"Eu não seria capaz de ler de novo 'As Veias Abertas...', cairia desmaiado".
Galeano e "As Veias Abertas..."
Por Cynara Menezes
Em 1998, entrevistei a escritora Rachel de Queiroz (1910-2003) e ela me
confessou sentir “antipatia mortal” por O Quinze, o clássico da literatura
brasileira que publicou aos 20 anos, em 1930, e que, desde então, seria sua
“obra mais importante e mais popular” (tudo quanto é enciclopédia se refere
assim ao livro). O mesmo acontece com As Veias Abertas da América Latina e o
escritor uruguaio Eduardo Galeano. Publicado em 1971, quando Galeano tinha 30
anos, a obra até hoje o persegue. É sempre nomeado como “o autor de As Veias
Abertas…“, o que, pelo visto, o incomoda –mesmo porque tem mais de 30 livros
além dele.
Na entrevista coletiva que deu na sexta-feira
11 em Brasília, onde veio para ser o escritor homenageado da 2ª Bienal do Livro e da
Leitura, Galeano ouviu provavelmente a milionésima pergunta sobre Veias
Abertas. “Faz 40 anos que você escreveu As Veias Abertas da América Latina.
Quais são as veias abertas hoje em dia?” E ele, em um português bastante
razoável: “Seria para mim impossível responder a uma pergunta assim,
especialmente porque, depois de tantos anos, não me sinto tão ligado a esse
livro como quando o escrevi. O tempo passou, comecei a tentar outras coisas, a
me aproximar mais à realidade humana em geral e em especial à economia política
–porque As Veias Abertas tentou ser um livro de economia política, só que eu
ainda não tinha a formação necessária. Não estou arrependido de tê-lo escrito,
mas é uma etapa superada. Eu não seria capaz de ler de novo esse livro, cairia
desmaiado. Para mim essa prosa de esquerda tradicional é chatíssima. O meu
físico não aguentaria. Seria internado no pronto-socorro… ‘Tem alguma cama
livre?’, perguntaria.” Risadas.
Aproveito e emendo: mas o que você achou
de Chávez dar o livro para o Obama? Obama entenderia As Veias Abertas…? “Nem
Obama nem Chávez”, responde Galeano para gargalhada geral. “Claro, porque ele
entregou a Obama com a melhor intenção do mundo –Chávez era um santo, cara mais
bondoso que esse eu não conheci–, mas deu de presente a Obama um livro em uma
língua que ele não conhece. Então, foi um gesto generoso, mas um pouco
cruel.”
Eu nunca tinha visto o grande escritor uruguaio de perto. É mais
baixo do que imaginava, cerca de 1m70. Bastante frágil, aparenta ter mais do que
seus 73 anos. Ele mesmo comenta que a maioria dos escritores é de esquerda e,
como tal, chegados a uma boemia e isso não faz bem à saúde… Uma menina pergunta:
“A idade não é boa para os jogadores de futebol. E para os escritores?” Galeano
discorda. “Depende. Tem velhos muito mais jovens que os velhos velhíssimos e tem
velhos que você acha que estão esperando a morte e surpreendentemente acabam
ganhando uma partida por 8 a zero. Não depende da biologia nem do prognóstico
dos profetas. Não depende de ninguém. O melhor que o futebol tem como esporte –a
festa que o futebol é, a festa das pernas que jogam, a festa dos olhos– é a
capacidade de surpresa, de assombro. Na verdade ninguém sabe o que vai
acontecer. E menos ainda os especialistas. Aqueles doutores do futebol são seres
temíveis, perigosíssimos para a sociedade e o mundo em geral.”
