domingo, 14 de outubro de 2012

SOBRE WOODY ALLEN

Woody Allen por Kléber.

Woody Allen é botafogo

Por Arnaldo Bloch

‘Se eu sou um gênio, Rembrandt é o quê?” A frase, uma de suas preferidas em entrevistas, não é citada em “Woody Allen — Um documentário”, de Robert B. Weide (...)  Mas é a síntese do que o filme revela: Allen vê sua obra como um conjunto medíocre, irregular, lotado de cenas que não funcionam, com raros achados artisticamente felizes.

Sua estratégia, ele confessa, é, e sempre foi, fazer um filme atrás do outro na esperança de que, a cada três ou quatro temporadas, um deles caia no gosto do público ou da crítica, pois ambicionar à convergência é como acreditar num truque de mágica. Ou em vida após a morte. Ou em Deus.

Não importa que a “Time” o tenha alçado a gênio da comédia nos anos 1970. Não importa que Scorsese veja o advento de uma revolução no cinema americano a partir de “Manhattan”. Não importa que cada ator o tema como a uma divindade. Não importa. Pois ele mesmo, o autor, não enxerga essa grandeza. São, só, circunstâncias.

Quem acha que é só gênero vá assistir ao filme (...) e deixe-se vencer pela argumentação de Allen. É um documentário feito sob medida não só para os fãs, que vão conhecê-lo mais e enfrentar algumas desilusões de tiete, mas, sobretudo, para quem odeia o cinema do judeu baixote de óculos.

Ele sabe direitinho o que conquistou e se diz sem motivos para reclamar. Realizou seus sonhos de menino: ser ator, filmar, ter controle sobre o conteúdo, ousar sempre que quisesse e tocar clarineta. Aceitou e aceita os fracassos às vezes fulgurantes como preço natural a pagar pela liberdade criadora e pelo direito a um ritmo de produção em série, obsessivo.

Mesmo quando esteve na lona, forças ocultas e algum cash o fizeram emergir. Hoje, prefeituras do mundo inteiro se digladiam por uma vaga nos seus “filmes de cidade”, que o tornaram um popstar globalizado après-la-lettre.

De bônus, casou-se com lindas mulheres e conseguiu a proeza de sobreviver artisticamente, psicologicamente e, para muitos, até moralmente ao escândalo de trair uma delas com a própria enteada e, depois, desposá-la e adotar filhos, formando uma família tradicional.

História que, nunca é demais repetir, se ajustaria bem a uma comédia dramática a seu modo: sua vida, de fato, com os devidos ajustes de tom e de tempo, é como a de seus personagens. Allen nunca deixou de sê-los, todos.

Nada disso significa que ele tenha grande apreço artístico pelo resultado. É um autor de tragédias frustrado que até hoje persegue as luzes e sombras de Bergman, Fellini, Shakespeare e os russos sob sua lente essencialmente americana, romântica, em permanente estado de guerra com o pessimismo da herança judaica, com auxílio luxuoso da psicanálise (como sistema de pensamento e como sistema de anedotas incessantes fornecidas pelo freudismo de massa).

Ele sabe que muitas de suas anedotas estão datadas. E que algumas delas sempre foram datadas e são tão rasteiras quanto seus momentos menos inspirados no stand up, quando só o público não via seu constrangimento com o material que usava para ganhar fama.

Acha-se um cineasta obreiro, industrioso mais que industrial, que tem altos e baixos, como a maioria, inclusive entre os supostos “gênios” declarados que habitam o Sistema do Cinema. Ele sente-se como um desses equívocos. Sabe que não é Rembrandt.

Sua diferença para a média humana consiste no fato de que essa constatação não o fere: se sobrevive ao Universo em expansão e à existência sem sentido, que mal há em isolar cinco bolas antes de fazer um gol?

Woody Allen gosta de NFL mas é Botafogo, mesmo sem sabê-lo. Só um espírito alvinegro teria aversão ao Oscar. Allen crê em filmes preferidos, mas não num “melhor filme”.

Transformar a apreciação de arte num sistema de índices e hierarquias é algo, para ele, que desafia a lógica e mata o subjetivo.

A excelência conferida por um Oscar é irreal. Como um tapete vermelho em Cannes:

“Ninguém em sua vida cotidiana veste um smoking e posa para cem fotógrafos histéricos num tapete vermelho. Isso simplesmente não é real”, ele diz, num dos grandes momentos do filme.

A certa altura, um fã se aproxima.

— Germany loves you.

Ele finge ouvir o nome de uma mulher.

— Who? Gemma?

O alemão, com pureza, corrige: “o país”.

— Ah, o país! Mas... o país inteiro?

O tiete confirma. Allen replica.

— Isso é muita gente, não é?

A cena termina com o silêncio do fã, autômato desconstruído pelo golpe socrático do comediante. O fã, repetidor de scripts, é como somos, todos, quase o tempo todo: figuras irreais e tristemente cômicas.

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