domingo, 17 de novembro de 2013
O QUE ALIMENTA A ESPIONAGEM
O medo da queda e o império do medo
Por Fábio de Oliveira Ribeiro
As revelações feitas por Edward Snowden sobre o uso da internet para coleta de dados dos cidadãos, empresas e governos de todo o mundo é a face mais visível de um grande problema que a mídia se resolve a encarar. A mídia até tem dado notícias bastante acuradas sobre a crise diplomática envolvendo a atividade da NSA e sobre as conseqüências pessoais que Snowden está sofrendo em razão de vazar dados sigilosos de seu país, mas sob a superfície dos fatos há algo maior. A cultura do medo que levou o governo dos EUA a criar os super bancos de dados com finalidades evidentemente policialescas e imperiais.
Medo é um sentimento a que todos os seres humanos estão sujeitos. Alguns sentem mais medo do que outros. Com treinamento adequado, as pessoas podem enganar ou controlar o próprio medo. Mas o medo é e sempre será uma variável importante e imprevisível do comportamento humano, pois ele não deixa de existir nem mesmo quando seus efeitos ficam temporariamente suspensos em razão do uso de drogas.
O medo produziu as primeiras lanças de madeira e machados de pedra. Ele instigou os seres humanos a aperfeiçoarem seus armamentos até que os mesmos se transformassem no que são hoje. Mesmo assim, a insegurança nunca abandonou os homens em armas. Na verdade o medo que alguns desejam produzir em outros sempre volta a crescer dentro deles quando eles descobrem que os “outros” conseguiram equivalência ou superioridade bélica (impulsionados que foram pelo temor).
É assim que o medo se transforma em cultura automatizando os comportamentos até que ninguém mais questione como e porque se tornaram escravos dos seus próprios temores. Ao tratar do medo das drogas nos EUA, por exemplo, Barry Glassner constatou que o uso de drogas legais é socialmente mais relevante que o tráfico de entorpecentes. Segundo ele mais “...americanos usam drogas lícitas por razões não-médicas do que usam cocaína ou heroína; centenas de milhões de indiciamentos são usados de modo ilícito todos os anos. Mais da metade das pessoas que morrem por problemas médicos associados a drogas ou buscam tratamento para esses problemas estão consumindo medicamentos vendidos com receita. A própria American Medical Association estima que um entre 20 médicos seja completamente negligente na prescrição de medicamentos, e, de acordo com a Drug Enforcement Agency (DEA), no mínimo 15 mil médicos vendem receitas ilegais. No entanto, menos de 1% do orçamento relativo ao combate às drogas destina-se ao controle do uso abusivo de medicamentos vendidos com receita.” (Cultura do Medo, editora Francis).
Isto, porém, não desperta o interesse dos jornalistas norte-americanos, quer porque os laboratórios gastam bilhões em propaganda quer porque existe uma “...dependência dos políticos em relação à indústria farmacêutica para o levantamento de fundos para campanhas eleitorais e a dependência da imprensa em relação à mesma indústria para receitas publicitárias têm algo a ver com aquelas formas de consumo abusivo que eles deploram.” (Barry Glassner, Cultura do Medo, editora Francis).
Em seu livro, Glassner não se referiu aos temores inspirados pela internet. Mesmo assim, podemos perfeitamente imaginar que eles existem e também estejam na origem das iniciativas governamentais que levaram os EUA a coletar massivamente informações ao redor do planeta para estocá-las, analisá-las e utilizá-las quando necessário. O suposto combate ao terrorismo tem sido a maior justificativa dada pelas autoridades norte-americanas para o imperialismo virtual após os vazamentos feitos por Snowden.
As relações cordiais entre os gigantes da internet e a estrutura bipartidária dos EUA provavelmente ajudaram a construir este novo pesadelo orwelliano. Como os laboratórios farmacêuticos mencionados por Barry Glassner, empresas como Facebook, Microsoft e Google certamente fazem doações de campanha. O fornecimento de informações à NSA seria apenas outra maneira de, sem custo econômico, essas corporações se aproximarem do governo e do Estado norte-americanos para que ambos, em retribuição, cuidem bem e melhor dos interesses comerciais do Facebook, Microsoft e Google dentro e fora dos EUA.
