quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
VARGAS LHOSA: NO CLIMA DA RENÚNCIA
Embora excepcional, renúncia do papa não era imprevisível
Por Mario Vargas Lhosa
Não sei por que razão a abdicação de Bento XVI causou tanta surpresa; embora excepcional, não era algo imprevisível. Bastava vê-lo, fragilizado e como perdido no meio das multidões nas quais sua função obrigava que ele submergisse, fazendo esforços sobre-humanos para parecer o protagonista destes espetáculos obviamente estranhos ao seu temperamento e vocação. Diferentemente do seu predecessor, João Paulo II, que se movia como um peixe n'água entre essas massas de fiéis e curiosos que o papa congrega em todas as suas aparições, Bento XVI parecia totalmente alheio a esses faustos gregários que constituem tarefas imprescindíveis do pontífice na atualidade. Desse modo compreende-se melhor sua resistência a aceitar a cadeira de São Pedro que lhe foi imposta pelo conclave, há oito anos, e à qual, como ficamos sabendo agora, nunca aspirou. Só abandonam o poder absoluto com a facilidade com que ele acaba de fazê-lo aqueles raros indivíduos que, em vez de cobiçá-lo, depreciam-no.
Não era um homem carismático nem um comunicador, como Karol Wojtyla, o papa polonês. Era um homem de biblioteca e de cátedra, de reflexão e de estudo, seguramente um dos pontífices mais inteligentes e cultos que a Igreja Católica teve em toda a sua história. Numa época em que as ideias e as razões importam muito menos que as imagens e os gestos, Joseph Ratzinger já era um anacronismo, pois pertencia ao grupo mais seleto de uma espécie em extinção: o dos intelectuais. Refletia com profundidade e originalidade, respaldado por uma enorme informação teológica, filosófica, histórica e literária, adquirida na dezena de línguas clássicas e modernas que dominava, entre elas latim, grego e hebraico. Embora concebidos sempre dentro da ortodoxia cristã, mas com um critério muito amplo, seus livros e encíclicas ultrapassavam com frequência o estritamente dogmático e continham reflexões inovadoras e ousadas sobre os problemas morais, culturais e existenciais do nosso tempo que leitores ateus podiam ler com proveito e, muitas vezes - como aconteceu comigo - com profunda perturbação. Seus três volumes dedicados a Jesus de Nazaré, sua pequena autobiografia e suas três encíclicas - sobretudo a segunda, Spe Salvi, de 2007, dedicada à análise da natureza bifronte da ciência que pode enriquecer de maneira extraordinária a vida humana, mas também destruí-la e degradá-la - têm um vigor dialético e uma elegância expositiva que as destacam nitidamente entre os textos convencionais e redundantes, escritos para os convictos, que, há muito tempo, o Vaticano costuma produzir.
Período de crise.
Bento XVI viveu num dos períodos mais difíceis enfrentados pelo Cristianismo em seus mais de 2 mil anos de história. A secularização da sociedade avança a largos passos, principalmente no Ocidente, cidadela da Igreja até poucas décadas atrás. Esse processo se agravou com os grandes escândalos de pedofilia nos quais estão envolvidas centenas de sacerdotes católicos, que parte da hierarquia protegeu ou tratou de ocultar e continuam se revelando em toda parte, ao lado das acusações de lavagem de dinheiro e de corrupção que atingem o Banco do Vaticano. O furto de documentos perpetrado por Paolo Gabriele, o próprio mordomo e homem de confiança do papa, trouxe à luz as lutas ferozes, as intrigas e os obscuros enredos de facções e dignitários da Cúria Romana que o poder tornou inimigos.
Ninguém pode negar que Bento XVI respondeu a esses desafios descomunais com valentia e determinação, embora sem sucesso. Ele fracassou em todas as suas tentativas, porque a cultura e a inteligência não bastam para se orientar no labirinto da política terrena e para enfrentar o maquiavelismo dos interesses criados e os poderes fáticos no seio da Igreja, outro ensinamento trazido à luz nesses oito anos de pontificado de Bento XVI, que foi descrito, com toda justiça, pelo jornal L'Osservatore Romano como "um pastor rodeado por lobos".
