terça-feira, 3 de dezembro de 2013

AFOGADOS NO INDIGESTO CALDO DE CULTURA


A geração escoliose e seus temíveis espertofones

Por Dafne Sampaio

Entrei no ônibus e eles estavam lá, hipnotizando metade dos passageiros. Pouco depois desci, peguei o metrô e a cena se repetiu: homens e mulheres de todas as idades e jeitos quase todos de corpos curvados, olhando para baixo a passear com seus dedos por espertofones e tablets de última e não tão última geração.
Tem sido assim no mundo todo e a tendência é aumentar e se multiplicar em inúmeras plataformas. Talvez daqui a alguns anos essa gente ganhe corcundas e seus descendentes já nasçam assim, ou talvez voltem a ficar eretas. Vai saber o que pode acontecer.

Mas contrariando as lamentações dos saudosistas essas pessoas curvadas continuam interagindo, talvez até mais, só que com pessoas que não estão ali fisicamente, olho no olho. Isso é bom por alguns lados, afinal as informações navegam mais rapidamente e com menos interferências e, efetivamente, é possível conhecer mais pessoas e posteriormente trazê-las para a vida real. O lado ruim, pelo menos um deles, é que essa virtualidade transforma tudo em imagem, desmaterializa. Imagem não grita, não chora, não revida. Dá pra torcer e retorcer uma imagem.

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Essa desumanização, que já acontece no universo muito real do nosso cotidiano - pensem nos invisíveis moradores de rua, por exemplo, ou em minorias que tem negados direitos essenciais -, ganhou novas e absurdas fronteiras no vasto mundo da internet. Agora, acrescente nessa receita pitadas industriais de machismo e o resultado são suicídios, traumas, famílias em pedaços.

Nesta semana, um garoto menor de idade de Manaus publicou no Facebook um vídeo curto de uma singela orgia de três caras e uma garota. Nada errado no ato em si. Sexo é divertido, é saudável, é massa. Sendo consentido por ambas as partes, claro. Mas aí no final do vídeo a garota percebe o celular e pergunta: “Você não tá tirando fotos, né?”. Não, ele estava filmando mesmo e depois publicou na rede social. Antes de ser tirado do ar, o vídeo já possuía mais de 2000 compartilhamentos e a maioria dos comentários reprovava o comportamento da garota. Poucos falavam da atitude cretina do garoto de postar o vídeo.

Até onde sei, a garota de Manaus tirou de letra os insultos machistas de homens e mulheres. Não aconteceu o mesmo com Giana Laura Fabi (16 anos, Veranópolis, RS) e Júlia Rebeca (17 anos, Parnaíba, PI). Ambas foram vítimas de vídeos compartilhados em espertofones pelo programa Whatsapp e não aguentaram os julgamentos, os insultos, a vergonha. No Twitter, Giana escreveu “Hoje de tarde dou um jeito nisso. Não vou ser mais estorvo pra ninguém”, enquanto Júlia disse que “É daqui a pouco que tudo acaba. Eu te amo. Desculpe não ser a filha perfeita, mas eu tentei... desculpa, desculpa, eu te amo muito. Eu tô com medo mas acho que é tchau pra sempre”. As duas suicidaram. Outra vítima no Whatsapp, a goiana Fran, não se matou, mas “morreu em vida”.

Para esses machinhos exibicionistas que jogaram os vídeos na rede – e para todos e todas que compartilharam – essas garotas não passam de carne, de imagem de carne. E a intimidade tem que ser compartilhada para risos, escárnios e ofensas. Se algo sair do controle sempre é possível apelar para um “fui mal interpretado(a)”, “era só uma piada” ou “não achei que fosse acabar desse jeito”, como qualquer Danilo Gentili ou Rafinha Bastos da vida boçal.

Claro que machismo, intolerância, ignorância e espírito de linchamento não são invenções da internet. São coisas que andam dentro da gente desde que tivemos a brilhante ideia de descer das árvores. Mas essa geração escoliose e seus espertofones conectados deram velocidade a um certo vazio ético. Quem está errado é quem compartilha intimidades sem consentimento. Não quem faz ou gosta de sexo. E muito menos meninas tão jovens que só estão descobrindo e experimentando do mesmo modo que os meninos. “Nossa sociedade costuma julgar as mulheres. É como se o sexo denegrisse a honra delas”, disse o deputado federal Romário, que apresentou no fim de outubro ao Congresso um projeto de lei que transforma em crime a divulgação indevida de material íntimo.

Enquanto isso, enquanto essa geração de tortos afetivos não levantar os olhos de seus espertofones para ver o quanto de sentimentos, sonhos e desejos estão ao seu redor e lá também, dentro de seus aparelhinhos, todos serão culpados por histórias tristes como as de Giana, Júlia e Fran. Porque uma imagem é sempre mais que imagem, sexo é ótimo e respeito é pra quem tem. Simples assim. (Fonte: aqui).

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Ao que se vê, estamos afogados no que se poderia chamar de indigesto caldo de cultura, em que se misturam ingredientes diversos, como: imediatismo, consumismo (e/ou a frustração por não poder consumir no "nível esperado"), individualismo, perniciosa influência da mídia (que ilude magistralmente o imediatista leitor - muitas vezes sem saco, paciência e/ou bagagem para analisar criticamente as 'pregações'), abominação de toda e qualquer iniciativa social estatal, pecha de 'anacrônico' lançada sobre qualquer mortal que se importe com mazelas sociais (social!, sociais!, pô, que chatice!!), enfim, a simbiose entre 'vitória' e 'sofisticação'. E a consequente convicção de que, se não entrou no jogo, é reles fracassado. Eis o campo de atuação ideal para os espertofones: há a situação vivenciada, de repente o 'estalo' e a materialização do impulso: tudo nas redes, em tempo real. Imagens, como destacado no texto acima, palavras, como os impropérios em série a propósito da morte de Marcelo Déda, governador de Sergipe, que estão a pulular não só nas redes sociais, mas também, e com a mesma virulência, nos jornalões e seus portais. 

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