Isto só, entretanto, não explica todo o fenômeno. Sob o temor do terrorismo virtual, pode existir outro temor maior a justificar a ilegal e perigosa espionagem massiva, empresarial e governamental realizada pelos EUA: o medo da queda.
Após o fim da II Guerra Mundial, os EUA foram alçados ao status de potência global, como o único país industrial, comercial e militarmente desenvolvido que não sofreu graves consequências do conflito em seu próprio território. Durante algumas décadas os EUA produziram a maior fatia do PIB mundial, desfrutando os benefício de ser o líder inconteste do então chamado mundo livre. Mas isto começou a mudar e hoje a participação daquele país no PIB mundial é bem menor do que já foi (http://www.redesist.ie.ufrj.br/p8/semi/sld_pdf/d13/SP%201/Luis_Fernandes.pdf).
As guerras norte-americanas se tornaram mais frequentes após a década de 1980, quando a participação dos EUA no PIB mundial começou a declinar, do que eram no período de hegemonia econômica inconteste daquele país. Portanto, o declínio da importância econômica dos EUA coincide mais ou menos com a intensificação das ações bélicas daquele país.
A partir da década de 1990 começamos a ver com muito mais frequência american movies que veiculam uma nova ideologia: a de que as autoridades norte-americanas (judiciárias, policiais, militares, diplomáticas e, obviamente, da obscura esfera de espionagem) tem competência para atuar em qualquer lugar do planeta. Quando não estão caçando inimigos dos EUA, os heróis norte-americanos combatem tiranos e terroristas estrangeiros ou bandidos norte-americanos que atuam fora do país.
É preciso prestar atenção às agressões simbólicas reiteradas produzidas e distribuídas pela indústria cultural dos EUA. Afinal, o imperialismo é uma ideologia construída na e pela cultura e alimenta-se dela desde o século XIX. Como bem observou Edward W. Said:
“... muitos objetos estéticos grandiosos do imperialismo são relembrados e admirados sem a bagagem de dominação que carregaram entre sua gestação e apresentação. No entanto, o império ali permanece, na inflexão e nos traços, para ser lido, visto e ouvido. E por não levarmos em conta as estruturas imperialistas de atitudes e referências que eles sugerem, mesmo em obras como Aida, que parecem não guardar relação com a luta pelo controle territorial, reduzimos tais obras a caricaturas, refinadas talvez, mas ainda caricaturas.” (CULTURA E IMPERIALISMO, editora Companhia das Letras).
No mundo dos fatos esta ideologia (o imperialismo) também produziu conflitos diplomáticos entre o Brasil e os EUA desde a década de 1980. Em entrevista dada a jornalista Maria Helena Tachinardi, publicada no livro A GUERRA DAS PATENTES, o embaixador Brasileiro Paulo Tarso Flecha de Lima afirmou que:
"O Brasil teve um ato de coragem de questionar a abrangência do ´trade bill´ americano. Foi na época, inclusive, em que começaram aquelas interpretações esdrúxulas do Willian Barr, que agora é ´attorney general´, de que a legislação americana tinha irradiações extraterritoriais para permitir alcançar o seu infrator fora da jurisdição estritamente territorial." (GUERRA DAS PATENTES, editora Paz e Terra).
Esta tendência dos EUA de ignorar a soberania dos outros países ganhou corpo e forma na última década.
O Patriot Act de George W. Bush Jr. (http://epic.org/privacy/terrorism/hr3162.html).
Ao ler com atenção essa lei norte-americana percebemos uma característica evidente e interessante: a legitimação implícita da violação da soberania de outros países.
O uso de expressões como "...violação das leis criminais dos Estados Unidos ou de qualquer Estado..." e "...leis criminais dos EUA ou de qualquer Estado..." indica claramente que as autoridades norte-americanas se auto-atribuíram o poder de aplicar sua legislação em qualquer lugar do planeta e de fazer cumprir a legislação de outro Estado que se recuse a fazê-lo. Portanto, sob a ótica desta norma nenhum Estado é soberano exceto os EUA.
