sábado, 19 de novembro de 2016

TEORIA DO RISO


Teoria do riso - o livro perdido de Aristóteles

Por Sérgio Medeiros

Anoto que, não uma, mas todas as teorias até então atribuídas a Aristóteles sobre a Teoria do Riso estão fadadas a circularem sob novas luzes.
Se até então, para Aristóteles, segundo seus historiadores, o riso seria “próprio do homem”, sinal da racionalidade humana, a necessária ligação do homem com os deuses através das ideias que elevam o espirito (teoria da felicidade), para seus detratores o riso rebaixava o homem, destruía a solenidade ou quebrava o dogma da fé e do respeito devido a tudo o que provém da divindade; por isso Jesus Cristo não ria.
No romance de ficção o Nome da Rosa, o escritor e filósofo Umberto Eco baseia toda a trama em torno do segundo livro da Poética de Aristóteles, considerado perdido, e que, em linhas gerais, teria o condão de consolidar a Teoria do Riso como sendo algo próprio do homem, bem como fruto de sua racionalidade, o que poderia abalar a fé enquanto fundamento reverencial de temor a Deus e de respeito à instituição Igreja e a seus representantes na terra.
Entretanto, recentes descobertas - ainda não confirmadas em sua inteireza sobre a autenticidade dos escritos - nos levam a outro caminho, que, não obstante diverso dos que eram aventados até agora, comprova o potencial revolucionário desta obra e o porquê da sistemática tentativa de destruir sua propagação através dos séculos. 
Introdutoriamente, como acima sinalado, informo que muitas das especulações acima, e que balizaram durante séculos a discussão sobre a gênese do riso não guardam correspondência com a real definição posta nas recentes descobertas.
Do que se pode antever, ainda que esparsamente, oriunda deste recentíssimo achado, é que estamos frente a uma nova concepção, que de forma assertiva dispõe concretamente sobre a dualidade do riso.
Em termos práticos, dispõe que o riso se revela em dois campos distintos: num sentido temos o corpo humano, e junto com ele, como presente dos Deuses, o riso, e, no outro, a concepção do homem como ser racional, e a outra forma do riso, produto desta racionalidade.
Assim, a primeira forma de manifestação do riso vem da criação do homem, ou seja, provém da natureza, da sua essência natural, em que o riso tem a ver com o gozo natural, com a perfeição física, e neste sentido se torna sublime, imenso, exprimindo primordialmente o sentir humano como atributo divino.
Neste sentir, o riso é uma das poucas coisas que já vieram perfeitas no homem, em suma era (e é) a visão do criador – de(os) Deus(es) -,  um presente que não deveria ser maculado, pois continha em si, neste aspecto, o que foi posteriormente retratado como imagem e semelhança.
Fazendo um paralelo, para melhor compreensão do tema, e trazendo esta visão pretérita a acontecimentos recentes, e que são objeto de instantânea divulgação nas mídias sociais pelo seu impacto, poderemos ver e sentir a imensa força desta manifestação humana.
Quando pessoas que nunca escutaram algum som ouvem pela primeira vez, ou que nunca enxergaram e veem a luz, as cores, e com isso sentem, de forma diferenciada, a dimensão do espaço. Aí, em todas as vezes, brota do fundo do seu ser um riso espontâneo, de felicidade pura, que por sua intensidade pode ser sentido por todos, no contexto e na realidade do fato.
É sobre este riso que o segundo livro da poética de Aristóteles inicialmente se debruça, do riso enquanto manifestação do prazer físico dos sentidos, em sua interação com a natureza, como fruto de um acontecimento natural, da chuva após um longo período de seca, do nascimento dos filhos, da festa, e neste sentido é sublime.
Na realidade, esta primeira parte é que, pelo seu potencial libertador, foi censurada através dos séculos.
A extensão desta ideia tornava o homem e seu corpo parte incindível da essência de Deus e, nesta percepção, sua profanação seria um crime contra Ele, e sua proteção e cuidados nossa manifestação de fé e respeito ao criador. 
Delinearemos com minúcias este ponto após a explicitação geral deste seccionamento da teoria do riso.
Assim, inicialmente compreendido o riso como fruto divino, presente dado aos homens, passou este, imediatamente, por sua excepcionalidade concreta e possível racionalização, a ser objeto de estudo e desejo dos homens, de todos os homens, em todos os tempos, quais pequenos demiurgos brincando de Deus para replicar sua obra perfeita.
Deste modo, a segunda parte da poética, após estas considerações iniciais, trata do riso como fruto da racionalidade humana, e o compreende, estritamente, dentro da Comédia, pois resultado de uma cópia risível do ser humano travestido de Deus.
