O Mr. Hyde que habita os nossos doutores
Por Carlos Motta
Até outro dia eu e milhões de outros brasileiros ordinários não tinham a menor ideia sobre quem eram os ministros do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal Superior Eleitoral. Também eram raros os que ouviam falar de algum processo que esses tribunais julgavam. Os jornalões, quando em vez, noticiavam alguma coisa, mas nada que fizesse a gente sentir que, acima de todos nós, pairando no céu da justiça, havia um grupo de homens impolutos de capas pretas, a resguardar, resolutos, a integridade da carta magna que orienta a sociedade brasileira.
Os integrantes do Judiciário eram figuras desconhecidas do populacho.
A gente sabia apenas que eles deveriam ser tratados por doutores, talvez por serem mais sábios que nós, talvez porque, no nosso imaginário, eles eram mesmo especiais, aquelas pessoas que vêm ao mundo para melhorá-lo, ajudando a diminuir as injustiças e a desigualdade.
Ninguém contestava a posição social desses doutores, tampouco a sua honestidade ou a sua competência.
Vez ou outra, é claro, estourava um escândalo, algum meritíssimo era apanhado com a boca na botija, fazendo o que não devia, mas esses eram casos tão raros que confirmavam a impressão de que a integridade moral e ética dos nossos doutores era a regra, não a exceção.
Bem, assim era no Brasil de outrora, aquele do qual a nossa memória ainda guarda alguns relances, uns poucos flashes em preto e branco, que dia a dia se esvanecem na brutalidade dos tempos atuais.
Hoje, juízes, promotores e ministros dos tribunais superiores são figurinhas fáceis no noticiário cotidiano.
Estão em toda parte, frequentam todos os veículos de comunicação, são requisitados para falar sobre os temas mais variados, dão autógrafos e participam de "selfies", essa fácil forma contemporânea de exibir o narcisismo.
Nossos doutores não resistem aos famosos 15 minutos de fama.
O problema é que toda essa superexposição tem sido cruel para alguns deles - sem as togas, ficam nus, e assim despidos, revelam publicamente o Mr. Hyde por trás da máscara do diligente Dr. Jekyll, que usam para esconder suas limitações, seus preconceitos e sua ignorância.
A cada entrevista que dão, a cada julgamento televisado de que participam, os nossos doutores expõem, de maneira trágica, todas as mazelas do Judiciário brasileiro, e fazem o cidadão comum perceber que eles estão muito longe de serem sábios, especiais, ou sequer exemplos de ética e moral.
Suas sentenças soam não lições de lucidez, mas sim como admissão do mais repulsivo cinismo e sórdida hipocrisia. - (Fonte: AQUI).
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Generalizações à parte, cumpre indagar:Por Gilson Santiago Macedo Júnior e Cláudio Oliveira de Carvalho (AQUI)
“Quem de nós é fiel a si mesmo o tempo todo?”
François-Andrieux
Conta-nos François Andrieux, em seu poema chamado “Le meunier de Sans-Souci” (O moleiro de Sans-Souci), que Frederico II, rei da Prússia, resolveu construir para si um belo palácio, numa paisagem tranquila e calma. Construiu, então, o castelo em uma região chamada de Sans-Souci, que significa ‘sem preocupação’. Ocorre que nestas redondezas havia um moinho antiquíssimo que atrapalhava a visão do monarca e impedia a sua ampliação; decidiu então o rei que removeria o moinho a qualquer custo: ofereceu riquezas, tentou negociar e o moleiro, dono do moinho, se opôs aguerridamente à expropriação do seu moinho.
Frederico II, após saber da oposição do moleiro, fez chamá-lo a sua presença e questionou-lhe os motivos que lhe faziam manter a ideia de continuar com o moinho erguido. O moleiro, em sua humildade, conta que o pai do seu pai, o seu pai e ele haviam trabalhado durante toda a vida naquele moinho e que seu filho também trabalharia quando mais velho. Irritado, Frederico II diz ao moleiro: “Sabes que, se eu assim o ordenasse, ainda que contra sua vontade, poderia expropriar-te da terra sem lhe dar um único centavo, não sabes?” e o moleiro redarguiu: “O senhor? Tomar-me o moinho? Ainda existem juízes em Berlim!”.
Como o moleiro de Sans-Souci, questionamo-nos, perante os acontecimentos recentes: ainda há juízes no Brasil? Em tempos de espetacularização da magistratura, tempos de juízes-celebridades, juízes-heróis (e o herói, aqui, ocupa sempre “o lugar do canalha”, como nos lembra Warat) e promotores intocáveis, assistimos – assustados – à escalada de uma perseguição contra magistrados e membros do Ministério Público avessos à cultura punitivista.