O Direito Internacional, porém, reconhece a soberania dos países que são membros da ONU. A violação ao princípio da auto-determinação dos povos, tutelado pela legislação internacional, somente é possível e legítima quando autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU ou em legítima defesa caso o país seja atacado militarmente sem autorização daquele órgão. Não há dúvida, portanto, de que existe um conflito aberto e intencional entre esta Lei norte-americana (que tutela uma suposta ação extraterritorial legítima das autoridades norte-americanas) e a Lei Internacional (que assegura a soberania dos países que fazem parte da ONU).
A intencionalidade do conflito é importante e foi ressaltada por dois motivos. Primeiro, porque a Lei Internacional é anterior ao Patriot Act. Segundo, porque os EUA é membro da ONU desde sua criação e seus diplomatas negociaram o conteúdo da Lei Internacional em vigor. Portanto, aquele país não poderia alegar desconhecimento da Lei Internacional quando aprovou sua nova legislação com características imperiais.
O que vemos através da recente cultura cinematográfica (que justifica ideologicamente o imperialismo norte-americano) e da legislação dos EUA (que intencionalmente desrespeita a Lei Internacional, provocando conflitos diplomáticos) não é só um medo dos terroristas árabes, mas principalmente a ambição dos norte-americanos de conservar a hegemonia planetária do seu país a qualquer custo.
O medo da queda, referido por mim antes de fazer digressões econômicas, históricas, culturais e legais, acompanha esta ambição e certamente foi a maior justificativa para a criação do império virtual gerido pela NSA. Afinal, os dados coletados massivamente coletados pelas autoridades norte-americanas sobre cidadãos, empresas e governos estrangeiros podem ser filtrados. E somente os que tiverem valor político, econômico e/ou militar são e serão utilizados para posicionar vantajosamente aquele país diante dos seus concorrentes.
Há mais de uma década é notório o fato de que as autoridades policiais norte-americanas (e de outros países desenvolvidos) infiltram agentes no submundo on line para combater os crimes cometidos por hackers, crackers e criminosos comuns que trocaram as ruas pelo universo cibernético. Diversas obras sobre o tema já foram publicadas. Apenas a título de exemplo citarei MERCADO SOMBRIO (Misha Glenny, editora Companhia das Letras), DIÁRIO HACKER (Dan Verton, editora Berkeley) e AMEAÇA CIBERNÉTICA (David Macmahon, editora Market Books).
Com tanta informação sobre a atuação dos agentes de segurança no ciberespaço é pouco provável que verdadeiros terroristas utilizem o Google e o Facebook correndo o risco de serem localizados e neutralizados. Um ou outro idiota pode até ser localizado utilizando dados obtidos por ambos, mas isto é exceção e geralmente os terroristas presos são amadores ou imbecis. Sendo assim, a desculpa padrão dada pelas autoridades norte-americanas para as graves denuncias de Snowden é ridícula e risível. Provavelmente nem aqueles que as enunciam acreditam nelas.
O medo do terrorismo e do hacktivismo, mesmo que exista, funciona aqui como uma cortina de fumaça para encobrir o medo da queda. Antes mesmo das denúncias de Snowden, o lingüista e ativista Noan Chomsky já havia notado o desejo manifesto da elite norte-americana de conservar a hegemonia planetária dos EUA:
“...visão da elite dominante com relação à ONU foi definida, em 1992, por Francis Fukuyama, ex-membro do Departamento de Estado do governo Reagan-Bush: a ONU é ‘perfeitamente usável como um instrumento do unilateralismo americano e, com efeito, provavelmente o principal mecanismo pelo qual este unilateralismo será exercido no futuro.’ Tal previsão se mostrou acurada, talvez por ter se baseado em uma prática contumaz cuja origem remonta aos primórdios da ONU.” (O IMPÉRIO AMERICANO HEGEMONIA OU SOBREVIVÊNCIA, editora Campus).
