terça-feira, 8 de novembro de 2016

MUITO ALÉM DE HILLARY E TRUMP

Quinho.

Estados Unidos e Brasil: Ame-os ou Deixe-os

Por Leonardo Sakamoto

Tenho uma certa fascinação doentia por observar o comportamento daqueles que veem os Estados Unidos como aquilo que não são, reduzindo um país complexo a uma simplificação barata do que essas pessoas desejariam que ele fosse. Seres que acham que as elites de lá são iguais, que os intelectuais dizem a mesma coisa, que a classe trabalhadora pensa de forma homogênea, que sua sociedade é monolítica.
Se esse pessoal consome notícias para além do que seu best friend forever mandou via redes sociais, deve estar tomando uma saraivada de realidade por conta das repercussões das eleições presidenciais norte-americanas, que reafirmaram a existência de não apenas um, mas de vários países dentro dos Estados Unidos. Diferenças e polarizações que não surgem com Donald Trump e Hillary Clinton, mas sempre estiveram lá.
Da mesma forma que o Brasil não ''rachou'' com a disputa Dilma Rousseff e Aécio Neves. Sempre foi rachado, desde que o primeiro português ordenou que o primeiro indígena carregasse para a sua nau a primeira tora de pau-brasil.
Normalmente, o pensamento simplista e maniqueísta de reduzir um país a uma única ideia também está presente em setores da extrema direita e da extrema esquerda brasileiras – que desejam que os Estados Unidos sejam encarados como um farol a ser seguido ou um inferno a ser evitado.
Um grupo tende a achar que os Estados Unidos é um grande Tea Party, com os políticos defendendo desregulamentação, redução de impostos, privatização e mínima interferência estatal. Esquecem que vira e mexe o Tio Sam enterra bilhões de dólares para salvar bancos e montadoras de automóveis (como a gente faz aqui, aliás, socializando os prejuízos) e que parte considerável do pensamento extremamente crítico ao modo de produção capitalista, que serve como referência para o debate global, surge de instituições e cidadãos de lá.
Outro grupo responsabiliza cada cidadão norte-americano pelo crimes internacionais cometidos pela Casa Branca e pelo Congresso, esquecendo que, se fizéssemos um paralelo, nós, brasileiros, deveríamos ser punidos pelo trabalho escravo, pelo tráfico de seres humanos, pela exploração sexual de crianças e adolescentes, pelos danos socioambientais na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal, pelos indígenas assassinados na luta pela terra (paro por aqui, pois a capivara é longa). Afinal, somos nós que elegemos os governos que fizeram ou mantiveram tudo isso.
Se você realiza uma crítica à política internacional dos Estados Unidos (críticas que, muitas vezes, são também feitas por muita gente do próprio Departamento de Estado), você é um comunista safado que detesta a América ou um hipócrita que critica mas usa produtos de empresas americanas.
Porque, como todos sabemos, aqui como lá, é o ''ame-o ou deixe-o'' cunhado em nossa última ditadura civil-militar.
Se você defende uma ação tomada por alguma empresa de lá em prol do monitoramento socioambiental de suas cadeias produtivas, você é um porco vendido para o império capitalista, um lacaio do que há de pior na burguesia global.
Eu enfrento esses dois discursos rasos quase que diariamente.
Isso quando estamos falando de grupos com pensamento elaborado. Esquisito, bizarro, pitoresco, mas elaborado. Lembrando que boa parte das pessoas nem chega nisso e balbucia ou vocifera argumentos baseados em fundamentos tão reais quanto uma nota de sete dólares ou de três reais.
Se veem uma foto sua em Nova Iorque (uma das cidades mais intensas e complexas do mundo, com um prefeito eleito com discurso progressista, diga-se de passagem), não é porque você foi trabalhar ou passear por lá. Mas sim porque está na cidade apenas para fazer compras. Por que? Porque é exatamente o que essas pessoas fariam.
Porque um paraíso conservador irreal construído a partir de leituras distorcidas dos Estados Unidos é o local onde parte da extrema direita se espelha para construir seu projeto de Brasil. E porque um inferno irreal e fictício é a referência que parte da extrema esquerda utiliza como identidade reativa para construir o seu discurso para o Brasil.
Temos muito em comum com eles e eles conosco. Os desertos alimentares de Baltimore, a herança mal resolvida da escravidão no Mississipi ou superexploração do trabalho na Virgínia Ocidental carregam semelhanças com as nossas pobrezas, com baixo acesso a saneamento e barracos de lata (ao invés dos de madeira das favelas brasileiras). Aqui como lá, a matança de jovens negros faz com que os mais pobres se organizem diante da violência policial e afirmem que ''Black Lives Matter'' ou exigem o ''Jovem Negro Vivo''. O número de sem-teto em Nova Iorque é mais gritante que em São Paulo. Mas os tratamos como lixo da mesma forma.
A busca por soluções, pontuais e estruturais, tem passado por diálogos entre sociedade civil, empresas e governos entre ambos os países que o cidadão comum daqui e de lá, não raro, desconhece.
Não é apenas questão de gente desinformada. Essa divisão da sociedade em quem vê os EUA como paraíso ou como inferno, que confunde políticas do governo ou de Estado com seu povo e que acha que esse maniqueísmo se aplica a tudo acontece com quem vê o debate público como um grande Fla-Flu.
Sei que tentar se informar mais sobre algo antes de emitir juízo de valor saiu de moda. Mas continua super importante. Eu recomendo.
Principalmente quando falamos de um país inteiro com mais de 320 milhões de pessoas. (Fonte: AQUI).

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