Snowden, o filme e os fatos
Por Roberto Jorge Regensteiner
O filme é uma dramatização da história, pois os fatos são narrados por atores. A montagem é digna de um thriller. As interpretações vão de boas a ótimas. Excelentes atores a reencarnar a história. O roteiro escrito e dirigido por Oliver Stone com base em diversos livros, no documentário Citizenfour e, presumo, com a consultoria e assentimento dos personagens reais, inclusive de Snowden, que é mostrado ao final.
Quem acompanha este épico contemporâneo de uma certa distância poderá conhecer muitas novas informações graças ao recheio de fatos, detalhes e footage de mídia da época editados com arte, bom humor e suspense.
A cena inicial abre naquele famoso junho de 2013, quando as denúncias (Nota deste blog: denúncias sobre fatos que expunham o governo norte-americano) vieram a público. A cineasta estadunidense Laura Poitras e o jornalista Glenn Greenwald aguardam a chegada de Snowden no hall de um hotel em Hong-Kong. Após uma espera carregada, ansiosa e cuidadosamente planejada os três se encontram e vão ao quarto dele. Lá se inicia a etapa seguinte da operação: dar a conhecer ao mundo inteiro que o governo dos Estados Unidos invade maciça e sistematicamente a privacidade de governos, empresas e cidadãos. Em nome da luta anti-terror e de objetivos nacionais, a máquina estatal estadunidense se constituiu num ente autônomo em busca do controle e do poder total. Para eles a guerra cibernética já começou.
Toda a narrativa vai e volta a partir desta cena inicial. Os envolvidos discutem a melhor maneira de organizar e distribuir as informações que provam e comprovam graves acusações que, quem sabe um dia, ajudarão a colocar altos funcionários no banco dos réus. A gravação com que Laura Poitras inicia o relato dos fatos, feito por Snowden, se desenvolve numa sequência mostrando o início de sua trajetória. Como tanta gente boa em TI (tecnologia de Informação) ele é um autodidata que não concluiu o ensino formal. O filme apenas arranha a superfície das questões técnicas. Mesmo assim, há situações deliciosas e bem sacadas que não conto aqui para não spoilar.
Apreciadores da História de TI gostarão de um maravilhoso diálogo, em que Nicolas Cage personifica um expert que tentou se rebelar contra os abusos do sistema e foi encostado na "geladeira" de uma escola em que recrutas da CIA, como Snowden, então com menos de 20 anos de idade, eram treinados nos conceitos, nas artes e nas técnicas da guerra cibernética. No desenvolvimento deste diálogo há um vislumbre dos mitológicos 'Enigma', do SIGABA, do ENIAC e do supercomputador Cray, marcos históricos de uma caminhada em que os supercomputadores de outrora tornaram-se insignificantes quando comparados com os atuais smartfones.
As cenas que expõem a etapa inicial do treinamento do futuro agente da CIA mostram, através das aulas e dos relacionamentos com os colegas, como vão se expressando as contradições que opõem o técnico talentoso, cuja carreira profissional a meritocracia corporativa premia e promove, ao cidadão desejoso de fazer o bem e de respeitar a lei.
O drama interior se acentua à medida que Snowden se dá conta do até então insuspeitado grau de intromissão e manipulação que o Estado e o Governo dos EUA promovem na vida das pessoas, abusando da confiança que a população neles deposita, ultrapassando todos os limites imagináveis, destruindo a vida de inocentes e invadindo a sua própria privacidade e a de sua relação amorosa, levando ambos ao limite da desconfiança e do rompimento. Este é o pano de fundo do qual ele, inicialmente, tentará se afastar, trabalhando para empresas privadas e sendo enviado ao Japão em tarefas aparentemente menos invasivas. Posteriormente, constatará que mesmo assim permanece no radar e na teia da CIA e sucumbirá a uma oferta na qual desafios técnicos lhe serão oferecidos sob a nobre roupagem da defesa nacional num posto de trabalho localizado no Havaí.
O desfecho da epopeia se dá quando planejam como realizar a denúncia que - rompendo com o cerco imposto pelo governo - irá desaguar (...) no The Guardian, no Washington Post e, depois, na grande imprensa do resto do mundo. O filme pouco revela da linha de pensamento e ação que o fez vencer uma batalha na qual muitos antes dele sucumbiram. Quando as denúncias começaram a chegar ao grande público, o governo dos EUA moveu mundos e fundos para repatriar Snowden e julgá-lo exemplarmente como traidor. Não pouparam a si próprios do vexame de forçar o pouso do avião do presidente da Bolívia na Áustria, na suposição de que ele estaria clandestinamente a bordo rumo ao Equador. Mostraram assim até que ponto são capazes de desrespeitar as leis quando consideram seu interesse ameaçado.
A capacidade de se preparar para a reação que buscou localizá-lo, prendê-lo e extraditá-lo em Hong-Kong ou onde quer que ele estivesse foi para mim o toque de gênio, o pulo do gato, ainda pouco desvelado deste rapaz que conseguiu expor as entranhas da fera e sair ileso. Nestes tempos de vitórias de Temer e Trump é um estimulante gole de esperança! (Fonte: AQUI).
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