Neste capítulo, temos o riso fabricado pela mente humana, o riso enquanto comédia, o riso como subproduto imperfeito da razão – e este é o riso (transformado pelas mãos e mentes humanas, e encarcerado por elas) que, posteriormente,  foi moldado,  julgado e condenado por filósofos, que em sua arrogância e soberba, nublados pelos seus interesses, incluíram a parte divina em seu julgamento.
Como fruto imperfeito que busca no humano racionalizável sua alegria natural de existir, jamais poderiam ver reconhecido nessa manifestação algo mais além da conformação da natureza humana através da razão. Assim, o potencial destruidor de tudo o que trouxesse sofrimento e dor ao homem, ao invés do riso, concretamente não ameaçava a ideia de Deus, mas a imperfeição das convenções humanas, racionalizáveis.
Isso explica por que, no decorrer dos anos, nem a Igreja, nem as instituições, que sempre se construíram pela força e pela racionalidade do poder, jamais deixaram que esta Poética tivesse seu conteúdo divulgado, pois a concepção do riso nela insculpida  somente teria seu desiderato no conforto e na proteção do homem e sua natureza.   
Trava-se desde então, um contínuo julgamento que, invariavelmente - em face das provas ocultadas (extraviadas, destruídas) – somente se atém a concepções que não ameacem nem a Igreja e demais entes sobre os quais se erigiram os pilares da atual civilização ocidental –  ideias feitas em desserviço do homem e não de sua emancipação.
Compreende-se,  agora, através destes novos escritos, que, por conta dos homens, filósofos, literatos, cultos, através dos séculos – sistematicamente se condenou ou referenciou o riso como intrinsecamente relacionado à razão humana – o homem é o único animal que ri -, e dai se extrai parte de sua racionalidade.
Neste ponto, consoante os novos termos,  abrem-se novos horizontes, pois o riso passa a ser compreendido em sua forma dúplice: em parte pode ser concebido como forma de intervenção divina em seu existir humano e, de outra parte, como construção humana, decorrente do uso de sua racionalidade.
A aceitação desta origem dúplice do riso, tendo como parte essência divina, consistente nesta sensação que engloba todo o corpo físico, harmonia, êxtase e sublimação, era e é demasiado humana e subversiva, pois tira o foco exclusivo da fé e do espírito e o estende ao corpo humano.
Compreende-se nesta breve exposição o fato de o riso, considerado em sua pureza como originário dos sentidos, nunca ter sido diferenciado, em sua essência, de suas outras formas de manifestação, de sempre ter sido colocado em seu conceito como tendo forma una, como atributo da razão. Deve-se tal conformação fática à circunstância de que o riso,  ao ter definida sua origem unicamente como decorrente do uso da razão, teve automaticamente excluída sua vertente espiritual, bem como as consequências advindas deste componente divino em sua intrínseca natureza.
Tal concepção dúplice resultaria em impossível conciliação com o martírio a que submetiam homens e mulheres, em nome de Deus, pois  tal diferenciação importava em situar num só corpo atributos ao mesmo tempo divinos e humanos, seres criados à imagem e semelhança.
Estaria em conformidade com o pensamento que apregoa que nada do que é humano pode, em essência,  ser ruim, nem riso, nem amor, nem sexo, êxtase ou emoção.
A grande questão sobre esta vertente universal do riso, que advém da atração, do prazer natural das coisas da natureza, o riso espontâneo de maravilhamento perante o mundo, é que isto é demasiado Deus em nós.
Desta forma, se tal concepção encontra-se  inescapavelmente jungida ao nosso corpo humano, este merece  ser resguardado sob todas as formas e modos, pois em sua origem a mão divina que nos criou.
De outro lado temos a vertente que coloca toda a discussão no patamar da razão, todo o prazer (que provoca a sensação do riso) provém de motivações racionalizáveis elaboradas em conformidade com a naturalidade – física – do corpo, e assim situa o riso e a percepção de Deus na esfera da espiritualidade e não no corpo (mero instrumento). Esta forma de pensamento tem ainda um componente excepcional - no caso, como manifestação da racionalidade humana -, traz em sua origem a capacidade de ser burlada.
Em suma, a razão deturpou o riso, pois se permitiu reproduzir este prazer de tantas formas que a farsa se tornou possível, e assim se criou a comédia, não o riso.
