"Em uma conversa de boteco, criei (pelo menos achei que tivesse criado) uma teoria, à moda freudiana, baseada na tragédia Medeia de Eurípedes: o Complexo de Medeia. Depois, em estado de sobriedade etílica, vi que não tinha criado nada, há psicanalistas que já tinham se apropriado desse mito para explicar fenômenos similares das relações humanas. Pois bem!
Medeia foi heroína, feiticeira, estrangeira e esposa repudiada pelo marido, o herói argonauta Jasão, que a traiu com a filha do rei Creonte. Para resumir, e aqui vai o que se costuma chamar hoje de spoilers, Medeia matou os filhos com o fim de vingar-se do cônjuge desleal. Esse filicídio é o auge da trama grega e revela o desejo de uma mulher ferida por vingança.
Voltando àquela mesa de bar, falava aos meus interlocutores ébrios, tomando como régua experiências pessoais e vivências de outros conhecidos, que há uma espécie de configuração psíquica pós-rompimento marital que chamo de Complexo de Medeia. Em outros termos, algumas mulheres (alguns homens também, obviamente) lançam mão do poder sobre os filhos para atingir o ex-cônjuge. Não chegam necessariamente a matá-los (pelo menos, ainda não vi um caso assim no mundo real!). Enfim, no campo de estudos jurídico e psicológico contemporâneos, chamam isso de “alienação parental”.
Com o perdão da Poética aristotélica e com a devida licença à análise freudolacaniana, deixo essas preliminares para os mais experimentados nas respectivas áreas, tanto da literatura quanto da psicanálise. Na verdade, o que interessa aqui é o cenário tragicômico e perverso (beirando a psicose) da política nacional: a disputa pelo poder, a tergiversação traiçoeira do vice-presidente da República. Em uma palavra: o golpe!
Michel Temer traiu Dilma Rousseff como Jasão fora infiel a Medeia. Mas quem é atento à origem dos deuses e heróis gregos faz aqui uma ressalva fundamental: o anti-herói Temer não é herdeiro de um passado glorioso como Jasão. Vá lá que Michel tem um histórico constitucionalista que, pelo que se notou pelos últimos episódios, foi rasgado e jogado na lata do lixo, aliás, como muitos estudantes fizeram com o seu livro da lavra jurídica.
Em que pese esse inventivo e inventado Complexo de Medeia, saliente-se que a presidente Dilma nem de longe assume a postura dramática da personagem euripidiana. Dilma não assassina seus filhos, não mata a democracia nem aniquila o povo e as conquistas sociais.
Dito de outro modo, há aqui um Complexo de Medeia às avessas, pois o famigerado assaltante e anti-herói amesquinhado, Michel Temer, estraçalha de morte os descendentes do Estado Democrático de Direito. É só ler o programa destrutivo do PMDB, “Ponte para o Futuro” (falam nos corredores da Esplanada que é “ponte para o inferno”), para saber que o plano desses argonautas chefiados por Temer é claramente golpista. Eles querem subir à nau da máquina pública para entregar o novelo de ouro das riquezas nacionais aos estrangeiros e almejam entoar o canto dissonante da redução dos direitos sociais e trabalhistas.
Nesse diapasão, é forçoso relembrar a peça brasileira “Gota D’água”, inspirada também na obra de Eurípedes, de autoria dos escritores Chico Buarque e Paulo Pontes. Registro, nesse ensejo, uma transcrição do prefácio desse livro, que faz referência ao tempo de redução democrática:
"O fundamental é que a vida brasileira possa, novamente, ser devolvida, nos palcos, ao público brasileiro. Esta é a segunda preocupação de Gota d'Água. Nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira."
Essa tragédia atual política (ou da política), que sobressai no processo de impeachment da presidente, vai ser a tragédia da vida brasileira, do povo brasileiro, em que se ouvirá, certamente, o grito dos vilipendiados:
“Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água”."
(De Daniel Fernandes, post intitulado "O Complexo de Medeia às avessas na República (a gota d'água)", publicado no Jornal GGN - aqui).
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