Magistrados liberais, garantistas e antipunitivistas são criminalizados e caçados pela mídia e pelos próprios colegas de Tribunal. Em 13 de junho de 2016, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro submeteu a julgamento dois juízes e duas juízas que haviam se manifestado em um evento contrário ao impeachment da então presidenta Dilma Rousseff – felizmente, por 15 votos a 6, o Tribunal decidiu arquivar o processo administrativo. Como bem disse Yarochewsky ao comentar o caso, “não resta dúvida que os magistrados foram perquiridos em razão de suas posições ideológicas que qualquer pessoa, independente da atividade profissional, tem direito como cidadão”.
Preciso seria analisar a falta de compromisso de magistrados e promotores com a garantia e a ausência de engajamento na defesa de direitos coletivos que, desde o modelo de recrutamento, é evidente nos inúmeros pareceres e sentenças flagrantemente inconstitucionais.
O descumprimento do controle externo da atividade policial, por exemplo, prevista como função institucional do Ministério Público no art. 129, VII, da Carta Magna de 1988, nos traz a concepção de um órgão ministerial ainda elitista, conivente com violações de direitos humanos e pouco engajado com suas atribuições fundamentais e exclusivas, como defesa de direitos coletivos e supervisão das penas de prisão. Soma-se a tudo isto a imensa discrepância de gênero e raça nos cargos da Promotoria Pública (70% dos promotores e procuradores do país são homens e 76% são brancos; a população brasileira, de acordo com o Censo 2010, esses índices são, respectivamente, 48% e 50%).
Com uma das mais violentas polícias do mundo, a função exclusiva do MP de exercer controle externo da polícia fracassou, como sustenta Julita Lemgruber, coordenadora da pesquisa “Ministério Público: guardião da democracia?”, uma vez que “mais do que omissão do MP, há certa ‘cumplicidade’ entre o órgão e as polícias, sobre a tramitação de processos penais iniciados com a prisão em flagrante, na qual promotores repetem na denúncia a versão policial dos fatos, sem averiguar sua veracidade, nem a legalidade do flagrante, nem tampouco a ocorrência de tortura ou maus tratos”. Por outro lado, face da mesma moeda, um Judiciário já caduco e custoso aos cofres públicos.
Desligados da realidade social, frutos de uma educação jurídica ainda extremamente técnica e não emancipatória, formamos cada vez mais bacharéis, que por sua vez serão juízes, descompromissados com a democracia e com o povo: as universidades de Direito hoje dão à luz aos juízes e promotores sedentos por uma espécie nova de vingança – o rigor das leis contra os pobres e o acirramento de um Estado de Polícia que, por natureza, é avesso à democracia.
Não à toa é que tribunais perseguem aqueles que ousam romper com a ‘paixão’ punitivista presente nos quadros do MP e do Judiciário: ocupam a figura do herói que Warat nos apontou. São aplaudidos por representarem a escalada de uma cultura avessa aos direitos humanos, que insiste em desumanizar e descaracterizar, no sistema penitenciário, as vidas sob custódia estatal; representam aquilo que as faculdades de Direito têm moldado em seus estudantes, técnicos, operadores que, no sentido estrito da palavra, possuem uma frieza e um rigor mecânicos para lidar com as situações que aparecem ao jurista, infelizmente, insensível.
Perseguições como as que foram feitas contra o juiz Luís Carlos Valois e à desembargadora (Nota deste blog: juíza) Kenarik Boujikian fazem parte de um projeto avesso à democracia, um projeto que custa vidas e que age na frieza da lei que, como disse Fernando Sabino, “Para os pobres, é dura lex, sed lex. A lei é dura, mas é a lei. Para os ricos, é dura lex, sed latex. A lei é dura, mas estica”.
Felizmente, ainda há juízes no Brasil, como Valois e Kenarik. A esperança, que só virá com uma mudança de pensamento jurídico – sobretudo nas faculdades de Direito e nos recrutamentos feitos pelo MP e pelo Judiciário – é que a dúvida sobre a existência de juízes no Brasil morra. Até lá, seguimos buscando lótus num mar de lama, na incerteza se o nosso moinho amanhecerá de pé como o conservamos...".
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Dica de leitura: "CNJ adia julgamento sobre pena de censura à juíza Kenarik Boujikian" - clique AQUI.
Há, sim, juízes e juízas no Brasil.
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