"
(Boca de radar)
"Mas é que eu fui num velório velar um malandro
Que tremenda decepção
Eu bati que o esperto era rife ilegal,
Ele era do time da entregação
O bicho esticado na mesa
Era dedo nervoso e eu não sabia
Enquanto a malandragem fazia a cabeça
O indicador do defunto tremia.
[...].
Caguete é mesmo um tremendo canalha
Nem morto não dá sossego
Chegou no inferno, entregou o diabo
E lá no céu caguetou São Pedro
Ainda disse que não adianta
Porque a onda dele era mesmo entregar
Quando o caguete é um bom caguete
Ele cagueta em qualquer lugar"
(Defunto caguete)
Mas o argumento de Bezerra da Silva contra o delator não é fundamentalmente político, mas ético. O dedo-duro rompe a confiança daqueles que só podem contar consigo mesmos e nada (além da prisão) podem esperar das autoridades:
"Fecharam o paletó do dedo-duro
Pra nunca mais apontar
A lei do morro é barra pesada
Vacilou levou rajada na ideia de pensar
[...].
A lei do morro é ver, ouvir e calar
Ele sabia, quem mandou ele falar
Falou demais e por isso ele dançou
Favela quando é favela, não deixa morar delator"
(Dedo-duro)
Evidente que a condição social e econômica do dedo-duro das canções de Bezerra da Silva é bem diferente da dos atuais delatores que alimentam os noticiários, as autoridades e os interesses de ambos, em depoimentos por vezes transmitidos em tempo real por órgãos de imprensa previamente escolhidos.
Midiaticamente, o discurso editável dos delatores serve muito mais do que provas técnicas, que necessitam trabalho e competência para serem obtidas e são de difícil compreensão para a gente comum, bestializada diante das denúncias na televisão ou internet.
Preocupa, sobretudo, o uso midiático das denúncias, ou caguetagens, na linguagem de Bezerra. Os interesses de quem denuncia, escapar ao rigor da lei, curtindo a vida em Nova Iorque com cidadania americana para si e para seus negócios, ou na Bahia. O que dizem não pode ser tomado como verdade inquestionável: é o discurso de quem quer se desresponsabilizar. Não se pode ignorar os interesses daqueles que querem melar a democracia, apontando o dedo para quem percebem como obstáculos aos segmentos econômicos e de classe que representam.
A recusa à presunção de inocência, o sofisma da condenação sem provas - cujos reais interesses as mídias elitistas omitem do grande público à sua mercê - é ameaça tão severa à democracia quanto a recusa à aceitação da vontade geral expressa nas eleições. (Fonte: AQUI).
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"A recusa à presunção de inocência, o sofisma da condenação sem provas - cujos reais interesses as mídias elitistas omitem do grande público à sua mercê - é ameaça tão severa à democracia quanto a recusa à aceitação da vontade geral expressa nas eleições."
Na mosca!
A figura da colaboração premiada, tal como prevista na lei de 2013 que a disciplinou e nas condições traçadas pela doutrina, é salutar. O problema reside justamente nas distorções apresentadas no dia a dia: utilização do mecanismo como 'moeda de troca', muitas vezes estando o preso em "prisão preventiva perpétua"; imposição de inclusões e exclusões; vazamento seletivo de itens componentes da colaboração; atribuição de 'força de lei' aos itens componentes da colaboração independentemente da existência/prévio exame de prova(s) robusta(s); resumindo: o que o colaborador afirma se converte em verdade absoluta, em verdadeiro ucasse, decreto de czar russo: a partir da divulgação dos malfeitos, verídicos ou não, o réu está irremediavelmente condenado.
O que diria o velho e saudoso Bezerra da Silva a propósito das delações nos moldes atuais e mui especialmente dos operadores responsáveis por sua extração?
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"A recusa à presunção de inocência, o sofisma da condenação sem provas - cujos reais interesses as mídias elitistas omitem do grande público à sua mercê - é ameaça tão severa à democracia quanto a recusa à aceitação da vontade geral expressa nas eleições."
Na mosca!
A figura da colaboração premiada, tal como prevista na lei de 2013 que a disciplinou e nas condições traçadas pela doutrina, é salutar. O problema reside justamente nas distorções apresentadas no dia a dia: utilização do mecanismo como 'moeda de troca', muitas vezes estando o preso em "prisão preventiva perpétua"; imposição de inclusões e exclusões; vazamento seletivo de itens componentes da colaboração; atribuição de 'força de lei' aos itens componentes da colaboração independentemente da existência/prévio exame de prova(s) robusta(s); resumindo: o que o colaborador afirma se converte em verdade absoluta, em verdadeiro ucasse, decreto de czar russo: a partir da divulgação dos malfeitos, verídicos ou não, o réu está irremediavelmente condenado.
O que diria o velho e saudoso Bezerra da Silva a propósito das delações nos moldes atuais e mui especialmente dos operadores responsáveis por sua extração?
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