Golpe branco no Brasil: Dilma alerta na ONU
Por Carol Proner (Professora de Direito Internacional da UFRJ)
Dilma Rousseff aproveitou a ocasião da cerimônia de assinatura do acordo de Paris sobre Clima, nas Nações Unidas, para dizer “não posso terminar minhas palavras sem mencionar o grave momento que vive o Brasil. A despeito disso, quero dizer que o Brasil é um grande país com uma sociedade que soube vencer o autoritarismo e construir uma pujante democracia. Nosso povo é um povo trabalhador e com grande apreço pela liberdade, saberá, não tenho dúvidas, impedir quaisquer retrocessos”.
Apesar do cuidado com as palavras e de ter escolhido não utilizar, na ONU, a palavra “golpe”, é inequívoca a intenção de trazer luz ao que acontece no país e resistir a um novo tipo de quebra da legalidade que exigirá da Comunidade Internacional formas igualmente inovadoras para preservar a democracia e a segurança dos mandatos governamentais.
A ciência política costuma diferenciar as expressões “golpe de estado” e “golpe branco”. Os primeiros são entendidos como ataque a um líder político e derrubada da ordem constitucional com o uso da força ou violência, normalmente com o apoio das forças armadas. Já o “golpe branco”, gênero do qual decorrem muitas espécies, ocorre quando a conspiração tem por objetivo a ruptura constitucional por meios parcial ou totalmente ilegais embora com aparência de normalidade.
Os “golpes brancos” são novidades, neogolpismos que não obedecem a um único modelo, mas que possuem características semelhantes. São os chamados “golpes dentro da lei” feitos por setores do poder legislativo apoiados em outras instituições do Estado, que dão consecução a uma série de atos de desgaste do poder constituído até o momento da ruptura da legalidade constitucional e a substituição por uma aparente legalidade.
A imprensa internacional vem denunciando cada dia com maior clareza o que reconhece como “golpe parlamentar” no Brasil, compreendendo que a consumação da quebra democrática se verifica na abreviação do mandato presidencial por um Congresso Nacional eivado de ilegitimidade, com mais de 60% dos membros envolvidos em processos de corrupção. Apesar da complexidade dos atores e instituições que compõem a trama do processo de impeachment, incluindo o Supremo Tribunal Federal, não é difícil reconhecer que os mecanismos do “golpe branco” estão em curso pela inexistência de comprovação de tipicidade e autoria dolosa do cometimento de crime de responsabilidade por parte da presidência. E se ainda não está claro para alguns, a história, com o devido distanciamento, comprovará um novo tipo de golpismo, seus inúmeros responsáveis e as consequências trágicas dessa quebra democrática para a sociedade brasileira.
E o caso brasileiro se soma a outros que vêm sendo vividos na América Latina. A região já foi palco de diversos “golpes de estado” violentos, com mando militar, isso durante o combate ao expansionismo comunista na Guerra Fria, resultando na instalação de ferozes ditaduras no Chile, na Argentina, no Uruguai, na Bolívia, que deixaram não apenas feridas abertas, mas também mecanismos civil-institucionais que permaneceram atuando nas transições para a democracia, transições pactuadas e permanências autoritárias em muitos sentidos. No caso do Brasil, há diversos exemplos da legalidade autoritária da ditadura que ainda permanece vigente em forma de decretos ditatoriais, na burocracia verticalizada que rege processos públicos de gestão, entulhos autoritários que na atual crise facilitam a impetração do golpe em andamento.
Antes de destacar as características do processo brasileiro, vale mencionar outros dois casos latino-americanos que fazem parte da safra dos neogolpismos no século XXI. Trata-se do golpe de Honduras em 2009 e do Paraguai em 2012.