E, os filósofos, em seus tratados, por seu distanciamento com o prazer físico (natural), não explicitaram sua essência e nem o diferenciaram da comédia – e, para torná-la imensa, como fruto do pensamento racionalizado, usurparam ao riso, advindo da naturalidade das pessoas, sua origem divina e o incorporaram à força aos escritos em que tornavam todo o ato humano passível de riso, como racionalizável, submetendo-o ao jugo da razão.
Ao fazer a distinção, muito antes da religião cristã, Aristóteles, sem tais condicionantes, projetou seus pensamentos, como alerta aos que viriam, anteviu o futuro, e ao prevê-lo alertou as novas gerações sobre o significado das sensações e das palavras, e a forma como apareceriam e interfeririam na vida real.  
A considerar os escritos de Aristóteles em sua relação com os ensinamentos cristãos, haveria uma nova interpretação, pois o riso humano não é questão de fé, ele existiria como manifestação concreta da divindade e caberia ao homem apenas reconhecê-lo, em si e nos outros, e aprender com isso.
Entretanto,  em outro campo, o da razão, o riso - manifestação divina através de nosso corpo humano -, pode ser reproduzido, como farsa ou busca da perfeição,  através da comédia.
Reside, nestas intervenções do homem - simulacro de Deus -, a forma imperfeita, visto que humana.
Mesmo a dedicação à espiritualidade também não é perfeita, assim como o riso quando restrito à razão humana e não à criação divina: o homem não pode criar os sentidos, apenas dispor deles, nem criar Deus, apenas se unir a ele.
E quanta pretensão dos que, ao mesmo tempo que exaltam a razão como forma de nos assemelharmos a Deus, condenam o riso natural como traço de inferioridade, sem ao menos suspeitarem de que este, escrito na linguagem incompreendida de Deus, inacessível a tais doutores, é entendido perfeitamente pelos simples, a quem foi dado apenas sorver o aroma natural, tocar, ouvir, provar, ver, e sentir!  
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Apontamentos ...
Trata-se de obra de ficção, não guardando estrita conformidade com as anotações nela insertas. 
Demiurgo - No pensamento cosmogônico de Platão, o termo designa o artesão divino - causa da alma do mundo - que, sem criar de fato o universo, dá forma a uma matéria desorganizada imitando as essências eternas, tendo os deuses inferiores, criados por ele, como tarefa a produção dos seres mortais. Wikipédia
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O PROBLEMA DO RISO EM O NOME DA ROSA, DE UMBERTO ECO. Título- The laugh trouble in The name of the rose, by Umberto Eco - Paulo de Góes[a] Doutor em Filosofia pela Unicamp e professor titular da Universidade de Sorocaba. Sorocaba,SP - Brasil,e-mail: lipa@splicenet.com.br
Na obra, especialmente as duas tendências são confrontadas. Uma é a que tem como representante o velho monge e bibliotecário Jorge de Burgos, que define o riso como fonte de dúvida e defende que o mesmo não deve ser livremente permitido como meio para afrontar a adversidade do dia-a-dia, visto que pode ser usado como arma para desacreditar a própria Igreja. Essa tendência é seguida pelos monges que integravam a abadia onde as cenas do romance se desenvolvem. A justificativa teológica (mas não lógica) é a de que o riso mata o temor e isso, por sua vez, impede a fé. Outra é a abordagem fundamentada em Aristóteles e seus comentadores, que teve, ao longo da história, desdobramentos diversos. Essa tendência é representada, no romance, por Guilherme de Baskerville, o arguto franciscano que encara o riso como pertencente à essência do homem, sinal da racionalidade do humano e instrumento para se lidar com as vicissitudes da vida.
Resumo
Umberto Eco, em seu conhecido romance O nome da Rosa, explora a questão referente ao riso, reproduzindo uma velha discussão histórica e filosófica que se reporta ao segundo livro da Poética, de Aristóteles, considerado perdido, no qual o filósofo, ao tratar da comédia, faz uma apologia do riso e suas virtudes. Duas tendências são confrontadas: uma, que tem como representante o velho monge e bibliotecário Jorge de Burgos, que define o riso como fonte de dúvida e defende que ele não deve ser livremente permitido como meio para afrontar a adversidade do dia-a-dia, e outra, representada por Guilherme de Baskerville, fundamentada em Aristóteles e seus comentadores que consideravam o riso como “próprio do homem”, sinal da racionalidade humana. Este artigo tem como objetivo explorar a duas tendências, percorrendo, de modo ligeiro, as páginas do romance, inserindo digressões de ordem histórica e filosófica.
....O Nome da Rosa, Umberto Eco.
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(Fonte: Aqui).

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