sexta-feira, 1 de junho de 2012

ESPANHA: CRISE INDOMÁVEL (III)


O presidente, o banco, o déficit e a taxa de risco

Por Oscar Guisoni

A crise econômica espanhola se parece cada vez mais a uma tragédia grega. O mix de desemprego, déficit fiscal incontrolável, risco país galopante e um buraco bancário que ninguém se anima a dimensionar com certeza está resultando fatal para o governo de Mariano Rajoy, que tem apenas meio ano à frente do Executivo. A situação chegou a limites extremos esta semana, quando o presidente do Banco da Espanha, Miguel Ángel Fernández Ordóñez, apresentou sua renúncia sob os efeitos do estouro do Bankia, o gigante bancário recém-nacionalizado que ameaça fazer naufragar o já frágil sistema financeiro nacional. Enquanto os dirigentes políticos não atinam em encontrar soluções para a crise, o descontentamento nas ruas vai aumentando e a Europa começa a suspeitar que a Grécia seja só a ponta do iceberg e que é a Espanha o verdadeiro epicentro do furacão financeiro que pode varrer com o euro.

Os frios e aristocráticos corredores do Banco da Espanha foram testemunha, na terça-feira passada, da penúltima cena do drama. Miguel Ángel Fernández Ordoñez, o pressionado presidente da máxima autoridade monetária, jogou a toalha um mês antes da data prevista para que abandone seu cargo. Coroava com uma violenta batida de porta um longo processo que começou no final de 2008, quando começaram a levantarem-se vozes críticas contra sua gestão por não haver impedido a formação da bolha imobiliária cujo estouro deu origem à pior crise financeira espanhola das últimas décadas.

Homem de marcadas convicções neoliberais, Fernández Ordoñez havia assumido o Banco Central Espanhol em 2006, indicado pela administração do socialista José Luís Rodríguez Zapatero, de cujo staff formava parte como Secretário da Fazenda e Orçamento, às ordens do Ministro de Economia Pedro Solbes, outro reconhecido representante das teorias econômicas mais conservadoras, apesar de sua filiação socialdemocrata. Logo que assumiu, Fernández Ordoñez enfrentou o poderoso corpo de fiscais e supervisores que o acusavam de não ter conhecimento suficiente em matéria financeira. Isso não o impediu de fazer um severo diagnóstico da situação que se encontrava a economia do país, ainda que em vez de meter as mãos no complexo e embarrado mapa bancário, como demandava a situação, se dedicou a apregoar as virtudes das reformas neoliberais, exasperando o governo que o havia colocado à frente da entidade e fazendo as delicias do Partido Popular, na oposição.

Em 2011 a sorte de seu antigo chefe político acabou e Rodríguez Zapatero teve que abandonar o governo com o pior índice de popularidade de qualquer outro presidente da era democrática. Mas o novo governo do PP não estava disposto a seguir batendo no ombro de seu outrora aliado. Fernández Ordóñez se revelou rapidamente um peso para a gestão do novo governo conservador e as críticas a sua gestão da crise cresciam. Não só lhe acusavam de “falta de decisão para intervir a tempo nas entidades com graves problemas pela ‘crise imobiliária’”, segundo o jornalista do El País Miguel Ángel Noceda, mas também de “ineficiência para abordar a reforma financeira desde o principio” e de “fraqueza para enfrentar os poderes políticos”. O estouro da crise do Bankia, o novo banco, produto da unificação da maioria das caixas de poupança regionais, foi a cereja do bolo.

Bankia, um buraco negro em meio à crise
A história do gigante bancário Bankia serve para exemplificar as causas da atual crise financeira espanhola. Constituído no dia três de dezembro de 2010, o novo Banco Financeiro e de Poupança (cujo nome comercial é Bankia) nasce de uma fusão entre diferentes caixas de poupança regionais, entre elas se destacavam a Caja Madrid e a valenciana Bancaja, as quais logo se somaram as caixas das Canárias, La Rioja, Ávila e Segovia, entre outras. Estas caixas, que outrora foram o coração do sistema bancário Espanhol, uma vez que estavam monitoradas pelos poderes políticos regionais e serviam para impulsionar as economias provinciais, foram as principais afetadas pelo estouro da bolha imobiliária em 2008, já que haviam sido as entidades que mais tinham apostado no auge do boom imobiliário desde finais da década de noventa.

As “cajas”, como são conhecidas popularmente, se transformaram, no calor da bolha, em um instrumento do poder político para favorecer um grupo pequeno, mas poderoso, de grandes empresas construtoras, que foram as principais beneficiadas pelo boom da construção. Convencidos de que a bonança era eterna, os governos regionais facilitaram que se outorgassem inúmeros créditos às construtoras sem detectar que o mercado imobiliário estava saturando-se, ao mesmo tempo em que se davam generosos créditos hipotecários às famílias sem se preocupar demasiado por investigar sua solvência. O sistema foi entrando assim em uma dinâmica similar a que ocasionou a denominada “crise das subprime” nos Estados Unidos e, quando a situação explodiu de um lado do Atlântico, foi só questão de meses para que o sistema quebrasse na outra margem.

