Ana Luisa Escorel.
Uma premiação surpreendente
Por Walnice Nogueira Galvão
Quem ganhou o prêmio São Paulo/2014 para romance foi o candidato menos provável: Ana Luisa Escorel, autora de Anel de vidro. Conforme ela própria enfatizou no agradecimento, menos provável por três razões. A primeira, porque nunca uma mulher fora agraciada com esse troféu. A segunda, pela proveniência do livro, saído de sua própria pequena editora, quando em geral só as grandes têm seus autores premiados. A terceira, por ser uma estreia tardia, de quem já completou 70 anos. E é um belo prêmio, o maior do Brasil para literatura: R$ 200.000,00. Que ela, certamente, vai investir na editora, que, como todas as pequenas editoras, está sempre se equilibrando na corda bamba.
A autora de Anel de vidro estreou nas letras há pouco, com suas memórias de infância intituladas O pai, a mãe e a filha. Ali, atinha-se à primeira infância, perquirindo os figurantes, as paisagens, os cenários, as travessuras – mas invariavelmente mediante uma observação arguta, até inclemente, não perdoando nada nem aos adultos nem a si mesma ainda menina.
Em 2004, num lance que tanto tem da afoiteza quanto do milagre, fundou sozinha a pequena editora Ouro sobre Azul, ora em franco florescimento, lançando livros sem parar, em caprichadíssimas edições.
Seu temperamento enquanto escritora pende para o analítico, o que já era de notar nas memórias mas se acentua neste romance. Pois estamos às voltas com uma prospecção, desencantada e lúcida, tendo por alvo a descartabilidade do casamento. Já se vê que o título é feliz e mais do que pertinente.
A matéria se organiza conforme uma divisão em quatro partes. Abordando o itinerário de dois casais em arranjos e permutações, cada uma das quatro partes é dedicada a um dos envolvidos. O narrador, que fica de fora, maneja uma terceira pessoa o mais rente possível ao protagonista de cada uma delas.
Assim, temos um romance não-naturalista, que eventualmente efetua mordazes sondagens da categoria “marido”, sobretudo ao sul do Equador.
Privilegiando a análise, o interesse do narrador reside menos nas agruras matrimoniais (não há cenas de briga) do que na verrumação do lento desgaste do pacto que une um casal e daquilo que as pessoas buscam ao substituir um parceiro por outro. No processo, as lentes de um humor tendendo ao ácido tudo permeiam.
Optando por esse caminho, a narrativa vai destoar e divergir do panorama da ficção brasileira contemporânea. Não trata do ego nem de bandidos, não é centrada na própria pessoa do narrador nem se passa na favela. Por outro lado, não é regionalista nem urbano-brutalista, nem histórico nem pós-moderno. E estas são as principais linhas de força das narrativas que percorrem a atualidade. Ainda por cima, não empunha o mal- escrever como bandeira, preferindo a elegância de quem domina seu instrumento e tem intimidade com boa literatura. Ao contrário, parece laborar numa senda original em nossas letras, ao eleger o bem-escrito e o meditado.O narrador gosta de pensar, de refletir, de argumentar, de ponderar várias hipóteses, de ver para onde vai aquilo que era latente ao eclodir. Até a crueldade usa luvas de pelica.
Dessa maneira, Anel de vidro, escolhendo o vínculo mais ou menos duradouro – conforme a perspectiva, mais ou menos volátil - entre mulheres e homens, na craveira do que há de proteico nesse vínculo, debruça-se sobre suas metamorfoses, flagrando um momento de crise da instituição. Romance minimalista, é ousado mas sóbrio, fruto da pena de uma autora que não se intimida com facilidade.
O prêmio é ainda mais surpreendente quando se pensa que o romance, em seu lançamento, suscitou pouco interesse. Afora press-releases e resenhas pouco expressivas, artigo propriamente dito só houve o de quem assina estas linhas, de página inteira em O Estado de S.Paulo. Agora as coisas já mudaram, e dá para perceber que a repercussão tem-se expandido sensivelmente. Boas novas, e muito merecidas. (Fonte: aqui).
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Sempre é tempo de escrever.
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