segunda-feira, 28 de abril de 2014

CRIMES DE CHUMBO


"Vamos supor que um torturador de outrora quisesse eliminar dois dos seus congêneres, de tal forma que o assassinato não viesse a ser imputado nem a ele, nem a outros veteranos da repressão ditatorial.

Um dos alvos, porque estava próximo da morte e mantinha um minucioso arquivo sobre agentes do Estado que cometeram crimes contra a humanidade, como os cometeram, quem foram suas vítimas, que fim tiveram os respectivos restos mortais, etc. Sabia-se lá quem ficaria com tal arquivo quando ocorresse sua morte natural e qual o destino que a ele daria. Daí a conveniência de antecipar o desfecho, para o poder administrar convenientemente, só permitindo que viessem a público informações tornadas inócuas pelo passar das décadas.

Outro, porque dera com a língua nos dentes num palco iluminado e, mesmo que não voltasse a fazê-lo (deixara de identificar comparsas vivos, mas poderia mudar de ideia), constituía-se num péssimo exemplo. Quantos pés na cova com os mesmos antecedentes não estariam queimando de inveja da notoriedade que ele alcançara? Para certo tipo de pessoas, serem relegadas ao esquecimento incomoda muito mais do que serem lembradas como ogros...

Como dizia o Dadá Maravilha, para toda problemática existe uma solucionática.

O hipotético torturador de outrora certamente conheceria bem um universo contíguo, o da contravenção, nele sentindo-se como um peixe dentro da água. Lembrem-se:

- o famoso delegado Sérgio Fleury, nos tempos em que chefiava o famigerado Esquadrão da Morte, estava a serviço de um grande traficante, liquidando apenas seus concorrentes, enquanto fingia exterminar os bandidos em geral;

- os torturadores da PE da Vila Militar (RJ), oficiais inclusos, quando começaram a escassear os proventos da repressão à guerrilha (as recompensas recebidas de grandes empresários e a rapinagem dos bens apreendidos com militantes), não só se tornaram parceiros de contrabandistas da região como tentaram passar-lhes a perna, tomando sua muamba à bala;

- um destes oficiais, o Capitão Guimarães, não se conformou de, desmascarado, haverem aliviado para ele no sentido de salvar as aparências mas ter-se tornado um pária na caserna --optou por dar baixa e iniciar uma bem sucedida carreira como bicheiro de Niterói, acabando por se tornar um dos maiores chefões do crime organizado.

Então, para alguém da laia de um antigo torturador da ditadura militar, nada mais fácil do que encontrar ladrões homicidas aptos para tais missões e passar-lhes a dica de que os oficiais da reserva em questão possuíam bens valiosos, como coleções de armas, estando praticamente indefesos.

Com a recomendação expressa de que os mesmos deveriam ser assassinados, e ninguém mais.

Com a advertência expressa de que, se caíssem presos, não deveriam de forma nenhuma incriminá-lo, caso contrário sua rede (de veteranos dos porões e novos fanáticos do extremismo) cuidaria para que fossem mortos no cárcere.

Foi assim que as coisas se passaram? Se non è vero, è ben trovato, como dizem os italianos... ".


(Celso Lungaretti, em seu blog Náufrago da Utopia. O post, intitulado "Como um antigo torturador cometeria o crime perfeito", foi produzido após a morte/execução do coronel reformado Paulo Malhães, ligado ao desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva em janeiro de 1971 e que ofereceu recentemente, à Comissão da Verdade, informações sobre centros de tortura geridos por agentes do Estado. A execução de Malhães se alia à do coronel da reserva Julio Miguel Molina Dias, ocorrida em novembro de 2012, em Porto Alegre. Molina foi chefe do Departamento de Operações de Informação do DOI-Codi no Rio e detinha informações acerca do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva. Em ambos os casos, teria havido tentativa de roubo de arsenal de armas que os militares colecionavam em sua residência, havendo, porém, quem discorde de tal versão).

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