Ilustração: Carlinhos Muller.
Painel Santa Ceia da Bossa Nova - Tom Jobim, João Gilberto, Ronaldo Bôscoli, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Baden Powell, Vinicius de Moraes, Newton Mendonça, Elizeth Cardoso, Marcos Valle, Nara Leão, João Donato e Johny Alf.
1.
“Quando a Bossa Nova surgiu houve uma grande mudança, uma sofisticação que atingiu a letra, a harmonia e a melodia. Antes, havia melodias bonitas, produzidas por Ary Barroso, Custódio Mesquita, Dorival Caymmi, este, uma espécie de precursor da Bossa Nova.
Havia muita gente importante, como Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Dircinha e Linda Batista. Isso era a grande música popular brasileira. Era a música popular mesmo, porque a Bossa Nova, para mim, é música popular de câmera, não é música popular.
A Bossa Nova foi um tipo de música feita pela classe média para atender a própria classe média. Quando se fala de influências houve a do impressionismo europeu e do jazz norte-americano.
O que diferenciava a harmonia da Bossa Nova da harmonia tradicional? Era alguma coisa elaborada, com elementos do jazz e do impressionismo na parte técnica. A melodia também ganhou uma sofisticação, algo blue note, com muita nota alterada, coisa que o povo não cantava. As melodias do povo são mais simples. Por incrível que pareça, as harmonizações passaram também a dar uma nova cara harmônica às músicas antigas, as populares.
Na letra, Vinícius de Moraes e os demais letristas - entre os quais, eu me incluo - tiraram aquele clima de tango e de bolero, um gosto bem latino-americano, para fazer algo mais leve, mais relacionado com certos textos das comédias norte-americanas e europeias...”
(Depoimento de Carlos Lyra a Almir Chediak, no Songbook Bossa Nova).
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2.
Giovanna Castro - O filme Coisa mais linda é uma evidente celebração dos tempos da Bossa Nova, mostrando depoimentos de artistas da época e referências a todos os participantes, num clima muito festivo, otimista e romântico. Em que medida o fato de o movimento ter saído quase integralmente de cabeças mais abastadas justifica toda aquela alegria?
Carlos Lyra - Tenho que explicar que movimento é algo como a Tropicália, que foi pensada, planejada e tinha até manifesto. A BN nasce espontaneamente. Eu e Tom Jobim achávamos que seríamos arquitetos, João Gilberto não pensava em ser músico. Tudo aconteceu de surpresa, em virtude da economia que vinha tomando impulso no Brasil nos anos 50 e 60. O filme reflete a economia da época, que era sólida, a política era tranqüila - duas vezes o exército impediu o golpe militar da Aeronáutica - e veio junto uma cultura espetacular que ainda tinha o Cinema Novo, o Teatro de Arena e o Teatro de Vanguarda. E até no esporte íamos bem com Maria Esther Bueno ganhando no tênis e o futebol ganhando a Copa de 58. A Bossa Nova é cultura da classe média brasileira, não é uma música de geração, se fosse já teria acabado. Tanto que a BN tem dificuldade de se comunicar com o povão e eu acho isso um equívoco. Se cultura for coisa de elite, estamos perdidos. Vamos fechar universidades, ser analfabetos? Mas ninguém tem culpa da Bossa Nova ter nascido da classe média e do samba ter nascido do povo.
GC - O que aconteceu com esse clima quando a situação política se acirrou em 64? Por que a opção por não se posicionar politicamente de uma forma mais incisiva?
CL- Em 64 todos saíram do país correndo. Eu, que fui fundador do Centro Popular de Cultura (CPC) - todos sabem que sou mais identificado com a esquerda -, saí e mesmo os que não se identificavam saíram. Não havia condição de resistência. Na noite que tomaram a UNE, até fomos armados, mas quando Jango foi para o Uruguai desanimamos e vimos que não tinha condição de enfrentamento.
GC - Quando a Tropicália invadiu o cenário, vocês inevitavelmente saíram do foco da mídia. Como receberam essa perda de visibilidade?
CL - Gil e Caetano ouviam meus discos o tempo inteiro e se dizem herdeiros da Bossa Nova. A Tropicália era o lixo da Bossa Nova, eles mesmos diziam isso. Foi uma tentativa muito válida e interessante de dar um passo à frente, como vai ter que ter sempre. A Bossa Nova nasce no governo Juscelino e a Tropicália nasce na ditadura militar. A intenção era maravilhosa, mas não chegou a ser o que eles queriam. Qual é a filosofia, o que é a música? Ninguém sabe o que ficou, a Bossa Nova é clara. Sobraram as cabeças de Caetano e Gil. A Tropicália não foi definitiva e aceito que me convençam do contrário. Já a nossa perda de visibilidade foi natural. Com a ditadura, acabou a cultura que era limpa e transparente. Desde o golpe que a cultura brasileira foi lá pra baixo e lá está até hoje. A Tropicália era nova, revolucionária, sem ser tão agressiva politicamente. Mexia menos com a ditadura que com os valores estéticos. Tudo era mais interessante para a mídia do que a postura contra a ditadura.
GC - O filme mostra que os garotos da Bossa Nova interagiam com a geração anterior na figura de artistas como Silvinha Telles, por exemplo, que foi uma das primeiras a cantar as músicas de vocês. Essas duas visões se complementaram?
CL - Tínhamos a mesma postura e as mesmas influências de Vila Lobos, Ravel, Debussy, jazz americano, Johnny Alf, Dick Farney, Lúcio Alves, Dolores Duran. Mas com a nossa geração, a Bossa Nova se assentou. Eles já vinham tentando fazer acordes modernos e a coisa se cristalizou em 1959, quando foi lançado o disco Chega de saudade, que tinha todas as manifestações da Bossa Nova e ainda a interpretação de João Gilberto.
GC - Você diz que a Bossa Nova é música de classe média brasileira. Como explica a demanda de ouvintes de outros países por esse produto nacional?
CL - Na camada da população que tem poder aquisitivo e cultural, que elege os governantes, determina o pensamento, pessoas que tem informação, que vão à universidade. A classe média não é uma coisa brasileira, tem a ver com um sentimento burguês, como Marx dizia. A Bossa Nova é o discreto charme da burguesia (cita Luis Buñuel). Os japoneses entendem o que se está falando, eles querem ouvir o som do Brasil, e em português. É o mesmo sentimento e eles tentam fazer igual. (Para continuar, clique aqui).
(Entrevista concedida por Carlinhos Lyra em Salvador à jornalista Giovanna Castro para o jornal Folha da Bahia - 18.08.2005).
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