A culpa é da falta de assunto
Por Carlos Orsi
Na mídia de língua inglesa, o período do verão -- onde os parlamentos e universidades se encontram em recesso, parte da população urbana fugiu para a praia e as empresas costumam conceder folgas e férias -- é chamado de silly season, ou "estação da tolice": confrontadas com a crise aguda de falta de assunto causada pelo sumiço das principais fontes de pauta (políticos, pesquisadores, empresários) os jornalistas começam a apelar para qualquer tipo de bobagem a fim de vencer a angústia da página (ou tela) em branco.
O Brasil, claro, também tem sua silly season, situação agravada pelo encolhimento radical das redações, encolhimento ainda mais acentuado durante a vigência do esquema tradicional de folgas e plantões de Natal e Ano-Novo. Uma característica da estação das tolices da mídia nacional é sua queda pelo esoterismo. Você sabe que a imprensa brasileira está sem assunto quando videntes e astrólogos tomam conta dos cadernos ditos "de cultura". Lá se vão dez anos desde que o Estadão desperdiçou a capa de seu Caderno 2 com o astrólogo Oscar Quiroga, num vexame que chegou a ser lamentado no Observatório da Imprensa.
Neste ano, a largada veio da Folha de S. Paulo. Sempre que faço apresentações a estudantes universitários, reservo uma lâmina para reconhecer o fato de que a FSP é, hoje, o único diário de alcance nacional a sustentar o esforço de apresentar, pelo menos, uma matéria de ciência em cada edição. Além de ter criado uma coluna (mensal) de astronomia para servir contraponto à coluna (diária) de horóscopo. Mas todo órgão de imprensa é meio esquizofrênico, e a Folha tem o hábito de tratar de temas pseudocientíficos com uma pegada que poderíamos chamar, caridosamente, de "etnográfica": registrando o que as pessoas dizem e acreditam, mas sem submeter as falas e crenças a um exame crítico. Por exemplo:
O problema dessa abordagem etnográfica é que, sob o pretexto de mostrar-se neutra ou imparcial, ela acaba, na verdade, sendo arrogante ("olha no que esses idiotas acreditam") ou condescendente ("esses coitadinhos acreditam nessas coisas malucas, mas são inofensivos") ou crédula ("olha que legal no que essas pessoas acreditam!"). A diferença entre um foco e outro depende do tom adotado pelo repórter, e do trabalho que executa -- conscientemente ou não -- nas entrelinhas. Uma abordagem abertamente crítica, que confrontasse as alegações da fonte de modo claro, poderia, num primeiro momento, parecer hostil, mas no fim acabaria fazendo muito mais justiça tanto à fonte quanto ao leitor.
Mas, voltando à silly season deste ano: a Ilustrada deste sábado nos brinda com meia página, que poderia ter sido dedicada à crítica de um livro ou a uma crônica digestiva pós-festa de Natal, para tratar de um evento que analisou a influência dos astros na obra de grandes escritores. O título, um verdadeiro Everest da criatividade editorial, é "A Culpa É das Estrelas":
O texto em si é, mais uma vez, "etnográfico", tentando assumir um tom entre a descrição jornalística propriamente dita e a crônica -- o objetivo, suponho, era produzir uma leitura agradável, "interessante e gostosa", como se diz, mas que não consegue ser mais do que engraçadinha. E o pobre leitor fica a ver navios: não só do ponto de vista estético (não se trata de uma boa leitura) quanto jornalístico: afinal, o signo dos escritores afeta as características da obra? Se um veículo informativo vai dedicar meia página ao assunto, ele poderia, pelo menos, informar a resposta.
Que o leitor da Folha vai ficar sem saber, mas que é um redondo não. Os detalhes, dou no meu Livro da Astrologia, mas em linhas gerais: qualquer mapa astral pode ser interpretado de modo "compatível" com qualquer pessoa.
Há casos clássicos de mapas astrais que corresponderiam a Lênin e Churchill, só que construídos com base em dados errados, mas que, para os astrólogos que os interpretaram -- sabendo que os mapas deviam ser de Lênin e Churchill -- mostravam claramente as características e os feitos desses dois líderes. E esses são apenas os exemplos mais notáveis.
Que os astrólogos envolvidos no tal evento ignorassem esses fatos (ou preferissem ignorá-los) é compreensível. Que a jornalista, com o compromisso profissional de bem informar o leitor, os ignorasse é um pouco mais difícil de engolir. Mas é assim que funciona a silly season: todo mundo se fazendo de bobo enquanto espera a folga chegar. (Fonte: aqui).
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Entreouvido nos bastidores: "Pode ser, mas não nos esqueçamos: Shakespeare colocou na boca do personagem Hamlet: 'Há mais coisas entre o Céu e a Terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia'..."
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