No caso hondurenho, recordamos que o pedido de prisão preventiva do então Presidente Manuel Zelaya foi feito pelo Ministério Público alegando irregularidades para a realização de uma consulta popular sobre a realização de uma constituinte, conduta entendida como “traição à pátria” e “subterfúgio para se perpetuar no poder”. Em ação coordenada entre membros das forças armadas, judiciário e legislativo, Zelaya foi retirado de casa ainda de pijama, levado a uma base aérea e colocado em um avião com destino à Costa Rica, ou seja, foi exilado forçosamente contrariando a Constituição do país e abrindo uma crise de grande repercussão internacional denunciada imediatamente por diversos países. Entre tantas minúcias do caso vale destacar o posicionamento dos organismos internacionais e dos Estados Unidos a respeito. O presidente Obama, diante do evidente escândalo, declarou ser um golpe e que mesmo no exílio Zelaya ainda era o presidente de Honduras. O Estado hondurenho foi denunciado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela Organização dos Estados Americanos. O desfecho é complexo, um novo presidente, Roberto Micheletti, assumiu após uma suposta carta de renúncia e a decisão da Suprema Corte hondurenha foi no sentido de que Zelaya incorrera em diversos crimes, aconselhando o Legislativo a afastá-lo do cargo com a respectiva perda de foro privilegiado. Apesar da incisiva pressão internacional para impedir o reconhecimento do novo governo, as eleições do fim de 2009 deram a vitória a Pepe Lomo, que contou com o reconhecimento imediato de muitos países, Estados Unidos, Canadá, Colômbia, Costa Rica, Panamá e Peru. Outros países tardaram a reconhecer, como foi o caso da Argentina, Bolívia, Chile, Cuba, Brasil, Equador, França, Guatemala, Nicarágua, Uruguai e Venezuela, bem como o Mercosul e a UNASUL. No caso do Brasil as relações com Honduras só foram regularizadas em 2011, ano em que Zelaya, que havia permanecido na República Dominicana, pode retornar ao país por meio de processo de Anistia.
No caso paraguaio, o golpe reuniu as forças mais conservadoras do país e mesmo faltando apenas 9 meses para o fim do governo, o processo de impeachment sumaríssimo ocorreu em pouco mais de 24 horas com a acusação de que Fernando Lugo governou de maneira "imprópria, negligente e irresponsável", gerando "constante confrontação e luta de classes sociais, que como resultado final trouxe o massacre entre compatriotas". Vários eram os motivos, mas o principal foi o violento confronto entre trabalhadores sem-terra na região leste do país com o saldo de 17 mortes, sendo 6 de policiais. O Senado concedeu a Lugo o tempo de duas horas para se defender e o condenou por 39 votos contra 04. Por evidente cerceamento de defesa, o presidente ainda tentou impetrar, sem sucesso, ação de inconstitucionalidade perante a Suprema Corte do Paraguai. Mesmo com milhares de pessoas reunidas na Praça de Armas em frente ao Congresso, em discurso pós decisão Lugo figurou como um derrotado que se submeteu ao juízo colegiado entendendo-o como um “mecanismo constitucional”. Nas palavras de Lugo “Não é mais um golpe de estado contra o presidente, é um golpe parlamentar disfarçado de julgamento legal, que serve de instrumento para um impeachment sem razões válidas que o justifiquem." O processo foi considerado ilegítimo pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, tendo gerado crise diplomática com países sul-americanos integrantes da UNASUL, do Mercosul (suspensão do bloco) e da União Europeia. O Paraguai foi denunciando na Organização dos Estados Americanos (OEA) pelo “golpe encoberto” e a então secretaria de estado norte-americana Hillary Clinton manifestou preocupação com os acontecimentos no país. Em abril de 2013 foram realizadas eleições tendo sido empossado o empresário Horácio Cartes e, a partir de então, os países sul-americanos passaram a normalizar a situação de reconhecimento internacional.
Pois bem, o caso brasileiro é bastante diverso em muitos aspectos, mas nem por isso afasta os elementos de uma espécie inédita de “golpe branco”, um golpe travestido de constitucionalidade. A identificação da origem da atual crise brasileira depende do ponto de vista e da ênfase que se quer dar, é complexa e vai de questões sociais, crise econômica, desgaste político até chegar a problemas de geopolítica regional, projetos na área energética e de defesa externa, mas, e sem entrar nas minúcias, o que está evidente é a participação coordenada ou não de diversas instituições do Estado para colaborar com um objetivo-fim: a abreviação do mandato constitucional de Dilma Rousseff, eleita no pleito de 2014 com 51,64% dos votos válidos representando 54,5 milhões de eleitores.