Mas é preciso reconhecer que, graças a ele, o reverendo Marcial Maciel Degollado, o mexicano de antecedentes satânicos, recebeu por fim um castigo oficial na Igreja e a congregação fundada por ele, a Legião de Cristo, que até então havia recebido apoios vergonhosos na mais alta hierarquia vaticana, está sendo reformulada. Bento XVI foi o primeiro papa a pedir perdão pelos abusos sexuais em colégios e seminários católicos, a se reunir com associações de vítimas e a convocar a primeira conferência eclesiástica com a finalidade de colher o testemunho das próprias vítimas e de estabelecer normas e regulamentos com o propósito de evitar a repetição no futuro de semelhantes iniquidades. Mas também é certo que nada disso bastou para apagar o desprestígio trazido para a instituição, pois constantemente continuam aparecendo inquietantes sinais de que, apesar das diretivas dadas por ele, em muitos lugares, os esforços das autoridades da Igreja ainda são orientados a proteger ou dissimular os crimes de pedofilia que são cometidos, mais que a denunciá-los e puni-los.
Tampouco tiveram aparentemente muito sucesso os esforços de Bento XVI para pôr fim às acusações de lavagem de dinheiro e de transações criminosas do Banco do Vaticano. A expulsão do presidente da instituição, Ettore Gotti Tedeschi, próximo da Opus Dei e protegido do cardeal Tarcisio Bertone, por "irregularidades de sua gestão", decidida pelo papa, bem como sua substituição pelo barão Ernst von Freyberg, ocorrem tarde demais para impedir os processos judiciais e as investigações policiais já em andamento. Relacionadas, aparentemente, a operações comerciais ilícitas e transações que alcançariam cifras astronômicas, só contribuirão para corroer a imagem pública da Igreja e confirmar que, no seu interior, o terreno predomina às vezes sobre o espiritual, e no sentido mais ignóbil do termo.
Conservador.
Joseph Ratzinger pertencia ao setor mais progressista da Igreja durante o Concílio Vaticano 2.º, no qual foi assessor do cardeal Frings e onde defendeu a necessidade de um "debate aberto" sobre todos os temas, mas logo foi se alinhando com a ala conservadora. Posteriormente, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (a antiga Inquisição), foi um adversário decidido da Teologia da Libertação e de toda forma de concessão em temas como a ordenação de mulheres, o aborto, o casamento homossexual e até mesmo o uso de preservativos que, em algum momento do seu passado, havia chegado a considerar admissível.
Evidentemente, isso fazia dele um anacronismo dentro do anacronismo que a Igreja se tornou. Mas suas razões não eram tolas nem superficiais e os que as rechaçam devem procurar entendê-las, por mais extemporâneas que nos pareçam. Estava convencido de que, se a Igreja Católica começasse a se abrir para as reformas da modernidade, sua desintegração seria irreversível e, em vez de abraçar a sua época, entraria em um processo de anarquia e deslocamentos internos. Tudo isso acabaria transformando-a em um arquipélago de seitas em luta entre si, algo semelhante às igrejas evangélicas, algumas circenses, com as quais o catolicismo compete cada vez mais - e sem muito sucesso - nos setores mais deprimidos e marginais do Terceiro Mundo. A única maneira de impedir, na sua opinião, que o rico patrimônio intelectual, teológico e artístico fecundado pelo Cristianismo se dilapidasse em uma barafunda revisionista e em uma feira de disputas ideológicas seria preservando o denominador comum da tradição e do dogma, embora significasse que a família católica foi se reduzindo e marginalizando cada vez mais em um mundo devastado pelo materialismo, pela cobiça e pelo relativismo moral.
Veredito.
Julgar até que ponto Bento XVI agiu de maneira acertada ou não a esse respeito é algo que, evidentemente, cabe apenas aos católicos. Mas nós, não crentes, não deveríamos festejar como uma vitória do progresso e da liberdade o fracasso de Joseph Ratzinger no trono de São Pedro. Ele não só representou a tradição conservadora da Igreja como também sua melhor herança: a da ilustre e revolucionária cultura clássica e renascentista que, não podemos esquecer, a Igreja preservou e difundiu, por meio de seus conventos, bibliotecas e seminários, a cultura que impregnou o mundo com ideias, formas e costumes que acabaram com a escravidão e, distanciando-se de Roma, tornaram possíveis as noções de igualdade, solidariedade, direitos humanos, liberdade e democracia, impulsionando decisivamente o desenvolvimento do pensamento, da arte, das letras e contribuindo para acabar com a barbárie e para promover a civilização.
A decadência e a vulgarização intelectual da Igreja evidenciadas pela solidão de Bento XVI e a sensação de impotência que aparentemente o rodearam nesses últimos anos são sem dúvida fatores primordiais de sua renúncia e um vislumbre inquietante de quão incompatível nossa época seja com tudo o que representa vida espiritual, preocupação pelos valores éticos e vocação pela cultura e pelas ideias. (Fonte: aqui; originalmente publicado no jornal O Estado de São Paulo).
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Li 'n' análises acerca do assunto. Vargas Lhosa, que se intitula não crente, produziu uma das mais argutas.
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