Ao analisar detidamente a diplomacia do porrete que foi largamente usada por Bush Jr. e tem sido discretamente empregada por Barack Obama, Chomsky reproduz o seguinte discurso:
“...para criar democracias verdadeiras é preciso certa pressão externa... Não devemos hesitar em usar esse tipo de ‘interferência nos assuntos internos’ de outros países... Já que o governo democrático é uma das principais garantias de uma paz duradoura.”
Estas palavras, que eram usadas pelos diplomatas de Stalin, não causariam qualquer estranhamento se fossem proferidas por Bush Jr., Donald Rumsfeld, Dick Cheney ou Condoleezza Rice a propósito do Iraque, do Irã ou da Coreia do Norte. É mais ou menos isto, aliás, que tem sido dito pelas autoridades norte-americanas quando defendem o império virtual administrado pela NSA. Se o Kremlin ou Pequim usassem a mesma estratégia discursiva nos dias de hoje, a Casa Branca imediatamente começaria a acusar a Rússia e a China de imperialismo, de violação princípio da autodeterminação dos povos, de desrespeito às garantias de privacidade conferidas aos cidadãos etc...
A reação da comunidade internacional ao comportamento dos EUA e das empresas que colaboram com a NSA tem sido bastante firme. Brasil e Alemanha, por exemplo, pediram explicações formais ao agressor de suas soberanias e apresentaram conjuntamente um Projeto de Resolução na ONU. Informações sobre o mesmo podem ser facilmente obtidas em português, inglês e alemão (http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/brasil-e-alemanha-apresentam-a-assembleia-geral-da-onu-projeto-de-resolucao-sobre-o-direito-a-privacidade-na-era-digital e http://www.auswaertiges-amt.de/EN/Aussenpolitik/Friedenspolitik/VereinteNationen/Aktuelles/131101_UN_Initiative_Schutz_Privatsphaere.html).
Em sua obra David Macmahon afirmou que no “... ciberespaço, onde a identidade e a motivação são obscurecidas pelo anonimato, o agente de todos os eventos deliberadamente ameaçadores é o hacker.” (AMEÇA CIBERNÉTICA, editora Market Books ). Isto era verdade para era aS (antes de Snowden).
Agora que entramos na era dS (depois de Snowden) o agente de todos os eventos deliberadamente ameaçadores é o analista da NSA que filtra, sistematiza, classifica e utiliza os dados massivamente coletados com ajuda do Google, Facebook e Microsoft. É ele que, a propósito de cumprir a Lei dos EUA, desrespeita os direitos e garantias individuais atribuídos aos cidadãos de todos os outros países pelas suas constituições e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. É ele que, apesar dos EUA terem negociado e estar sujeitos à Lei Internacional, desrespeita acintosamente a soberania dos países membros da ONU, espionando as comunicações eletrônicas de governantes europeus, latino-americanos, africanos e asiáticos.
O agente de todos os eventos deliberadamente ameaçadores é também o programador de computadores que, a serviço de uma empresa norte-americana, deliberada e maliciosamente cria portas dos fundos nos programas comercializados ao redor do planeta. E depois fornece aos agentes da NSA as chaves para usar estas portas dos fundos para eles invadirem computadores pessoais, bancários, industriais e governamentais a fim de obter informações sigilosas e valiosas. Acima de tudo, o agente de todos os eventos deliberadamente ameaçadores é a cultura norte-americana (inclusive e principalmente a cinematográfica), que legitima tanto a ambição imperial do país como o medo da queda referido acima.
O medo da queda, entretanto, é um sentimento ambíguo. Afinal, ele tanto pode alavancar a preservação do império quando sua destruição. O Império Português, por exemplo, caiu justamente porque os portugueses tinham medo da queda e insistiram em preservar suas colônias na África ao custo de guerras coloniais que se tornaram humanitária, econômica e militarmente insustentáveis, provocando um mar de lágrimas na terrinha, além de seu empobrecimento. Os portugueses, entretanto, derrotaram o império e o medo da queda com a Revolução dos Cravos, que custou poucas vítimas. A civilidade portuguesa, entretanto, pode não servir de modelo para os norte-americanos, que estão sempre prontos a atirar primeiro e não pensar depois. (Fonte: aqui).
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