Especificamente o processo de impeachment se alimenta de um desgaste de governabilidade que acontece por diferentes motivos (índice de popularidade em torno dos 10%) mas que se agrava pelo incessante travamento das pautas no Congresso durante os últimos dois anos, afetando principalmente a implementação do plano de austeridade para a recuperação da economia. O comportamento de traição dos partidos da base aliada, especialmente do PMDB, minou forças e acelerou diversas contradições que eclodem agora. Ao mesmo tempo, se intensificaram os resultados parciais da Operação Lava Jato, conduzida pela polícia federal e que apura escândalos de corrupção e lavagem de dinheiro. A investigação revelou uma corrupção sistêmica que envolve mais de 60% do Congresso Nacional, entre os quais o vice-presidente Michel Temer. Segundo a ONG Transparência Global, dos 513 deputados, 303 são investigados por algum crime e no Senado o número ultrapassa os 50%, chegando a 49 senadores entre os 81 envolvidos em alguma investigação.
No caso brasileiro, portanto, o destaque acintoso decorre da inidoneidade de um Congresso engolfado em processos de corrupção, liderado pelo indecoroso e já célebre presidente da Câmara, o deputado Eduardo Cunha (acusado historicamente em diversos processos de corrupção e com contas comprovadas em paraísos fiscais). Se no golpe paraguaio o destaque escandaloso foi o processo relâmpago de 24 horas que expurgou Lugo do mandato constitucional e se no caso hondurenho o destaque foi a expulsão a fórceps do mandatário em pijamas, no caso brasileiro o “Fator Cunha”, o “Fator Temer” e “um Congresso corrupto e traidor” causam perplexidade da comunidade internacional. O aspecto ético é definitivo para demonstrar a injustiça cometida contra Dilma Rousseff, considerada uma mulher honesta e integra.
Mesmo a imprensa conservadora, como é o caso da revista inglesa The Economist, aponta o vexame internacional do impeachment aprovado pela Câmara entendendo que os delitos fiscais atribuídos a Dilma são muito menores que os de seus algozes. A imprensa internacional já questiona a legitimidade de Michel Temer para governar o país, argumento que será suficiente para que não venha a ser reconhecido pelas nações latino-americanas, por países europeus, por membros dos BRICS e provavelmente mesmo pelos Estados Unidos em ano eleitoral.
Mas a complexidade do “golpe branco” no Brasil é imensa e demandará coragem aos que o denunciarem, pois que já se revelam diversos “golpes dentro do golpe” numa espécie de caça às bruxas de tipo constitucional e regulamentar promovidos pelas mesmas instituições que asseguram o processo maior. Há o poder judiciário atuando com um ativismo jamais visto, há o Supremo Tribunal Federal que, se eximindo de responsabilidade quanto ao momento político, limita-se ao exame legalista das matérias que lhe são atribuídas; há também a pronúncia de alguns ministros da suprema corte que, enfáticos, afirmam a constitucionalidade do processo de impeachment, há o ministério público com setores persecutórios enraivecidos ideologicamente, há a polícia federal mais autônoma que em qualquer outro momento da história (mérito do Governo Dilma) e que serve de engrenagem persecutória, há a grotesca manifestação do legislativo oportunista que vive o momento como novas eleições e há, por fim, o mais importante: (...) a mídia golpista trabalhando diuturnamente para que chegue a bom termo a investidura de candidato ligado aos interesses do grande capital.
Por tudo isso, o discurso da Presidenta Dilma Rousseff na ONU, ainda que pouco contundente se comparado a outros momentos nos quais denunciou abertamente sofrer um golpe, representa o sinal oficial que faltava para que o Brasil passe a receber apoios internacionais em decorrência da incidência de Cartas Democráticas e da principiologia basilar do direito internacional, que reconhece a democracia representativa como indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento internacional. (Fonte: aqui).
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