Em 2009 estava claro que as “cajas” estavam atravessando uma crise terminal. Angustiadas pelos chamados “ativos tóxicos”, a soma de dívidas não pagas de empresários e famílias em apuros, as entidades começaram a fazer balançar o sistema financeiro. A situação foi aproveitada pelos bancos, históricos inimigos das “cajas”, as quais acusavam de competição desleal e favoritismo político, para impulsionar a necessidade de uma reforma. O Banco da Espanha promoveu a fusão e transformação em um mega banco das entidades mais afetadas e o conservador Rodrigo Rato, ex-diretor do Fundo Monetário Internacional, foi posto no timão do novo gigante. No dia 20 de julho de 2011 a nova entidade começou a ser cotada na Bolsa.

Mas a entrada na Bolsa não resolveu o problema de fundo: a enorme dívida do novo banco, que nem sequer podia ser quantificada, já que as entidades originais haviam utilizado todo tipo de subterfúgios para tratar de esconder a dimensão do buraco e foi assim que começou a dança das cifras. Primeiro o Bankia afirmou que havia tido lucros em seu primeiro ano de vida, mas em seguida disse que, na realidade, havia perdido mais de três bilhões de euros. E, na medida em que o escândalo ia aumentando, aumentavam também as cifras. Rato, cuja presença à frente do mega banco tinha por finalidade injetar confiança nos mercados, acabou renunciando e o governo de Mariano Rajoy se viu obrigado a nacionalizar a entidade, para terminar admitindo que o passivo superava 20 bilhões de euros, uma cifra descomunalmente acima dos prognósticos mais pessimistas.

A taxa de risco e o déficit
Semelhantes notícias não podiam fazer outra coisa que não fosse repercutir sobre a denominada “taxa de risco”, o diferencial que a Espanha paga com respeito aos bônus alemães no mercado de dívida mundial. O índice disparou a cifras recordes na segunda-feira passada e continuou crescendo ao longo da semana, até chegar aos 540 pontos, o que, na prática, se traduz em taxas em torno de 7%, cifras consideradas extremamente altas no mercado de dívida pública. Diante desta situação tão complexa, o governo conservador não fez mais que gaguejar intenções, ampliar os cortes no gasto público e pedir clemência à Bruxelas, de onde chegavam as exigências econômicas mais severas.

A União Europeia respondeu aceitando que o país demore um ano mais para chegar ao objetivo de 3% do PIB, como máximo, de déficit público, cifra à qual deverá alcançar em 2014 e não o próximo ano, sempre que se aprofundem as reformas que Bruxelas exige. O problema é que estas medidas não só são antipopulares, mas aprofundam ainda mais a crise e terminam gerando maior desemprego. Entre o leque de novas exigências se encontra a de aumentar a idade das aposentadorias até chegar aos 67 anos, pôr em marcha uma radical reforma trabalhista que elimina direitos obtidos pelos trabalhadores ao longo de todo o século XX, ajustar ainda mais o sistema financeiro, favorecendo a sua concentração em poucas mãos e aumentar os impostos para uma população já demasiado castigada pelos angustiantes problemas econômicos.

Enquanto isso, a situação econômica começa a traduzir-se em dificuldades políticas. O Partido Socialista, agora na oposição, pediu uma comissão investigadora para tentar esclarecer que aconteceu com o Bankia, mas o fez a contragosto, uma vez que entre suas próprias fileiras existem dirigentes que tiveram responsabilidade imediata no baile desenfreado das “cajas” durante a década passada. Por sua parte, o Partido Popular tratou, por todos os meios, de evitar um debate parlamentar sobre o buraco negro do mega banco, não deixou que Fernández Ordóñez se apresentasse no Congresso para explicar sua versão dos fatos e vê com enorme preocupação como caem os índices de popularidade de um governo que assumiu há seis meses, mas que todo mundo percebe já como um executivo desgastado e sem muita margem de manobra.

Nas ruas, o descontentamento é lei. Grandes setores, como o da educação pública, estão imersos em protestos, se sucedem as manifestações contra os cortes e, para aumentar ainda mais o clima rarefeito, os governos regionais começam a ficar espantados com as intenções de Madri de intervir nas autonomias que não cumpram com os requisitos do déficit definido pelo estado central e crescem as tensões nacionalistas e regionalistas que sempre caracterizaram a vida política na península. Como pano de fundo, um desemprego que se encontra a ponto de superar a barreira psicológica dos 25% da população ativa agita ainda mais as águas.

Com sua habitual ironia ácida o semanário satírico El Jueves mostrava nesta semana, sob o título de “Má imagem”, um desconsolado Mariano Rajoy em trajes menores falando com a vice-presidenta Soraya Sáenz de Santamaría: “Olhe como estão minhas cuecas desde que sou presidente” lhe diz, enquanto mostra a cueca extremamente suja. “Deve ser isso o que chamam de MARCA ESPANHA”, responde a vice-presidenta.

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