Outro
jornalista espeta: “Por que a esquerda não deu certo na América Latina?” Galeano
não se faz de rogado: “Algumas vezes deu certo, algumas vezes, não. A realidade
é mutável, a realidade política e todas as outras –por sorte. Senão seríamos
estátuas, estaríamos congelados no tempo. Não é verdade que a esquerda não deu
certo. Deu certo e muitas vezes foi demolida por ter dado certo, por ter tido
razão, porque o que a esquerda predicou, em certo momento na América Latina,
resultou ser a verdade, então foi punida. Punida pelos golpes de Estado,
ditaduras militares, períodos prolongadíssimos de terror de Estado, crimes
horrorosos cometidos em nome da paz social, do progresso. Da convivência
democrática, imaginem! Que democracia e que convivência são essas? Tinham que
perguntar: ‘do que está falando, senhor?’ As coisas são muito mais complexas do
que parecem. Em alguns períodos, também, a esquerda comete erros gravíssimos e
em outros, não, faz o que deve ser feito da melhor maneira, até além do que o
próprio movimento de massas estava esperando. A realidade sempre tem esse poder
de surpresa. Te surpreende com a resposta que dá a perguntas nunca formuladas. E
que são as mais tentadoras. O grande estímulo para a vida está aí, na capacidade
de adivinhar possíveis perguntas não formuladas.”
Galeano está cansado,
foram muitas horas de viagem para chegar à capital federal, e quer encerrar a
entrevista. Eu protesto: “Mas e Mujica? Você não vai falar de Mujica?” Ele não
resiste e se senta de novo. “Estou meio cansado, estou fatigado de falar de
Mujica, porque todo mundo fala dele! Até em outros planetas se fala de Mujica.
Em Marte, Júpiter… É incrível a capacidade de ressonância que Mujica tem. E ele
é muito meu amigo, já faz muitos anos. A única coisa que posso fazer para
incorporar um grão de areia a esta praia imensa de Mujica caminhando pelo mundo
seria contar uma piccola história que dá ideia da qualidade humana do
personagem.”
E começou a narrar, saborosamente, como é de seu
feitio:
“Faz uns quatro anos –não tenho interesse em lembrar direito
a data– fui operado de câncer. Foi um câncer sério, agudo. Tomei uma anestesia
muito forte, dessas que não desaparecem rápido. E estava sozinho na cama do
hospital, esperando que passasse o efeito da anestesia. Ou seja, mais dormido do
que acordado. Sem saber muito o que acontecia, onde estava, delirando. E neste
período, estando sozinho em uma cama –sozinho, não, acompanhado pelo câncer, mas
o câncer não é um amigo confiável. Não te recomendo. Bem, estava eu ali e volta
e meia delirava. Como sou muito futeboleiro, um religioso da bola, tinha
delírios futebolistas que me levaram aos anos de infância, quando jogava na rua,
com bolas improvisadas, feitas com trapos velhos. E em uma dessas fugas, comecei
a bater bola. Como se fosse uma múmia egípcia que tinha errado de domicílio,
jogando futebol contra ninguém e sem bola nenhuma, só na imaginação. Chutava a
bola e ela voltava, chutava e ela voltava. Tudo debaixo do lençol. E nada, a
bola continuava, como se estivesse morta de riso da minha estupidez de achar que
podia com ela. ‘Não, você não pode comigo’. Numa dessas, senti um peso em cima
dos meus joelhos. Aí começo a recobrar a realidade e vejo alguém que conheço,
uma voz que reconheço, de um amigo. E pergunto:
–O que você está fazendo
aqui?
E ele:
–Isso é maneira de receber um amigo?
–Não
importa, quero saber o que você faz aqui. Está doente também?
–Que é
isso, estou saudabilíssimo. O enfermo é você.
–Estou sabendo. Obrigado
pela notícia, mas já estou sabendo.
–O doente é você, está fodido, irmão.
Eu vim te visitar. Agora, não sabia que se recebia um amigo assim, chutando-o,
chutando-o e chutando-o. Não é muito educado.
Continuamos nessa até que
eu falei:
–Olhe, chega. Sua função não é estar aqui brincando comigo.
Você é o presidente da República e sua função é governar. Mujica, você é o
presidente! Vai governar este país já! Estamos precisando de sua participação
ativa, desinteressada, importantíssima para o nosso povo. Não perca mais tempo
comigo.
–Ah, bela maneira de ser amigo, hein?
–Será bela ou será
feia, mas é a única maneira para você. Você é o presidente! Além disso, para
piorar, todo mundo gosta de você e quer que continue sendo presidente por uns
300 anos mais. Se você não gosta, foda-se.
E aí acabou.”
Na
saída, consigo falar a Eduardo Galeano do enorme prazer que sinto em conhecê-lo
pessoalmente e lhe conto que adoro O
Livro dos Abraços. Ele olha para mim e diz: “Eu também”.
Ufa.
................
(Fonte: aqui).
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